Por JÉSSICA MACHADO BOEIRA & WESLEY SOUSA*
Aos 20 poucos anos, Machado quando escrevia suas críticas em pequenos periódicos como o Marmota Fluminense, A marmota ou O Espelho
Introdução
É de comum conhecimento que Machado de Assis constitui um dos pontos altos da nossa vida literária. Alguns podem não saber de suas crônicas e textos de crítica literária, os comentários das produções da dramaturgia e a verve satírica em textos jornalísticos nas cercanias de um resenhista habilidoso, nos diversos folhetins nos quais trabalhou em terras cariocas, comentando a vida teatral fluminense a partir das encenações de Shakespeare, nas leituras de Lawrence Sterne, La Fontane, Blaise Pascal etc.
Em diversos escritos da “juventude” (1864-1872) machadiana eram assinados, porém, por certos pseudônimos. Recentemente, algumas pesquisas no campo dos estudos literários têm reestabelecido interpretações e comentários, seja na descoberta de escritos do punho de Machado de Assis, seja na reinterpretação de sua fortuna para além de seus romances já consagrados (Azevedo, 2015). De tudo que se escreveu e ainda se escreve, muito pode se extrair para reforçar a ideia de um humorista seco, de uma visceral capacidade retórica e uma articulação narrativa entre o conteúdo social e a forma literária.
Machado começa a vida de literato por volta dos 19 anos de idade, em um famoso livreiro de época (em torno de 1858). Os artigos críticos intitulados O passado, o presente e o futuro da literatura, tema arrojado, assunto amplo em que o escritor mostrava relativo domínio. Quando surgiu a revista O futuro (1862), dirigida por Francisco Xavier de Novais, o jovem Machado foi escolhido para escrever nela a crônica literária. E mais tarde, no Diário do Rio de Janeiro, então dirigido por Quintino Bocaiúva, recebeu o encargo de resenhar e comentar os livros recém impressos. Embora nem sempre contínua, Machado resenhou e comentou autores como Raul Pompeia, José Veríssimo, Joaquim Nabuco, Graça Aranha etc. Naqueles tempos teve a “bênção” epistolar de José de Alencar, a propósito de um comentário de Machado em torno do escritor e poeta Castro Alves. Alencar, por sinal, chega a chamar Machado de “o primeiro crítico brasileiro”, segundo nota a pesquisadora Sílvia Azevedo (Azevedo, 2015).
O crítico viu as inovações do drama realista brasileiro, trazido à cena pelo Teatro Ginásio Dramático, a partir de 1855, com peças de Dumas Filho, Émile Augier e Octave Feuillet. Esses dramaturgos se autodenominavam realistas porque pretendiam tratar com rigor a nova sociedade burguesa. Com a verve moralista, as peças estabeleciam-se no enredo que discriminava bons e maus costumes por meio do conjunto de valores como o trabalho, a família, o casamento, o dinheiro, a livre iniciativa, a necessidade de preservação do capital, a honestidade etc. “Tratava-se de uma dramaturgia inovadora em relação ao teatro de João Caetano dos Santos, que apostava em dramas românticos, tragédias neoclássicas e melodramas de sucesso em vez de investir seriamente no teatro nacional”, conforme observa Alex Martins, no artigo “Os fundamentos filosóficos da crítica teatral em Machado de Assis” (Martins, 2019, p. 51).
Quem relata também alguns desses episódios é Décio de Almeida Prado, no seu trabalho intitulado História concisa do teatro brasileiro [1999]. Para o intérprete, o realismo que se firmava na Europa significava também perda das ilusões burguesas no mundo social, tais como se davam em Flaubert, Balzac, Stendhal etc. No plano da produção da dramaturgia, o destaque de algumas produções que chegava ao Brasil se dá principalmente pela produção francesa, que continha alguns dos nomes trazidos para nossa terra. Segundo Prado, “Se o núcleo do drama romântico era frequentemente a nação, passar a ser, no realismo, a família, vista como célula máter da sociedade” (Prado, 2020, p. 78).
No caso das obras tardias de Machado de Assis, há o movimento satírico nas minúcias de certo descompasso entre as ideias e a matéria social das classes dominantes locais. Contudo, o realismo machadiano é constituído por elementos “antirrealistas” (o defunto falante, por exemplo), segundo o qual o crítico busca especificar tal construção a partir da ironia literária que se torna consequência imediata em que o narrador machadiano adquire uma feição social e histórica bem definida. Logo, o alheamento às formas consagradas de realismo, àquelas analisadas, por exemplo, pelo filósofo húngaro György Lukács (Lukács, 2011), é o centro narrativo de “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Neste texto, abordaremos alguns destes ambos aspectos, tendo como fio condutor a escrita de Machado como um analista literário e dramatúrgico da vida social brasileira (circunscrita às terras cariocas e fluminenses).
O jovem Machado crítico teatral
Aos 20 poucos anos, Machado quando escrevia suas críticas em pequenos periódicos como o Marmota Fluminense, A marmota ou O Espelho. A leitura desses textos, e de outros tantos que colaborou, são fundamentais para compreender a formação cultural de Machado tanto como crítico literário quanto crítico teatral. Se recorrermos a sua carreira intelectual, observa-se que ele foi apoiado desde muito jovem, e aos cinquenta anos era considerado o maior escritor do país, alvo de muita admiração que nenhum outro poeta e romancista brasileiro jamais experimentara. Nas obras de grandes literatos como ele, segundo Antonio Candido, é comum, pois, encontrar a polivalência do verbo literário, por ser fácil encontrar nos textos uma riqueza de significado, o que permite que cada grupo e cada época “encontrem as suas obsessões e suas necessidade de expressão” (Candido, 1977, p. 18). Por este motivo gerações de leitores de críticos foram encontrando diferentes níveis em Machado de Assis, e por isso o apreciando por motivos diversos; aparecendo como um proeminente escritor, cujas qualidades muitas vezes eram contraditórias. Mas o que o qualifica mais ainda é justamente fazer caber em sua diversidade intelectual, cada umas destas qualidades, embora contrapostas. Quando atinge a maturidade por cerca dos 40 anos de idade, seu estilo e boa linguagem chamavam uma notável atenção. Tais características eram codependentes, “e a palavra que melhor os reúne para a crítica do tempo talvez seja finura” (Candido, 1977, p 18).
Nas observações críticas de Machado já se distinguia a dramaturgia (teatral) da comédia moderna, da realista (cujo intuito promissor era reproduzir a cena social para assim advertir com lições moralizadoras). Em seus escritos não há menção alguma de peça em particular, mas sabe-se que a predominância teatral era francesa. As peças eram encenadas no Teatro do Ginásio Dramático, no semestre de 1856, como a As mulheres de Mármore, de Theodore Barriere e Lambert Thibousr e Dama das Camelhas, de Alexandre Dumas Filho, e também alguns anos depois O Mundo Equívoco, de Le Demi-Monde, Um Pai pródigo e a Questão de dinheiro, de Alexandre Dumas Filho, Os Hipócritas de Barriere, O Genro do Sr. Pereira, O Filho de Giboyer, O Casamento de Olímpia, de Émile Augier, A Crise, de Octave Feuillet, Por Direito de Conquista, de Ernest Legouvé. Embora, ainda não muito aprofundado nos dilemas da dramaturgia que se passava, em pouco tempo, o contato com o teatro e intelectuais de sua geração, fizeram rapidamente perceber o que se sucedia na cena brasileira.
De acordo com Roberto Faria, na sua ampla pesquisa sobre os escritos machadianos no tema, ele observa que os aspectos principais desta dramaturgia encenado pelo Ginásio Dramático contrários à ideia da arte pela arte, “deram as suas obras um caráter edificante e moralizador, empenhando-se na defesa dos valores éticos da burguesia, a classe social com a qual se identificavam” (Faria, 2008, p. 27). As virtudes burguesas encenadas como o casamento a família, a fidelidade conjugal, o trabalho, a inteligência, a honestidade, a honradez, são constantemente enfatizados no imaginário burguês como qualidades morais reconhecidas e que, portanto, devem ser contrárias aos vícios, como o casamento por conveniência, o adultério, a prostituição, a agiotagem, o enriquecimento ilícito, o ócio e etc. Como coloca Faria:
Não é preciso dizer que o maniqueísmo servia perfeitamente ao propósito moralizador, uma vez que o embate resultava sempre na vitória esmagadora do bem. E mais: essa dramaturgia pintava um retrato da sociedade francesa que fazia inveja aos brasileiros. Enquanto se vivia aqui o inferno da escravidão, nossa marca do atraso, na França a sociedade se modernizava por meio do ideário burguês (Faria, 2008, p. 27).
Tal cenário histórico seduziu os jovens intelectuais que se formavam, sobretudo aqueles que se mostravam cordiais ao pensamento liberal-conservador que se consolidava. Ainda nesse período formativo, Machado era leitor ávido dos folhetins teatrais, e como tece a compreensão sugestiva de Faria, talvez tenha se deixado influenciar pelas ideais de Quintino Bocaiúva, que era folhetinista do Diário do rio de Janeiro, e também expectador das comédias realistas do Ginásio Dramático. Assim, Quintino Bocaiúva rejeitava o romantismo, esperava do teatro que este fosse um espelho da sociedade. Mas não apenas uma reprodução irrefletida do real. Na sua idealização, por conseguinte: “O teatro tinha como função primeira contribuir para o aprimoramento da vida em família e em sociedade, através da crítica moralizadora dos vícios. Em suas palavras, “o teatro não é só uma casa de espetáculos, mas uma escola de ensino; seu fim não é só divertir e amenizar o espírito, mas, pelo exemplo de suas lições, educar e moralizar a alma do público” (Faria, 2008, p. 28).
Nestas palavras, observa-se um ideal para a dramaturgia que superasse os engodos empobrecidos e ultrapassados desse na cena teatral carioca. Para muito além dos traços que afiguravam o despertar cultural brasileiro no cenário burguês se fazia necessário uma compreensão também esclarecida e crítica do que aqui passava. Além disso, Machado também acompanha de perto a estreia de José de Alencar como dramaturgo no final de 1857. Entrou em cena no Ginásio Dramático sua primeira comédia chamada O rio de Janeiro, Verso e reverso, seguida pela peça O Demônio Familiar. Esta última peça foi significativa para o novo rumo que o teatro brasileiro viria a ter.
Na percepção de Alencar, entretanto, as primeiras gerações do romantismo não tinham dado conta da tarefa. Era necessária uma renovação sobretudo estética. O romantismo para ele já tinha perdido a sua efervescência e já não tinha mais condições de ser parâmetro, podendo agora ser substituído pela comédia realista, cujo formato se inseria melhor no novo contexto histórico. Para escrever o Demônio Familiar procurou na comédia na dramaturgia brasileira um modelo, mas não obteve sucesso tendo de recorrer a dramaturgia francesa, como em Dumas Filho. Para Alencar esse escritor aperfeiçoou a comédia, “adicionando um traço novo, a naturalidade” (Faria, 2008, p. 29), constituindo assim a nova comédia moderna. Nesse interim algo havia ficado claro a Alencar: a alta comédia precisava inserir esses dois elementos básicos: a naturalidade e a moralidade. Se, por um lado, a influência clássica emerge a ideia horaciana do utilitarismo da arte, por outro lado, o realismo conspira os ideais de seu próprio tempo. Abreviando estes princípios, temos uma construção de uma peça que que capta a realidade, mas acrescenta para junto deste um aspecto sutil moralizador. Algo que, de algum modo, Machado assimilou.
Segundo lemos na pesquisa realizada por Sílvia Azevedo, o jovem escritor Machado de Assis, no período de crítico teatral e cronista nos jornais fluminenses, teve uma fortuna crítica a partir da qual podemos chamá-la de crítica às avessas(Azevedo, 2015). A exemplo disso, o escritor vai se ocupar, em 20 de dezembro de 1869, da obra Angelina ou Dois acasos felizes, de José Joaquim Pereira de Azurara. A “escolha” do assunto para uma crítica aparece em meio a outros assuntos abordados na crônica desta data, como o estado de abandono das ruas do Rio de Janeiro e a mudança de nome de algumas delas. No interior deste contexto, distante dos assuntos literários, que a obra de Azurara passa a ser tratada, ou seja, em meio a “coisas”: “Este romance Angelina ou Dois acasos felizes foi publicado há três dias. Tem 78 páginas e 13 capítulos. É uma obra digna de ser lida. Abundam as páginas de descrição e de sentimento, as reflexões sisudas e as coisas humanas, e sobretudo arrebatadora novidade de forma. […] Tenho notado nos nossos atuais escritores o uso de palavras vulgares e conhecidas com desprezo de termos poéticos ou simplesmente clássicos. O autor de Angelina rompe brilhantemente com essa tradição. Ele sabe empregar vocábulos eufônicos, legítimos e coruscantes de graça. […] Para que havemos de dizer encarnado, ama, falta, etc, como qualquer barbeiro? O autor usa de – punício, notrice, inópia, zumbrir-se, impérvio, famulentos etc. Mostra que estudou. Termina o romance com esta pergunta: Agora resta-me perguntar-vos, meus leitores, deverei continuar a escrever? Sem dúvida. Esperamos um segundo romance”. (Jornal da Tarde, 77, 20 de dezembro de 1869, p. 1).
Fazer a crítica ao romance Angelina ou Dois acasos felizes no interior da crônica é uma forma indireta de pré-julgar negativamente a obra, trazendo-a para um contexto em que a falta de conexão entre ela e os demais assuntos abordados dá margem à observação do cronista quanto a outra aproximação estapafúrdia: “Que ponto de contato pode haver entre a batalha de Tuiuti e os tomates do mercado?” (Assis, 2013). Além disso, a intenção de Machado, ao aproximar o romance de outras “coisas”, era criticar de forma velada a concepção de literatura de Azurara, que tinha como sinônimo palavras “difíceis”. A tamanha “preciosidade” do romance era como olhar a qualidade dos tomates no mercado…
Sob o pseudônimo “Dr. Semana”, a simulação irônica implicou ainda incorporar os termos “literários” empregados por Azurara, de modo a criar um segundo discurso que mimetiza o caráter incompreensível do autor resenhado. Quando o leitor faz uma opção por um dos sentidos, escolhendo o literal, ao se tratar do figurado, ou vice-versa, o efeito humorístico é inevitável. De fato, aconteceu, quando Pereira de Azurara, após ler a crítica que saiu no Semana Ilustrada a respeito de seu romance, enviou duas cartas de agradecimento à redação da revista, acompanhadas das comédias “Como isso é bonito!” e “Eu não gosto de limão”, que o professor de Guaratiba submetia à crítica do Dr. Semana [pseudônimo de Machado]. O cronista não perde a oportunidade de transcrever nas “Badaladas” (seção do jornal) de 20 e 27 de fevereiro de 1870 ambas as cartas, a primeira antecedida de um “introito” (início) irônico, em que põe em dúvida a “autenticidade” da correspondência (ver: Azevedo, 2015, p. 52):
[…] O Sr. Azurara é o mesmo autor do romance Dois acasos felizes de que já falei há algumas semanas. Mas serão estas cartas autênticas? Será realmente o autor do romance o mesmo autor das comédias? ou acaso alguém que deseja, à sombra de um nome já conhecido, mostrar as suas obras?
As comédias são boas, e eu as publicaria na Semana com toda a vontade. Mas ignorando se o autor será o mesmo, o mais que faço desta vez é publicar a primeira carta esperando que o autor me procure e confirme a autenticidade dela (Semana Ilustrada, 480, 20 de fevereiro de 1870, p. 3835).
Levantar suspeita quanto à autoria das cartas (diga-se, elas vinham todas assinadas), sob a alegação de que outro autor, para aproveitar a “fama” de Azurara, estaria usando o mesmo recurso de enviar suas obras à redação da Semana Ilustrada, “na esperança de que o Dr. Semana delas se ocupasse com primor, é um modo indireto de dizer que as comédias são até piores do que o romance” (Azevedo, 2015, p. 53). Talvez por isso, desta vez, em lugar da “análise” das peças, o crítico-cronista tenha optado por outra estratégia a serviço da ironia, sem qualquer interrupção, como acontece em relação à primeira carta. Sua ironia finíssima, e estilo altamente refinado. A isto associa-se uma ideia de urbanidade amena, de discrição e reserva.
As obras de comédia ligeira, feita de quiproquós e humor grosseiro, gênero que infestava os teatros do Rio de Janeiro, e que Machado de Assis, no papel de crítico teatral e censor do Conservatório Dramático, combatia duramente, passava por essa ridicularização ao “evidenciá-las” como pomposas e cheias louvores. No jovem Machado, com este exemplo, podemos evidenciar características muito próprias de um prosador que faz da relativização irônica uma função ficcional que levou, anos depois, na construção do “narrador volúvel” presente em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), obra da “fase madura”. Agora, como um escritor já renomado e produtivo, Machado faz de sua prosa um aspecto formal em que a ironia e a crítica satírica enlaçam em sua maneira romanesca.
Sátira e drama social brasileiro
Na verdade, o que o Dr. Semana realiza, no sentido desta “crítica às avessas”, aponta claramente como a crítica funcionaria como guia dos estreantes; como também fora apresentado em seu texto o “Ideal do crítico” (Assis, 1865), na necessidade de o autor, tanto o novo quanto o profissional, ler bons exemplos de literatura, no sentido de aprimorar-se enquanto escritor, e não buscar pelos intentos duvidosos autoafirmações e a bajulação. Da crítica teatral como pedagogia moral e à crítica para uma suposta elite ilustrada, Machado passa agora a ridicularizar justamente o universo tacanho que forma a República brasileira; e a ironia, por sua vez, é o conteúdo formal que enquadra o drama social.
Assim, quando se vê que a volubilidade de Brás Cubas é um mecanismo narrativo em que está implicada numa problemática nacional (o nascimento da República é uma delas), tal volubilidade que acompanha os passos do livro, tem nela o seu contexto imediato, ainda quando não explicitada ou mesmo visada. Para Schwarz, “A estridência, os artifícios numerosos e a vontade de chamar atenção dominam o começo das Memórias póstumas de Brás Cubas. O tom é de abuso deliberado, a começar pelo contrassenso do título, já que os mortos não escrevem” (Schwarz, 2000a, p. 16). O movimento narrativo de Machado, então, recorre ao estoque das aparências esclarecidas, através do qual destrata a totalidade das luzes contemporâneas, as quais subordina a um princípio contrário ao delas, conforme observa Roberto Schwarz. Segundo a interpretação de Schwarz, em “Um mestre na periferia do capitalismo” [1990] (2000a), trabalho no qual é um estudo sobre a obra tardia de Machado, sobretudo o “Memórias póstumas de Brás Cubas”, a forma narrativa machadiana, no “narrador volúvel”, visitava e absorvia a cultura relevante do tempo, para aclimatá-la no país, ou seja, associá-la ao instituto da escravidão, cujo núcleo de dominação pessoal discricionária contudo zombava da pretensão civilizada e já não era sustentável de público (Schwarz, 2000a). Faz parte da volubilidade o consumo acelerado e sumário de posturas, ideias, convicções, maneiras literárias etc., logo abandonadas por outras, quase como “desqualificações”.
Além disso, por outro lado, encontramos também em Alfredo Bosi, um interessante ensaio comentando questões da função crítica dos moldes ideológicos de seu tempo presentes na narrativa machadiana. Em “Um nó ideológico: notas sobre o enlace de perspectivas em Machado de Assis” [1988], segundo ele podemos partir do seguinte eixo interpretativo:
A metáfora do nó parece ajustar-se à trama ideológica que se pode reconhecer na obra ficcional de Machado de Assis.
Por que nó ideológico? Porque a expressão remete à imagem de vários fios unidos de modo intrincado, de tal maneira que não se possa seguir o percurso de um sem tocar nos outros. A operação que os desata e os estira, um ao lado do outro, só ganha sentido histórico e formal se o intérprete os reunir de novo (Bosi, 2008, p. 7).
Na obra machadiana, em resumo, a feitura artística como cronista e crítico literário sobrevêm com a ideia da “crítica às avessas” na elaboração pelo jovem escritor na maneira de como o nexo retórico e o narrativo se configurou na maneira de expor que o ridículo é levado a sério por aqueles que o acreditam; e a seriedade do mundo é tratada como se fosse ridicularização de nós mesmos. Aqui temos o Machado e seu gentleman Brás Cubas. Todavia, Machado iniciou-se nos escritos em jornais na juventude e isto culminou numa síntese, de modo a ridicularizar um universo patético, na qual a sua finalidade reside em mostrar a absurdidade e a irracionalidade da vida acerca da “miséria humana” no narrador Brás Cubas. O escritor percebe perspicazmente as contradições sociais pelas lentes dos “de baixo” num primeiro instante; e, consequentemente, na alternância de perspectiva pelas lentes dos “de cima”, as personagens narradoras, ora observadoras, ora partícipes da “compreensão entre classes” e no jogo ideológico, como aponta Schwarz, de uma trama histórica que, por décadas depois se adensariam – golpes, contragolpes, o aprofundamento do imperialismo etc. (2000a).
Na primeira metade do século XIX houve um aumento considerável do comércio negreiro. As transformações burguesas mediante as afirmações das constituições liberais promulgadas nas metrópoles europeias e no manejo das colônias pela exploração do tráfico escravocrata tenderiam a se esfacelar e as nações “independentes” formalmente se constituindo, isto apenas no final do séc. XIX, com todo emaranhado cultural e ideológico presente. Este é o pano de fundo social das “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Como figuras típicas dessa mentalidade liberal-escravista (assunto que Roberto Schwarz trata, com outra finalidade, no ensaio As ideias fora do lugar[i]), Machado apresenta o Cotrim, cunhado de Brás, e o Damasceno, que é cunhado de Cotrim, ambos defensores da liberdade dos proprietários e desfrutadores do tráfico negreiro já nos fins dos anos de 1840 (cap. 92). Damasceno, então contrariado com a pressão britânica contra o tráfico e temeroso dos ideais liberal-democráticos, chega a dizer: “a revolução está às portas”. E adiante: “Que os levasse o diabo os ingleses! Isto não ficava direito sem irem todos eles barra afora” (Assis, 1975).
Quanto aos séculos futuros, Brás Cubas não os entrevê, tão monótonos na semelhança com os que os precederam. “Agora entende-se o que significa em plano universal a frase com que o defunto autor encerrou a própria biografia” (Bosi, 2008, p. 30). É a famosa frase que as gerações transmitem aos pósteros é o legado da sua miséria. Brás Cubas tem um tom debochado, mas é cético. Na fortuna crítica da narrativa machadiana, segundo a interpretação de conteúdo aqui esboçado, chegamos a um ponto que os ideais “democráticos” e a defesa das “conquistas” históricas estão à bancarrota do liberalismo como fachada de uma malha ideológica complicada. O escritor ridicularizava a concepção positivista e progressiva da História, que era partilhada pelos discípulos de Auguste Comte e de Herbert Spencer.
Aqui reside o ceticismo filosófico-político de Machado: a natureza o arrebata ao cimo de uma montanha e o faz contemplar, através de um nevoeiro, o desfile dos séculos, a alegoria da História. Os cenários sucedem-se, as civilizações aparecem e desaparecem, crescendo umas sobre as ruínas das outras. O espetáculo, que poderia ser grandioso, acaba virando pesadelo. Assim, os tempos se aceleram até chegar o presente; a irremediável produção, a destruição e a eterna conservação da “natureza” à custa de sucessivas gerações, e tão logo diz Brás Cubas: “todas elas pontuais na sepultura”. E prossegue: “O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste” (Assis, 1975). Mas se Machado, por outro lado, passava longe de ser “socialista” ou coisa que o valha (e que inclusive teve certas inclinações tidas como “conservadoras” aos olhos de hoje), ao menos não se fazia em concessões ao ridículo e ao absurdo que estava em sua volta na matéria social e literária.
Considerações finais
Em síntese, podemos sustentar que, como mencionado, desde muito cedo Machado, ao redigir suas críticas teatrais, sobretudo acerca do cenário artístico brasileiro, foi um prelúdio lúcido do que viria a ser sua prosa de maturidade, cuja verve irônica nunca foi um recurso estilístico em si, mas estava no próprio drama social brasileiro. A face social da forma literária, segundo Schwarz. Como notamos, Machado pensava o teatro como termômetro da civilização, de um povo. Por isso, em seus escritos aos jornais conclamava aos seus leitores: “Ao Teatro!”. Para ele o teatro mostra as facetas de uma sociedade “frívola, filosófica, castilha, avara, interesseira, exaltada, cheia de flores e espinhos, dores e prazeres, de sorriso e lágrimas!” (Faria, 2008, p. 24).
Em suma, a prosa machadiana se funda desde cedo o manto do “distanciamento fingido”, da “neutralidade aparente”, a escamotear as “arestas cortantes” da ironia, nos dizeres de Linda Hutcheon (Hutcheon, 2000, p. 63). Assim, Machado punha à prova a competência também de seus adversários na leitura do que estava implícito nas crônicas-críticas (teatrais) do Dr. Semana. Nas Memórias póstumas, por sua vez, o nosso sujeito delirante conhecerá algumas vicissitudes. A volubilidade moral de Brás Cubas, por outro lado, revela algo sobre a sociedade da qual ele se espelha. O defunto-autor é um herdeiro, um sujeito que vive às custas das desgraças ao redor; ele ri e se deleita dos amores que vive e os acaba, das “aventuras galantes e as suas safadezas de ricaço irresponsável”, segundo Bosi (Bosi, 2008, p. 16); porém, ao satirizar a escravidão, não como destinação, está a denunciar a ideologia excludente e preconceituosa do velho liberalismo oligárquico (Bosi, 2008, p. 23 segs.).
O drama social na crítica machadiana não é senão um reflexo cuja forma distorcida é o acerto de contas não acertado com nosso passado. Em sua literatura aparece o aspecto de que a ideologia corrente em seu tempo usava das certezas supostamente científicas de certa época para legitimar nossa dominação (caso do evolucionismo manipulado pelo imperialismo): o suposto “pessimismo” que a contesta, ou o ceticismo que dela duvidaria, exerceria uma função satírica de feitura não moralista, mas reduzido ao conteúdo literário sua protoforma necessária. Na forma literária de Machado tal distorção na letra é causada no espírito, porque se mostra em como o enredo é, no fundo, “Minha vida, meus mortos / Meus caminhos tortos” (Secos e Molhados – “Sangue Latino”).
*Jéssica Machado Boeira é mestranda em filosofia na Universidade de Caxias do Sul (UCS).
*Wesley Sousa é doutorando em filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Referências
ASSIS, Machado de. Machado de Assis: crítica literária e textos diversos. In: AZEVEDO, Sílvia; DUSILEK, Adriana; CALLIPO, Daniela (Org.). São Paulo: UNESP, 2013.
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975.
ASSIS, Machado de. O ideal do crítico. Disponível neste link. [1865].
AZEVEDO, Sílvia. Machado de Assis e a crítica às avessas. Bakhtiniana, São Paulo, vol. 10, n. 1, jan./abr., p. 42-56, 2015.
BOSI, Alfredo. Um nó ideológico: notas sobre o enlace de perspectivas em Machado de Assis. Escritos: revista do Centro de Pesquisa da Casa de Rui Barbosa, v. 2, n. 2, p. 7-34, 2008.
CANDIDO, Antônio. Vários Escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977.
FARIA, Roberto. Machado de Assis do Teatro: texto e escritos diversos. São Paulo: Perspectiva, 2008.
HUTCHEON, L. Teoria e política da ironia. Tradução Julio Jeha. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000.
LUKÁCS, György. O romance histórico. Tradução Rubens Enderle. Apresentação Arlenice Silva. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARTINS, Alex. Os fundamentos filosóficos da crítica teatral de Machado de Assis. São Paulo, Machado de Assis em Linha, v. 12, n. 26, p. 47-61, 2019.
PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro (1570-1908). São Paulo: 1° edição; 3° reimpressão. EDUSP, 2020.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro [1977]. São Paulo: Duas Cidades/34, 2000.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis [1990]. 4° edição. São Paulo: Duas Cidades/34, 2000a.
Nota
[i] Ver: Schwarz, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades/34, 2000.
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