A odisseia dos ucranianos

Imagem: Mathias P.R. Reding
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por MARCIO SALGADO*

A Ucrânia precisa do seu cavalo de Troia para vencer uma guerra invencível em termos reais

As denúncias de crimes de guerra se multiplicam na invasão da Ucrânia. O governo do país contabilizou mais de mil e duzentos civis mortos em Kiev e nos subúrbios da capital. As imagens de corpos jogados nas ruas e os fatos relatados pelos sobreviventes são aterradores e serão analisadas pelos organismos internacionais de direitos humanos. Os crimes de guerra foram delimitados nas Convenções de Genebra, em 1949, e ratificados pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU).

Esta é uma guerra injusta – como outras guerras –, contra um país que optou por viver em liberdade, sem entregar-se aos que hoje tentam massacrá-lo. Não começou agora, é verdade, em 2014 a península da Crimeia, que então pertencia à Ucrânia, foi invadida e anexada ao território russo. Os EUA e a União Europeia protestaram e ameaçaram em vão com sanções. Mas não há comparação possível com o que acontece hoje, pois àquela época o então presidente da Ucrânia agia como um fantoche de Vladimir Putin, e ao mundo aquele ato pareceu uma invasão consentida.

Os ucranianos têm demonstrado extrema coragem para enfrentar uma potência militar como a Rússia, muito superior em número de soldados e tecnologia de guerra. Eles resistiram heroicamente, embora tenham sofrido imensas perdas materiais e humanas. E não dá para estimar qual será a partir de agora a estratégia do exército russo, mas com certeza os ataques serão altamente destruidores.

Com o início do conflito foram divulgadas análises geopolíticas que justificam essa violenta agressão por conta de uma identificação da Ucrânia com os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Essa aproximação com o Ocidente e suas consequências econômicas teriam motivado a invasão. Argumentam ainda que os EUA invadem países mundo afora e ninguém reage; que o embargo imposto por este país à Cuba já dura seis décadas; que se a agressão fosse a um país da África silenciavam. São verdades consabidas, que não servem de argumentos contra as sanções comerciais impostas à Rússia nem justificam a guerra. Vale observar que a Assembleia Geral das Nações Unidas já se manifestou, em várias ocasiões, contra o embargo à Cuba.

Os ucranianos têm a obrigação de se alinhar à Rússia porque um dia formaram um só país? Com o fim da União Soviética, em 1991, surgiram quinze países independentes, entre eles, Armênia, Azerbaijão, Belorus, Georgia e Ucrânia, além da própria Rússia. Estamos em pleno século XXI, a autodeterminação de um povo não pode ser violada dessa forma.

A Rússia hoje não é um exemplo de liberdade, muito pelo contrário. A sua população não acompanha os noticiários da guerra, pelo simples fato de que foram proibidos pelo governo, também não exerce o seu direito à livre manifestação e expressão. Em Moscou, milhares de manifestantes foram presos. O principal líder de oposição ao governo Putin, Alexei Navalny, foi recentemente condenado a nove anos de prisão. Antes foi envenenado, em um episódio que não ficou esclarecido, mas conseguiu recuperar-se na Alemanha, quando retornou à Rússia foi preso. É difícil fazer oposição lá, a vida é por um fio.

Já o presidente Volodymyr Zelensky age como um líder, não fugiu de Kiev, e, com sua capacidade de reação tornou-se o protagonista improvável do cenário político. Não da guerra, pois ele não a inventou, e tem consciência de que trava uma luta de Davi contra Golias. Zelensky tenta abrir espaços para um acordo com o presidente russo, enquanto dialoga como os chefes de Estados do Ocidente. Mais adiante, Vladimir Putin – o senhor dessa guerra –, será levado ao Tribunal Penal Internacional.

Uma imagem comovente, entre tantas outras da invasão da Ucrânia, mostrava o pequeno Odisseu, na altura dos seus dez anos, deslocando-se numa rodovia entre centenas de refugiados rumo à fronteira da Polônia. Levava uma mochila numa mão e o que poderia ser a sua identidade, na outra. E chorava. Aparentemente, encontrava-se só naquele mundo de aflições que as guerras provocam. Uma semana após a divulgação das imagens que circularam o mundo nas mídias e redes sociais, surgiram notícias de que a sua mãe o aguardava adiante. Não era uma notícia falsa, havia uma ponta de esperança no encontro entre mãe e filho. Este garoto vai regressar um dia ao seu país destruído. O que se espera dele quando despertar do pesadelo da guerra, que ame os russos?

Odisseo é um nome lendário na poesia de todos os tempos. Encontra-se no poema épico Odisseia, do grego Homero, que viveu por volta do século VIII a.C., e conta o seu retorno ao reino de Ítaca, após a Guerra de Troia. Esta guerra foi um conflito sangrento entre gregos e troianos que durou dez anos. O cerco a Troia está no outro poema homérico intitulado Ilíada. É nele que se descreve a famosa história do Cavalo de Troia que foi ofertado pelos gregos aos seus inimigos e revelou-se a chave para a vitória grega. Dentro do imenso cavalo estavam centenas de soldados que saíram na madrugada, abriram os portões da cidade, enquanto os troianos dormiam embriagados com uma falsa rendição dos guerreiros gregos.

A Ucrânia precisa do seu cavalo de Troia para vencer uma guerra invencível em termos reais. O ataque de Vladimir Putin foi desde sempre um delírio dos tempos de grandeza dos czares da Rússia. Talvez ele não desperte jamais, e, neste caso, é o mundo inteiro que viverá o seu pesadelo.

Além das perdas humanas e do sofrimento de milhões de refugiados, a guerra vai provocar dificuldades comerciais em um contexto de economia globalizada, escassez de alimentos e alteração nos índices do aquecimento global. Os países da Europa serão os mais atingidos, inclusive por conta da importação do gás russo. O autocrata Putin, que governa o país há vinte anos com poderes absolutos, será levado às barras dos tribunais internacionais acusado de crimes contra a humanidade, mas as consequências desse processo são demoradas e incertas.

*Marcio Salgado é jornalista e escritor, autor do romance O filósofo do deserto (Multifoco).

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES