Por MÁRCIO DOS SANTOS*
O debate sobre os valores toleráveis do que é licito ou ilícito dentro da sociedade não se desenvolveram junto com a ciência e a tecnologia
Para Adam Smith, o nome por trás da celebre obra “a riqueza das nações” o Estado deveria “(garantir) o sistema óbvio e simples da liberdade natural”, de acordo com Eduardo Giannetti (p. 121). Além disso “o esforço uniforme, constante e ininterrupto de cada homem a fim de melhorar a suas condições”. Seriam essas duas questões fundamentais para o desenvolvimento da economia.
Adam Smith escreve A riqueza das nações em 1776, no limiar da acumulação capitalista que veremos logo a seguir, com o decurso natural da história e a exploração das nações ocidentais sobre o continente afro-asiático e o latino americano. Esse esforço sim, me parece, muito mais evidente quando falamos das riquezas dessas nações que hoje identificamos com o Norte e sua influência com o Sul Global.
Em um excelente artigo publicado pelo portal Outras Palavras no dia 27 de novembro de 2024, Grieve Chelwa fala do viés colonial no combate a corrupção, mostrando como mega-corporações, o FMI e algumas ONGs usaram o discurso da “transparência” para capturar recursos do Estado. A situação em todo o continente africano continua a chamar a atenção pela exploração de empresas ocidentais, como é o caso de uma empresa Suíça que atua na Zâmbia extraindo minério a preços baixíssimos e exportando o mesmo minério para a comercialização no mercado europeu a preços exorbitantes.
A lógica é antiga, o modos operandis, já conhecido. Instituições como o FMI sangraram a América Latina durante boa parte do século XX, concedendo empréstimos a países como o Brasil em troca de pacotes liberalizantes como privatizações de bens públicos, que fica mais evidente nos anos FHC. A relação exploratória do FMI com a América Latina fica bem evidenciada no livro de Eduardo Galeano As veias abertas da América Latina. Eduardo Galeano, como grande jornalista, dá a muito historiador, uma aula de como se escreve a história, isto é, uma história denúncia. Uma história que, que contextualiza, que fala direto com as pessoas e que abre espaços para a discussão das questões por ele levantadas nessa obra, que em certos aspectos, continua ainda muito atual.
De modo geral, de acordo com as observações do portal da agriq, o tipo de agricultura que predomina no Brasil é a agricultura produzida em larga escala, ou o agronegócio, como nos acostumamos a falar. Como expõe o portal, a mais de 20 anos no mercado, a empresa auxilia agrônomos a emitir receitas agronômicas de maneira inteligente.
Devemos olhar com grande interesse para um projeto do Padre João (PT-MG) que é coordenador da frente parlamentar pela taxação de agrotóxicos no Brasil, um projeto que valoriza a nossa agroecologia e a produção orgânica, o que, abre espaço para que o Brasil consiga com essa taxação, aumentar suas receitas. Essa situação, claro, incomodou bastante o agronegócio com a falácia de que a taxação dos agrotóxicos aumentaria o preço do valor dos produtos da cesta básica brasileira.
Está na hora de admitirmos que, embora, tenhamos uma tradição na produção agrícola, a nossa produção de alimentos é infinitamente menor se compararmos com o que produz o agronegócio, sempre com vistas ao mercado externo e que políticas de segurança alimentar são de extrema importância em um cenário em que, em 2022, observando os números da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (REDE PESSAN), divulgada em junho de 2022, um total de 33,1 milhão de pessoas não tem o que comer no Brasil.
Não levantamos dados mais recentes, mas os indícios de retomada da economia, pós-pandemia, nos levam a crer que o quadro não tenha mudado por completo. Eric Hobsbawn, quando escreveu A era do extremos relata que só depois da segunda guerra mundial a economia europeia conseguiu produzir excedente de alimento, pela primeira vez na história daquele continente. A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), por meio do Instituto Akatu, estimula que 1,3 bilhão de toneladas de alimentos por ano no mundo, o que corresponde a 1/3 do que é produzido anualmente, são desperdiçados.
Mais da metade das pessoas que passam fome no mundo estão na Ásia. Já a prevalência da insegurança alimentar moderada ou grave permaneceu praticamente inalterada na África, na Ásia, na América do Norte e na Europa entre os anos de 2022 e 2023 e se agravou na Oceania. Parece que a conta não tem fechado. Se desperdiçamos tanta comida, porque tanta gente pelo mundo ainda passa fome? Autores como Melhem Adas, continuam, como no século XIX, atribuindo a fome ao crescimento populacional, o que não faz sentido tamanha a capacidade produtiva observada no mundo hoje.
O livro de Eduardo Gianetti Vicios publicos, beneficios privados procura traçar uma analise relacionando o desenvolvimento econômico, científico e tecnológico com a moral humana que, em alguns momentos, como explicitado no primeiro capítulo da obra, viveria em uma espécie de neolítico moral. É evidente o progresso e o avanço que encontramos na ciência e na tecnologia dos últimos cem anos, e é claro que, em parte, podemos atribuir esse avanço tecno-científico as péssimas condições dos operários ingleses do século XIX, ao imperialismo europeu sobre a Ásia e a África e as duas guerras. Hoje bombas “inteligentes” bombardeiam a faixa de Gaza e o Líbano em uma guerra, não necessariamente de Israel contra o Hamas, mas de Israel contra o povo palestino, onde, estima-se que mais de 13,4 mil e 17,5 mil pessoas tenham sofrido ferimentos graves nas extremidades e pelo menos 3,1 mil tiveram membros amputados de acordo com o portal O globo.
Quando Thomas Hobbes falava do “Estado de natureza” apregoava que o medo da morte violenta tornava necessário a ação de um soberano que tomaria para si o monopólio da justiça e garantia da ordem. Mas, como falar de segurança, quando crianças passam fome, são vítimas de ataques a bombas que as ferem ou as matam, por ações orquestradas pelo próprio Estado que devia mantê-las em segurança? Nesse aspecto, os governos do mundo, principalmente do Ocidente, são como crianças brincando com brinquedinhos perigosos.
Não faço aqui um manifesto antitecnologia, muito menos anticiência, mas a nossa capacidade de gerar danos salta aos nossos olhos, enquanto essas mesmas tecnologia e ciência nos permitem produzir comida suficiente para alimentar a todos, ainda falamos no século XXI de fome e insegurança alimentar. A lógica pode ser aplicada a resolução de problemas diversos que se apresentam a nós no dia-a-dia, mas não podemos imputar as pessoas a lógica, porque a lógica é fria.
Costumo conversar com meus alunos que abandonar um carro velho e problemático que nos causa dor de cabeça e prejuízo financeiro é logicamente aceitável, mas que de modo algum podemos aplicar essa mesma lógica a nossos pais ou avós que, adoecidos, precisam de remédios caros para tratamentos caros, porque a moral nos impede de agir assim com pessoas, pelo fato evidente de pessoas não serem objetos materiais.
O que é visível é que o debate sobre os valores toleráveis do que é licito ou ilícito dentro da sociedade não se desenvolveram junto com a ciência e a tecnologia, e ao contrário do que acreditava Adam Smith no século XVIII, o simples desejo do indivíduo em querer melhorar a sua própria condição não garante que a sociedade atinja altos índices de desenvolvimento econômico e de riqueza. A própria “mão invisível” do Estado foi responsável pela maior crise do sistema capitalista já vista nos primeiros trinta anos do século XX.
Defendo que a sociedade civil, governo e ONGs, não só do Brasil, mas do mundo todo, comece a discutir seriamente o que é lícito e o que é ilícito nesse mundo cada vez mais tecnológico e automatizado. Que a humanidade venha antes de qualquer assunto ou interesse, seja ele político, econômico ou militar. Que o direito a vida possa valer como um direito inalienável antes de tudo.
*Márcio dos Santos é professor de história da Secretaria da Educação de São Paulo.
Referências
GIANETTI, Eduardo. Vicios privado, beneficios publicos? A ética na riqueza das nações. Companhia das Letras, São Paulo, 1993.
ADAS, Melhem. A fome: crise ou escândalo?. São Paulo, Editora Moderna, 2004.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX 1914 – 1991. São Paulo, Companhia das letras, 1995.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Tradução de Eduardo de Freitas. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
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