O massacre de Cláudio Castro

image_pdf

Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

Mais de trinta anos após o Carandiru, a espetacularização do extermínio persiste não por ineficiência, mas como projeto de poder que instrumentaliza a morte para fins políticos, desafiando o Estado Democrático de Direito

Décadas de experiência demonstram que o uso estratégico da inteligência é o caminho mais eficaz para enfrentar o tráfico de drogas e as milícias. Operações baseadas em informações precisas reduzem riscos para a população e para os agentes de segurança. Apesar desse consenso, o Brasil insiste em ações espetaculosas e militarizadas, incapazes de desarticular redes criminosas ou atingir os fluxos financeiros que as sustentam.

A recente operação no Rio de Janeiro é exemplo trágico dessa lógica. Com cerca de 2.500 agentes mobilizados, resultou em 117 óbitos —muitos com sinais de execução, tortura e queima de corpos, além da morte de 4 policiais. Essa ação altamente letal, lembrou o Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU, Volker Türk, indica que já é tempo de “fazer cessar um sistema que perpetua racismo, discriminação e injustiça”.

Homem de meia-idade com barba e cabelo curto, vestido com terno escuro, camisa branca e gravata listrada, aparece em foco central com expressão séria, cercado por áreas desfocadas e escuras ao redor.

É intolerável que a governança democrática não consiga garantir que forças de segurança cumpram padrões internacionais de uso da força. Mais de 30 anos depois do Carandiru, onde cheguei com a Comissão Teotônio Vilela na manhã seguinte ao massacre de 111 mortes, também é intolerável que governos estaduais continuem a recorrer a extermínios como luta contra o crime. E mais aterrorizante ainda é constatar que parte da população brasileira vibre com a brutalidade e a desumanização dos moradores das comunidades vulneráveis perpetradas por sucessivos governos.

O governo do Rio agora tenta apagar as evidências de crimes inscritas nos corpos dos mortos. Não há nenhuma expectativa realista de que o governador Cláudio Castro (PL) promova laudos de necropsia independentes. Cabe ao Ministério da Justiça e à Polícia Federal assumir a investigação de possíveis crimes: execuções sumárias, torturas, fraudes processuais e abuso de autoridade. O Ministério Público Federal já cobrou providências.

O ministro do STF Alexandre de Moraes —relator da ADPF 635 (arguição de descumprimento de preceito fundamental), que regula as operações policiais no Rio e que Castro desrespeitou— determinou que o governador preste informações apresentando um relatório circunstanciado da operação, a justificativa para o grau de força empregado e a identificação das forças envolvidas.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, cobrou das autoridades brasileiras pronta investigação, assim como relatores especiais de direitos humanos do órgão, reforçando a proteção aos familiares das vítimas. Organizações civis brasileiras, como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional, fizeram um apelo ao demandarem uma apuração independente e rigorosa.

Apesar desse clamor nacional e internacional, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, manteve um silêncio constrangedor diante dessas cobranças iniciais. No dia seguinte, contudo, ao lado de Castro anunciou a criação de um escritório emergencial para o combate ao crime organizado, unindo as forças federais e estaduais de segurança pública.

Embora a cooperação entre as esferas federativas seja, em geral, positiva, há preocupações sobre sua efetividade e possíveis riscos, especialmente se for comprovado que o governador autorizou ou incentivou a operação policial ilegal. Neste caso, ele poderá ser responsabilizado criminalmente.

O massacre no Rio deve ser compreendido dentro de um contexto político mais amplo, articulado por Castro e outros governadores de extrema direita. Após a condenação e prisão de seu líder máximo e de seus aliados, esses atores políticos buscam utilizar o discurso da guerra contra o tráfico de drogas para desestabilizar o Estado federal e melhorar suas perspectivas nas próximas eleições. Além disso, tentam alinhar-se à narrativa continental de combate ao narcotráfico, atualmente liderada pelos EUA.

Para enfrentar essa ofensiva da extrema direita, é fundamental que haja uma resposta firme das instituições democráticas: uma investigação federal rigorosa, transparente e independente sobre o massacre de Castro.

Esse passo é essencial para garantir a responsabilização dos envolvidos e reforçar o Estado de Direito. Ainda há tempo para que tal resposta seja dada.

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras) [https://amzn.to/4le1Cnw]

Publicado originalmente na Folha de São Paulo

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES