Tragédia no litoral norte

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

Espoliação fundiária e apartheid

Diante da tragédia nas praias do Litoral Norte, especialmente na praia do Sahy, em São Sebastião, em todo o estado de São Paulo se alevanta um surto de solidariedade com os sem poder, inexistente em tempos normais. O que é humanitariamente necessário e justificado. As principais vítimas são as comunidades tradicionais, pobres e negros que moram nas áreas de maior risco, como nas encostas dos morros e favelas à beira de estradas.

Estamos conscientes, afinal, da esteira aparentemente inexorável da mudança climática e da fragilidade da proteção do meio ambiente no Brasil. Estamos cansados de saber, como Carlos Nobre nos relembrou numa memorável entrevista ao jornal Valor econômico, em 23 de fevereiro de 2023, que 10 milhões de brasileiros vivem em área de deslizamentos e enxurradas, sendo dois milhões em área de altíssimo risco. E que 40 mil áreas de risco já foram mapeadas em 825 municípios, sendo urgente a intervenção do Estado nessas áreas.

Também estamos informados dos esforços em prol de uma justiça climática, visando garantir justiça para a população vulnerável aos impactos das mudanças climáticas que geralmente é esquecida: pobres, mulheres, crianças, negros, indígenas, imigrantes, pessoas com deficiência e outras minorias marginalizadas em todo o mundo e especialmente aqui no Brasil.

Levando esses elementos em conta, persiste a questão porque, não apenas no Litoral Norte de São Paulo, mas igualmente nas regiões do Sul e Sudeste e no litoral do Nordeste do Brasil, as comunidades tradicionais, as caiçaras, pescadores e seus descendentes escolhem morar em áreas de risco, sendo assim as principais vítimas dessa tragédia.

Além de se promover políticas de proteção ao meio ambiente e de justiça climática, temos de levar em conta que nos últimos trinta anos, dado patético pois coincidente com o regime constitucional democrático de 1988, se aprofundou uma espoliação fundiária no litoral brasileiro. Promovida por largos contingentes predatórios da elite branca – “ranzinza, medíocre, cobiçosa”, como dizia Darcy Ribeiro – que expropriou a preço de banana as pequenas propriedades das comunidades tradicionais, caiçara e pescadora.

Na mesma direção foi a onda de apropriação ilegal de praias, de áreas protegidas, não apenas para residências secundárias individuais, mas também para hotéis, resorts, condomínios e clubes, convalidadas por decisões corruptas de câmaras de vereadores e prefeitos, muita vez amparadas pela Justiça, pondo em risco a vida daquelas populações e o meio ambiente.

Os brasileiros que antes tinham alguma condição de subsistência, por exemplo, com a pesca e a pequena lavoura, foram obrigados a ver suas mulheres, filhas e filhos condenados ao emprego doméstico com salários vis em residências suntuosas construídas em terrenos ilegais e a trabalhar nas empresas ligadas ao turismo. Mas, além da visão macro dessa situação odiosa, urge estreitarmos o foco e ver como são tratados esses trabalhadores e suas famílias.

Em todos os condomínios se consolidou um apartheid no qual os proprietários brancos contratam empresas privadas de segurança para vigiar e controlar o quotidiano desses trabalhadores, em sua imensa maioria negra. Como pude verificar num condomínio em Angra dos Reis, na guarita os trabalhadores precisam apresentar documentos na entrada e terem revistados na saída suas bolsas e sacolas. Os proprietários e hóspedes brancos não são sujeitos à mesma exigência. Nesse mesmo condomínio, num passeio no litoral, o barqueiro, com muito orgulho, me mostrava as mansões de novos ricos, construídas ilegalmente em áreas protegidas, impunidade assegurada para seus crimes ambientais.

Um condomínio na praia de Laranjeiras, perto de Paraty, que ocupa 1.130 hectares, 80% dos quais em áreas protegidas, dura 40 anos, marcados por ameaças e restrições de passagens aos moradores. Como demonstraram Isabel Menon e Henrique Santana em matéria publicada no jornal Folha de S Paulo, em 27 de fevereiro de 2022, hoje, o maior problema entre os caiçaras é a restrição da passagem. Condôminos, funcionários e moradores da Vila Oratório, dentro do condomínio, podem passar a pé para acessar as praias. Mas quem vive mais afastado nas praias do Sono e Ponta Negra, cuja principal fonte de renda é o turismo, não pode. Para caiçaras e turistas, resta pegar uma van que faz o trajeto entre a marina do condomínio e o ponto de ônibus, das 8h às 18h. Para chegar até a van, a maioria faz o trajeto via lanchas, que dura de 15 a 25 minutos – devem ficar esperando a lancha dentro de um chiqueirinho guardado por policiais armados.

Face a esses abusos, organizações de defesa de direitos humanos das populações espoliadas precisam ser amparadas nas lutas pela justiça de transição, o Estado assegurando a defesa de seus interesses, aumentando a construção de moradias, intervindo nas áreas de risco. Ao mesmo tempo, as práticas racistas e discriminatórias que continuam a prevalecer no apartheid dissimulado nas praias ocupadas ilegalmente, nos condomínios, nos hotéis e resorts de todo o litoral brasileiro, devem ser investigadas e reprimidas pelas polícias, processados e julgados seus responsáveis.

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Antônio Sales Rios Neto Daniel Costa Luis Felipe Miguel Jean Marc Von Der Weid Vanderlei Tenório Ladislau Dowbor José Machado Moita Neto Otaviano Helene Luiz Roberto Alves Atilio A. Boron Eugênio Bucci Leonardo Sacramento Carlos Tautz Remy José Fontana Tarso Genro Alexandre de Lima Castro Tranjan Luciano Nascimento Sergio Amadeu da Silveira Jorge Luiz Souto Maior Eugênio Trivinho Henri Acselrad João Sette Whitaker Ferreira Ricardo Antunes Manchetômetro Priscila Figueiredo Valerio Arcary André Singer Slavoj Žižek Luiz Eduardo Soares Annateresa Fabris Henry Burnett Rafael R. Ioris Osvaldo Coggiola Armando Boito Mário Maestri José Luís Fiori Eliziário Andrade José Costa Júnior Matheus Silveira de Souza Yuri Martins-Fontes Gilberto Maringoni Leonardo Boff Dennis Oliveira João Adolfo Hansen Alexandre de Freitas Barbosa Tadeu Valadares Marilena Chauí João Feres Júnior Chico Alencar Antonio Martins Vladimir Safatle Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Aurélio da Silva Antonino Infranca Ronaldo Tadeu de Souza Rodrigo de Faria Lincoln Secco Gerson Almeida Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Tales Ab'Sáber Fernando Nogueira da Costa Ari Marcelo Solon Sandra Bitencourt Bruno Machado Kátia Gerab Baggio Caio Bugiato Marcelo Módolo Walnice Nogueira Galvão Everaldo de Oliveira Andrade Mariarosaria Fabris Fábio Konder Comparato Leonardo Avritzer Dênis de Moraes Ronald León Núñez Rubens Pinto Lyra Igor Felippe Santos Benicio Viero Schmidt Afrânio Catani Ricardo Abramovay Paulo Martins Alexandre Aragão de Albuquerque Flávio Aguiar José Raimundo Trindade Luiz Bernardo Pericás Heraldo Campos Alysson Leandro Mascaro Luiz Marques João Paulo Ayub Fonseca Jorge Branco Eleutério F. S. Prado Salem Nasser Renato Dagnino Ronald Rocha Bento Prado Jr. Michel Goulart da Silva Fernão Pessoa Ramos Elias Jabbour Marilia Pacheco Fiorillo Érico Andrade Maria Rita Kehl Daniel Afonso da Silva Berenice Bento Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Renato Martins Luiz Werneck Vianna Gabriel Cohn Francisco de Oliveira Barros Júnior Claudio Katz Paulo Capel Narvai Samuel Kilsztajn Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcos Silva João Carlos Salles Celso Favaretto André Márcio Neves Soares Andrés del Río Chico Whitaker Juarez Guimarães Daniel Brazil Ricardo Fabbrini Liszt Vieira Marjorie C. Marona Boaventura de Sousa Santos Luís Fernando Vitagliano Lorenzo Vitral Julian Rodrigues Jean Pierre Chauvin Michael Löwy Celso Frederico Vinício Carrilho Martinez João Lanari Bo Francisco Fernandes Ladeira Paulo Fernandes Silveira José Micaelson Lacerda Morais Flávio R. Kothe João Carlos Loebens Ricardo Musse Manuel Domingos Neto Valerio Arcary Leda Maria Paulani Lucas Fiaschetti Estevez José Geraldo Couto Milton Pinheiro Luiz Carlos Bresser-Pereira Anselm Jappe Marcus Ianoni Andrew Korybko Paulo Nogueira Batista Jr Eduardo Borges Bernardo Ricupero Carla Teixeira Francisco Pereira de Farias José Dirceu Thomas Piketty Gilberto Lopes Eleonora Albano Michael Roberts Denilson Cordeiro Airton Paschoa Marcelo Guimarães Lima

NOVAS PUBLICAÇÕES