O exercício da vigilância

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

Tribunal dos Povos julgará crimes de Jair Bolsonaro contra a humanidade

Eram os idos de 1966. Lorde Bertrand Russell, matemático, filósofo e prêmio Nobel de literatura, revoltado com os crimes na guerra do Vietnã, fez um chamado para um Tribunal Internacional sobre os crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos. O Tribunal Russell, como passou a se chamar, organizou, em 1967, duas sessões em Estocolmo (Suécia) e Roskilde (Dinamarca), sob a presidência de Jean-Paul Sartre, pois Russell, com 93 anos, não podia viajar.

Sartre dizia que “todo homem livre que se interessa por um problema social importante pode, com outros homens igualmente livres, fazer um julgamento, julgamento que pode por sua vez levar outros homens a julgarem como ele”. Outras seções do Tribunal ocorreram, como em 1973, sobre violações de direitos humanos nas ditaduras no Brasil e no Chile.

Depois dessa sessão sobre a América Latina, a tradição do Tribunal Russell foi retomada pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP), criado em Bolonha (Itália), em 1979, por iniciativa do senador Lelio Basso, advogado e antigo resistente contra o fascismo. Mesmo sem ter status judicial, nem reconhecimento de qualquer Estado, esse tribunal de opinião se tornou um fórum permanente para a apresentação de denúncias de povos diante da ausência ou impotência da proteção pelo direito internacional. E assim serve para articular essa visão alternativa do direito criminal internacional, de defesa dos direitos dos povos, muitas vezes tendo contribuído para pressionar as cortes internacionais, como o Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia (Holanda), para melhor e mais rapidamente desempenharem suas funções.

A realização no Brasil da 50ª sessão do Tribunal Permanente dos Povos deverá examinar as violações contra os direitos humanos e crimes contra a humanidade cometidos pelo presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, e seu governo, atingindo populações negras, povos indígenas e trabalhadores na pandemia da Covid-19. Duas audiências serão realizadas nas manhãs dos dias 24 e 25 de maio, virtualmente, em Roma, onde fica a sede da entidade, e ao vivo, na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo.

A denúncia foi apresentada pela Comissão Arns, pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pela Coalizão Negra por Direitos e pela Internacional de Serviços Públicos (ISP), com o apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e outras organizações ligadas à defesa dos direitos humanos. O corpo de jurados será presidido pelo eminente jurista italiano Luigi Ferrajoli, catedrático da Universidade de Roma. O júri terá doze membros, de diferentes países dos hemisférios Norte e Sul, especialistas nas áreas do direito, das ciências sociais e saúde. A ata de acusação foi remetida ao presidente da República e o governo brasileiro poderá exercer seu direito de defesa enviando um representante que poderá intervir nos debates.

Por que o Tribunal é relevante? O filósofo Jacques Derrida ressaltou o imenso valor “de levar a cabo, tão honestamente quanto possível, uma investigação sobre uma política, sobre um projeto político e sua execução. O objetivo não é chegar um veredito que resulte em sanções, mas aprofundar a vigilância dos cidadãos do mundo”.

Por outro lado, o Tribunal Permanente dos Povos ocorre no Brasil em meio a uma conjuntura preocupante, na qual o chefe do Executivo açula a escalada para um golpe contra o estado de direito. Nenhum ator político eleito depois da Constituição de 1988 se pôs, como o atual presidente, com o objetivo de destruir as políticas públicas construídas, visando se tornar um autocrata.

Essa sessão do TPP deverá impactar a consciência política dos brasileiros, tanto quanto aos crimes praticados pelo atual governo federal e sua total impunidade, como deverá também alertar aos cidadãos quanto aos riscos de retrocesso político pregado às escâncaras pelo presidente. Não poderia haver melhor momento.

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

Para outras informações sobre o evento clique em https://comissaoarns.org/pt-br/2022/05/19/tribunal-permante-dos-povos-pandemia-e-autoritarismo/

Para assistir online acesse o canal do You Tube da Comissão Arns.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES