Por ALEXANDRE FAVARO LUCCHESI*
A condecoração transforma um prêmio de paz em instrumento de guerra geopolítica, escancarando o cerco hipócrita que aprisiona uma nação rentista entre o autoritarismo interno e a dependência externa
A concessão do Prêmio Nobel da Paz de 2025 à opositora venezuelana María Corina Machado foi recebida com entusiasmo nos círculos diplomáticos ocidentais e com grande desconforto entre governos e intelectuais latino-americanos. Sob o argumento de homenagear a “resistência democrática”, o Comitê Norueguês reforçou uma narrativa seletiva sobre liberdade e autoritarismo, revelando mais sobre o estado atual da geopolítica global do que sobre a própria Venezuela.
A decisão foi amplamente divulgada como gesto de “esperança democrática”, mas ignora que Machado representa um projeto de direita liberal e pró-mercado, que há anos advoga sanções econômicas e intervenção internacional contra o governo de Nicolás Maduro. Ainda que o autoritarismo chavista mereça crítica contundente, o prêmio a uma liderança abertamente alinhada à estratégia estadunidense na região enseja a legitimação moral para uma agenda de poder.
Trata-se de uma contradição nevrálgica na tradição política latino-americana. A esquerda da região sempre buscou conciliar os princípios fundamentais da defesa da democracia e da afirmação da soberania nacional. De um lado, lutou contra ditaduras e por direitos civis e, de outro, resistiu à subordinação neocolonial e à tutela externa. Quando um desses pilares é rompido, a coerência histórica se esvai perigosamente. São princípios inseparáveis.
Dilemas do chavismo
O chavismo, surgido no fim dos anos 1990, como um projeto de reabilitação nacional diante da ruína neoliberal, reestatizou o petróleo, recuperou a política social e deu voz aos setores historicamente marginalizados. No entanto, após a morte de Chávez e a crise dos preços da commodity, o projeto degenerou num regime de controle militar e economia reprimida, marcado pela censura, perseguição e clientelismo. Em contrapartida, a oposição venezuelana, liderada por figuras como Corina Machado, nunca construiu uma alternativa popular ou soberana. Seu discurso liberal, centrado no mercado e na “restauração das liberdades”, está acompanhado da aceitação tácita da dependência externa e de alianças com potências interessadas no petróleo venezuelano. Assim, o país encontra-se submetido à disputa entre dois movimentos controversos, um de base militar-estatal e outro de base financeira e geopolítica.
Como recorda Edgardo Lander[i], a crise venezuelana é a expressão de um modelo civilizatório baseado na dependência da renda petroleira. O país nunca superou a estrutura de um Estado rentista, que ora se submete aos interesses externos, ora os enfrenta de modo autoritário. Emiliano Terán Mantovani[ii] reforça que a economia venezuelana foi tragada por uma lógica extrativista que produz escassez e centralização de poder, tornando o petróleo tanto uma bênção quanto uma armadilha. Nesse sentido, o impasse tem um caráter estrutural, de um Estado que vive do petróleo, mas que jamais é soberano e apenas administra o preço de sua dependência.
Hipocrisia ocidental
A tragédia venezuelana tampouco pode ser dissociada da hipocrisia ocidental. As sanções impostas pelos EUA e pela UE, sob o discurso dos direitos humanos, agravaram o colapso econômico e o sofrimento popular, sem qualquer eficácia democrática. Regimes autoritários como a Arábia Saudita ou o Egito continuam a ser parceiros estratégicos das potências, sem que isso desperte o mesmo zelo moral. O que aconteceria se Maduro aceitasse negociar com os estadunidenses, abrindo caminho para privatizações e concessões no setor petroleiro? A narrativa global mudaria instantaneamente. O que hoje é retratado como “ditadura” passaria a ser reclassificado como “transição democrática”. Essa seletividade expõe que o problema não é o autoritarismo em si, mas quem o pratica e a quem serve.
A seletividade moral das potências ocidentais, como já denunciavam Noam Chomsky[iii] e Boaventura de Sousa Santos[iv], revela que a retórica democrática raramente se aplica de forma universal. As sanções econômicas, os bloqueios financeiros e as premiações simbólicas, como o Nobel, operam como instrumentos de disciplinamento político. O que se premia, em última instância, é a adesão à ordem global, não o compromisso com os povos. Há os regimes que são aceitáveis e aqueles intoleráveis, conforme a conveniência dos fluxos de capitais e das rotas de energia.
A esquerda latino-americana, ao contrário do que sugerem os analistas mais superficiais, não está refém de Maduro. O que ela busca é uma posição coerente com sua trajetória histórica, aquela que, desde a Revolução Cubana até os governos progressistas do século XXI, preza por democracia e soberania. Essa tensão explica, em parte, a postura de líderes como Lula, Petro e López Obrador, que, em manobra para reafirmar a autonomia latino-americana, recusam o maniqueísmo imposto pelo eixo euro-atlântico. Afinal, a democracia que não respeita a soberania dos povos é apenas uma versão moralizada da dependência.
Há, evidentemente, uma dimensão incontornável na denúncia de fraude eleitoral e no repúdio ao autoritarismo de Nicolás Maduro. Nenhum projeto popular pode subsistir à custa da supressão de liberdades civis ou da manipulação das urnas. Contudo, é preciso reconhecer que o autoritarismo do presente nasce também da violência política do passado. As ações golpistas da direita empresarial e política venezuelana, que desde o golpe de 2002 contra Hugo Chávez busca derrubar o chavismo por meios extra-institucionais, corroeram os próprios fundamentos da convivência democrática.
Sabotagem e cerco
Como aponta Margarita López Maya[v], a radicalização do governo não se explica sem considerar a permanente estratégia de sabotagem e cerco internacional que inviabilizou as vias de moderação e diálogo. Em reação, o Estado venezuelano transformou-se em fortaleza, militarizando a política e convertendo a desconfiança em método de governo. Nesse sentido, a defesa de “princípios democráticos universais” de Corina Machado não pode ser justa se reproduz a mesma lógica golpista e excludente que deu origem ao impasse atual. A Venezuela tornou-se, assim, o retrato do círculo vicioso da direita que usou a violência para derrotar um projeto popular e uma esquerda que, acuada, institucionalizou a repressão para se defender do golpe.
A entrega do Nobel da Paz a María Corina Machado é uma escolha arbitrária que mostra o esvaziamento simbólico de um prêmio que, há muito, confunde-se com os interesses de poder global. Sob o verniz da paz, legitima-se o enfraquecimento de Estados soberanos e o redesenho político de regiões inteiras em nome da “liberdade”. A Venezuela, com sua riqueza petrolífera e seu destino sequestrado, é o espelho da tragédia latino-americana de nações ricas em recursos naturais e destituídas de autonomia, divididas e incapazes de romper o cerco da hipocrisia internacional. O Nobel de María Corina Machado revela a contradição de um mundo que celebra opositores alinhados aos EUA enquanto silencia diante da tragédia estrutural imposta à nação venezuelana.
*Alexandre Favaro Lucchesi é professor de Relações Internacionais na UFABC. Autor, entre outros livros, de Integração financeira e regulação bancária na zona do euro entre 1999 e 2016 (Editora Dialética). [https://amzn.to/4nL03hO]
Notas
[i] LANDER, Edgardo. Crisis civilizatoria, límites del capital y transición al postcapitalismo. Buenos Aires: CLACSO, 2019.
[ii] TERÁN MANTOVANI, Emiliano. La crisis del capitalismo rentístico y el neoliberalismo mutante (1983-2013). Documentos de trabajo N.º 5. Fundación Centro de Estudios Latinoamericanos Rómulo Gallegos, 2014
[iii] CHOMSKY, Noam. O império americano: Hegemonia ou Sobrevivência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
[iv] SANTOS, Boaventura de Sousa. O futuro começa agora: da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021.
[v] LÓPEZ MAYA, Margarita. El ocaso del chavismo. Venezuela 2005-2015. Caracas, Colección Historia Política, Editorial Alfa, 2016
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