O militar terraplanista

Imagem_Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Dois ministros-generais manipularam grotescamente estatísticas para, agradando o chefe, relativizar a devastação da pandemia. Onde se viu militar atrapalhando cientistas e médicos que trabalham intensivamente para proteger o povo?

Não dá para falar em desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil omitindo o militar. O militar ensinou engenharia, topografia e desenho. Construiu estradas, obras de arte, edifícios públicos monumentais e igrejas antes de o Brasil ter faculdades especializadas. Deu emprego a matemáticos quando não havia função remunerada para tal tipo de cientista. Desenhou mapas com traçados exatos de rios, montanhas e correntes marítimas quando ninguém sabia nada de geografia, cartografia, oceanografia e correntes aéreas.

Impulsionou a veterinária, o militar. Precisava de eqüinos capazes de transportar tropas e armamentos. Desenvolveu estudos agronômicos para garantir pastos aos animais e tecnologia de alimentos para ter produtos saudáveis para alimentar a tropa.

E mais: estudou e renovou a medicina, as ciências farmacêuticas e a odontologia ciente de que, sem vencer pestes, remendar ossos e curar feridos, não haveria tropa capaz de vencer batalhas. Disseminou hábitos salutares, procedimentos higiênicos e práticas esportivas para dispor de homens fortes.

Introduziu e desenvolveu o estudo da química, física, mineralogia e metalurgia para a produção de armas e munições. Compreendeu que sem dispor de aço da melhor qualidade, explosivos potentes e manipuláveis, barcos resistentes e bons combustíveis não seria credenciado para guerrear.

Foi pioneiro nos estudos estatísticos para saber quantos eram e onde moravam os brasileiros, do contrário não viabilizaria o serviço militar obrigatório universal e continuaria compondo tropas com camponeses infelizes recrutados no laço ou ladrões e assassinos retirados das cadeias e disciplinados na base da chibata. O IBGE foi imprescindível à modernidade militar.

O militar desenvolveu as comunicações e a logística para ter capacidade de operar em grandes espaços territoriais. Indo à guerra, barganhou usina siderúrgica, esteio de múltiplas indústrias.

Dedicou-se aos estudos aeronáuticos, à eletrônica e a computação para contar com aviões e foguetes que ampliassem sua capacidade ofensiva e sua autonomia relativamente ao fornecedor estrangeiro. Foi pioneiro na pesquisa nuclear visando dispor da arma dissuasão capaz de constranger candidatos a donos do mundo.

Estudou e ensinou filosofia a partir da matriz positivista. Enobreceu nosso “opulento léxico” (Euclides). Inaugurou o pensamento geopolítico sistemático (Mário Travassos). Traduziu a sociologia weberiana (Otávio Velho). Popularizou conceitos marxistas e empenhou-se na interpretação do Brasil (Nelson Werneck Sodré).

Gritos no Clube Militar ecoaram pela PETROBRÁS. O militar criou o CNPq e impulsionou a pesquisa científica. Turbinou a CAPES para que o país dispusesse de ensino superior qualificado. Ofereceu bolsas de estudo e criou comitês de avaliação do mérito científico. Garantiu recursos para a criação da Casa Ruy Barbosa e muitas outras instituições relevantes.

Reconheceu as ciências humanas como área do conhecimento científico. Propiciou a disseminação de programas de pós-graduação em sociologia do desenvolvimento, ciências políticas e antropologia. Prendeu, bateu e matou professores, estudantes, artistas e jornalistas que não gostavam da ditadura, mas espalhou universidades país afora. Olival Freire conta que, vendo que a repressão sanguinária afugentar cientistas importantes, o militar promoveu “repatriamento de cérebros”.

O militar inaugurou a FINEP para amparar a inovação. Criou a EMBRAPA para revolucionar a agricultura e a pecuária. Criou a EMBRAER para fabricar aviões e estimulou empresas como a ENGESA e a AVIBRÁS, que inseriram o Brasil no sofisticado comércio internacional de armas e equipamentos bélicos.

O militar amparou o surgimento e a consolidação da engenharia pesada que logo se projetou mundialmente e passou a incomodar os concorrentes estrangeiros.

Meus colegas da Sociedade Brasileira de História da Ciência que não me deixem mentir, mas não dá para descrever o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no Brasil esquecendo os que se preparam para guerrear.

Eis que, como numa tempestade tenebrosa, o militar pirou, surtou, ensandeceu! Baixou Procusto no militar!

Assombrado por um fantasma apelidado de “marxismo cultural”, o militar se abraçou com terraplanistas, criacionistas, negacionistas tresvariados, inimigos jurados da razão.

Primeiro, o militar bateu palmas para o desmonte da engenharia pesada no Brasil. Depois, endossou a venda de empresas estratégicas que ele mesmo ajudou a criar. Finalmente, paraninfou um governo que retira dinheiro das universidades, desidrata agências de fomento à pesquisa, difama os institutos científicos, deixa sem manutenção equipamentos custosos, atenta contra a casa Ruy Barbosa, sabota eventos científicos, corta bolsas de estudo, inclusive as de baixíssimo custo e grande retorno em termos científicos e sociais como as bolsas de iniciação científica! Interrompe a perspectiva de jovens talentos de famílias humildes ingressarem na carreira científica…

Quem quiser acompanhar o lúgubre espetáculo do desmonte da pesquisa científica no Brasil prepare seu estômago e acompanhe as postagens de Ildeu Moreira, presidente da SBPC, nas redes sociais.

Ou assista ao vídeo em que dois ministros-generais manipularam grotescamente estatísticas para, agradando o chefe, relativizar a devastação da pandemia. Onde se viu militar atrapalhando cientistas e médicos que trabalham intensivamente para proteger o povo?

O militar sumiu quando ouviu calado o Presidente da República, em reunião ministerial, resumir a investigação arqueológica à descoberta de “cocô de índio petrificado”.

Senhor Deus dos desgraçados, dizei-nos, Senhor Deus, o que será de nós quando homens pagos para nos proteger perdem o senso?

*Manuel Domingos Neto foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e vice-presidente do CNPq.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Vladimir Safatle Ronaldo Tadeu de Souza Luciano Nascimento Valerio Arcary Kátia Gerab Baggio Celso Frederico Bento Prado Jr. Walnice Nogueira Galvão Anselm Jappe Luiz Carlos Bresser-Pereira Leonardo Sacramento Carlos Tautz Afrânio Catani José Geraldo Couto Eliziário Andrade Atilio A. Boron Valerio Arcary Antonio Martins Paulo Fernandes Silveira Yuri Martins-Fontes Osvaldo Coggiola Liszt Vieira Renato Dagnino Paulo Sérgio Pinheiro Henry Burnett Sandra Bitencourt João Lanari Bo Chico Whitaker Alexandre de Freitas Barbosa Celso Favaretto Luís Fernando Vitagliano Berenice Bento Érico Andrade José Raimundo Trindade Dênis de Moraes Heraldo Campos Claudio Katz Fábio Konder Comparato Andrew Korybko Lorenzo Vitral Paulo Nogueira Batista Jr Bernardo Ricupero Igor Felippe Santos José Machado Moita Neto Luiz Marques João Carlos Salles Tales Ab'Sáber Tadeu Valadares João Sette Whitaker Ferreira Vanderlei Tenório Sergio Amadeu da Silveira Julian Rodrigues Francisco Pereira de Farias Marcelo Módolo Ronald Rocha Airton Paschoa Elias Jabbour Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marcelo Guimarães Lima Alexandre de Lima Castro Tranjan Mário Maestri Carla Teixeira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Jean Marc Von Der Weid Mariarosaria Fabris Manuel Domingos Neto Jorge Luiz Souto Maior Flávio R. Kothe Armando Boito Alysson Leandro Mascaro Samuel Kilsztajn Flávio Aguiar João Adolfo Hansen João Paulo Ayub Fonseca Gerson Almeida Francisco de Oliveira Barros Júnior Lincoln Secco André Singer Chico Alencar André Márcio Neves Soares Marcus Ianoni Caio Bugiato Ricardo Antunes Gilberto Lopes José Costa Júnior Ricardo Abramovay Daniel Brazil Leonardo Avritzer Ladislau Dowbor Ricardo Musse Gabriel Cohn José Micaelson Lacerda Morais Daniel Costa Rodrigo de Faria Paulo Martins Ricardo Fabbrini Marcos Aurélio da Silva Ronald León Núñez Jean Pierre Chauvin Eleutério F. S. Prado Eleonora Albano Rafael R. Ioris João Feres Júnior Bruno Machado Remy José Fontana Salem Nasser Vinício Carrilho Martinez José Dirceu Leonardo Boff Lucas Fiaschetti Estevez Michel Goulart da Silva Priscila Figueiredo Michael Löwy Eduardo Borges Luiz Roberto Alves Leda Maria Paulani Eugênio Bucci Luiz Eduardo Soares Maria Rita Kehl Marjorie C. Marona João Carlos Loebens Luis Felipe Miguel Henri Acselrad Fernando Nogueira da Costa Jorge Branco Marcos Silva Fernão Pessoa Ramos Rubens Pinto Lyra Matheus Silveira de Souza Annateresa Fabris Antonino Infranca Eugênio Trivinho Milton Pinheiro Ari Marcelo Solon Andrés del Río Gilberto Maringoni Antônio Sales Rios Neto Slavoj Žižek Juarez Guimarães José Luís Fiori Michael Roberts Luiz Renato Martins Tarso Genro Paulo Capel Narvai Manchetômetro Everaldo de Oliveira Andrade Denilson Cordeiro Benicio Viero Schmidt Dennis Oliveira Marilia Pacheco Fiorillo Boaventura de Sousa Santos Luiz Werneck Vianna Marilena Chauí Otaviano Helene Alexandre Aragão de Albuquerque Francisco Fernandes Ladeira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Bernardo Pericás Thomas Piketty Daniel Afonso da Silva

NOVAS PUBLICAÇÕES