O país das falcatruas

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Flávio Aguiar*

Fake é uma palavra bonita, não? Tem charme, pois é anglo-saxônica. Traduz-se, normalmente, por “falso”, “fictício”, “enganoso”, “artificial”, palavras que não desfrutam da graça do original. Na verdade ela deveria ser traduzida por uma palavra ainda menos bonita: “falcatrua”, que quer dizer “ação enganosa para prejudicar outrem”.

É o que acontece hoje, em vários universos e níveis. O Brasil está virando uma imensa falcatrua, um imenso fake, se quiserem os mais puristas do prestígio anglo-saxônico das palavras.

Quando escrevo o “Brasil” me refiro a uma imagem que temos deste país que equivale a meio-continente, com 215 milhões de habitantes, seis mil quilômetros de comprimento e outros tantos de largura.

Desde meados do século XIX a imagem “Brasil” foi a de um túnel do tempo, uma passagem vertiginosa ou devagar do passado para o futuro. Vertiginosa: “50 anos em 5”, lema do governo Juscelino nos anos 1950. Devagar: a escravidão, passado que não passa, imagem que mobiliza ainda nas campanhas contra o racismo.

Ao mesmo tempo, existe uma imagem do Brasil que vai tomando mais corpo a cada dia, a partir dos aderentes ao governo de Bolsonaro. É o Brasil das falcatruas intelectuais. Ficamos sabendo que os Beatles eram comunistas, que Elvis Presley queria destruir a família ocidental, que a CIA era infestada por agentes soviéticos que distribuíam LSD em Woodstock, que as letras de Caetano idiotizam os jovens, etc., só para citar as últimas falcatruas.

Mas há coisas mais graves. Por exemplo: a mídia corporativa propaga a ideia de que o país está prosperando. Que um PIB miserável, de 0,6% em três meses, é uma vitória. A mesma mídia que range sob a mão pesada do centurião Bolsonaro, com a outra mão acaricia o bezerro de ouro das negociatas prometidas por Guedes, o incansável promotor das falcatruas chamadas de “privatizações”.

No momento em que escrevo estas linhas o ministro que promove a destruição do meio-ambiente brasileiro está em Madri – na conferência da COP que o governo-falcatrua de Bolosnaro se recusou a sediar – pedindo dinheiro para financiar… financiar o quê? Fazendeiros que queiram devastar a floresta e ainda serem indenizados por isto? Porque é disto que se trata.

A política externa do governo – que poderíamos batizar de “a diplomacia do hambúrguer frito” – promove uma subserviência nunca vista na história do Itamaraty, destruindo uma reputação de profissionalismo construída ao longo de século e meio. Tudo em nome da visão fraudulenta de uma Guerra Fria que não existe mais, esquecendo a outra que existe, e que nada tem de fria, a guerra de interesses entre as potências EUA – Rússia – China e de quebra, a queda de braço com a União Europeia e o enfraquecido Japão. Essa visão fraudulenta da geopolítica chega a tal ponto que ignora que os EUA estão calcando a economia brasileira sob seus tacões, enquanto a China abocanha parcerias com a Petrobras para explorar o pré-sal. Como dizia meu tio afrancesado, chose de loque.

Seria isto uma “mera” idiossincrasia brasileira?

Não parece. A falcatrua campeia solta pelo mundo da mídia e da geopolítica. Veja-se o açodamento com que as autoridades da União Europeia reconheceram o governo fantoche da Bolívia, depois do golpe, pressa só antecipada pela do chanceler brasileiro de pés de barro. O mesmo açodamento reconheceu o pseudo-governo de Guaidó na Venezuela. A própria mídia liberal internacional ficou semanas debatendo se o que acontecia na Bolívia era um golpe ou não. E ficou muito incomodada porque as manifestações de descontentamento na América Latina atrapalharam sua cobertura das manifestações de Hong Kong contra o governo chinês, hoje eleito o novo arqui-inimigo da liberdade, ao lado da Rússia.

Não que eu pense que China e Rússia sejam hoje os defensores de qualquer liberdade. Mas são as imagens negativas que mantém de pé a falcatrua de que o Ocidente é o paraíso da democracia. 

Bom, resta o consolo de que no império das falcatruas o Brasil não está só.

*Flávio Aguiar, escritor, jornalista, é professor aposentado da área de literatura brasileira na USP.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES