O Poder Judiciário no Brasil

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Por Fábio Konder Comparato*

Uma característica permanente da sociedade brasileira é a sua dualidade estrutural; ou seja, por trás do mundo oficial sempre existiu uma realidade de fato bem diversa, dominada pelo poder oligárquico. O corpo de magistrados, entre nós, sempre integrou os quadros dos grupos sociais dominantes, partilhando integralmente sua mentalidade, vale dizer, suas qualidades e defeitos, entre os quais o vício endêmico da corrupção.

No período colonial, a administração da justiça cabia aos “poderosos do sertão”, os quais detinham os postos de coronéis ou capitães-mores da milícia. Unia-se, assim, a força militar com o poderio econômico, o que fazia da administração da justiça uma verdadeira caricatura.

Essa situação permaneceu imutável durante todo o período imperial. Durante a chamada “República Velha”, com apoio nas ideias federalistas, a dominação de fato dos potentados locais sobre os magistrados recrudesceu enormemente. Durante o período getulista, com o curto interregno da Constituição de 1934, todas as garantias constitucionais da magistratura foram suspensas, voltando a vigorar apenas com a Constituição de 1946.

O golpe de Estado de 1964 instaurou um regime empresarial-militar, que suprimiu a totalidade dos direitos e garantias fundamentais, inclusive da magistratura; embora estes últimos tenham sido nominalmente restabelecidos em 1979, com a promulgação da Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Na verdade, o Estado de Direito só voltou a vigorar em nosso país com a promulgação da Constituição de 1988.

Em 2004, a Emenda Constitucional nº 45 criou o Conselho Nacional de Justiça, com a função de controlar todos os órgãos do Judiciário. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, esquivou-se da submissão a esse controle.

Atualmente, impõem-se duas grandes reformas na organização do Poder Judiciário: (1) a ampliação e o aprofundamento do controle de seus órgãos; (2) a instituição de novos instrumentos de controle desses órgãos.

A função judiciária é essencial a toda organização política. Foi a partir da instituição dos juizados reais na Baixa Idade Média, garantindo paz e justiça às populações mais pobres, exploradas pelos barões feudais e menosprezadas pelas autoridades eclesiásticas, que nasceu e pôde desenvolver-se o Estado moderno [1].

Em assim sendo, não se pode deixar de indagar: – A quem há de ser atribuída no Estado a função jurisdicional? Em razão do que, devem os titulares desse poder exercê-lo? É admissível que os órgãos judiciários atuem sem controles?

A resposta a tais perguntas fundamentais não pode ser feita no plano puramente teórico, sem uma análise concreta da realidade social em que se insere a organização política. Tal realidade define-se, essencialmente, por dois fatores intimamente relacionados: de um lado, a estrutura efetiva (e não apenas oficial) de poder dentro da sociedade; de outro lado, a mentalidade coletiva vigente, entendendo-se como tal o conjunto dos valores éticos predominantes no meio social. No Estado contemporâneo, notadamente no quadro da civilização capitalista, a mentalidade coletiva passou a ser moldada decisivamente pelo grupo social detentor do poder supremo, em função de seus próprios interesses.

Comecemos, pois, por tentar definir, com base nesses elementos estruturantes, a característica própria da realidade social brasileira nos cinco séculos de sua formação histórica, para poder compreender, em seguida, a atuação dos órgãos judiciários dentro desse amplo contexto social, e concluir com uma proposta de mudança em função do bem comum.

O dualismo estrutural da sociedade brasileira

Desde os primeiros decênios da colonização portuguesa, a sociedade aqui organizada apresentou um caráter dúplice: por trás do mundo jurídico oficial, protocolarmente respeitado, sempre existiu uma realidade de fato bem diversa, em geral oculta aos olhares externos, realidade essa em tudo conforme aos interesses próprios dos titulares do poder efetivo.

Estes últimos, ao longo de nossa evolução histórica, formaram uma parelha, constituída pela aliança dos potentados econômicos privados com os grandes agentes estatais. Os componentes desse casal político, desde o início da empresa colonizadora – pois a colonização do Brasil, como bem salientou Caio Prado Jr.,[2] teve um caráter nitidamente mercantil – buscaram, antes de tudo, realizar seus próprios interesses e nunca o bem comum do povo.

Na verdade, esse conúbio empresarial-estatal, bem ao contrário do que sustenta a ideologia do liberalismo econômico, é da essência do sistema capitalista [3]. Ora, desde o início da colonização, o Brasil foi dotado de uma estrutura de poder e de uma mentalidade coletiva marcadas pelo “espírito capitalista” de que falou Max Weber.

Em consequência, nunca existiu, no seio de nossos grupos dominantes, uma clara consciência do patrimônio público: os recursos estatais, mesmo quando oriundos de tributos, sempre foram tidos como uma espécie de ativo patrimonial da sociedade de fato, formada pelos empresários privados e os agentes estatais. De onde decorreu o fato de a corrupção só dar ensejo à abertura de processo penal quando de pequeno montante. Para os grandes corruptos – pelo menos até bem pouco tempo, e fora da Administração Central! – sempre prevaleceu o velho costume da impunidade. Ou seja, “suje-se gordo!” como ilustrou Machado de Assis em conto famoso de Relíquias de Casa Velha.

Outro fator decisivo, na consolidação da estrutura de poder e na formação do caráter nacional brasileiro, foi a persistência legal do sistema de trabalho escravo durante quase quatro séculos. Importa salientar que a prática do escravismo não se limitou ao setor empresarial, à época fundamentalmente agrícola, mas abrangeu também, de modo amplo, o meio urbano, a vida doméstica e a própria Igreja Católica. Como assinalou o Visconde de Cairu em carta a um amigo, datada de 1781, “é prova de extrema mendicidade o não ter um escravo”.

Dentre os vários efeitos sócio-políticos engendrados pela escravidão no Brasil, dois merecem destaque.

Em primeiro lugar, a não aceitação, na mentalidade coletiva e nos costumes sociais, do princípio de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos”, como proclama o Artigo Primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A desigualdade social, com a qual nos defrontamos todos os dias, raramente nos escandaliza; ela aparece, ao contrário, como algo inerente à própria natureza humana.

No campo político, predomina a convicção de que o poder só pode ser eficientemente exercido pela camada superior da população, a mal chamada “elite”, e que a soberania popular, expressa logo no primeiro artigo de nossa atual Constituição, é mero ideal retórico. Ainda aí, como se vê, vigora a duplicidade de ordenamentos jurídicos, figurando o oficial como simples fachada do edifício público, em cujo interior – oculto aos olhares externos – a vida se organiza de forma bem diversa.

O segundo efeito grave do escravismo na organização da sociedade brasileira é a tolerância com o abuso de poder, público ou privado, velha herança da imunidade criminal de que sempre gozaram os grandes senhores de escravos. Os excessos ou abusos de poder são considerados fatos normais. Como bons exemplos dessa anomalia institucionalizada, basta lembrar a ausência de punição dos agentes estatais, responsáveis pelas inúmeras atrocidades cometidas sistematicamente durante a ditadura getulista e o regime empresarial-militar instaurado em 1964. Em ambos esses casos paradigmáticos, com o objetivo de “virar a página” ao término do regime de exceção, os oligarcas lançaram mão do instituto da anistia, com o beneplácito do Judiciário.

A posição do Judiciário no contexto da realidade social brasileira

O corpo de magistrados, entre nós, sempre integrou de modo geral os quadros dos grupos sociais dominantes, partilhando integralmente sua mentalidade, vale dizer, suas preferências valorativas, crenças e preconceitos; o que contribuiu decisivamente para consolidar a duplicidade funcional de nossos ordenamentos jurídicos nessa matéria. Ou seja, nossos juízes sempre interpretaram o direito oficial à luz dos interesses dos potentados privados, mancomunados com os agentes estatais, como se passa a expor.

Brasil colônia

Durante todo o período colonial, como as cidades no interior do território eram pouco numerosas e muito afastadas umas das outras, as autoridades judiciárias jamais puderam exercer, efetivamente, suas funções nas vastas áreas onde se estendia sua jurisdição. A consequência natural foi que a administração da justiça coube, inevitavelmente, aos “poderosos do sertão”, os quais detinham os postos de coronéis ou capitães-mores da milícia. Unia-se, assim, a força militar com o poderio econômico, o que fazia da administração da justiça uma verdadeira caricatura.

Os conselheiros do Rei, em Lisboa, procuraram corrigir essa distorção no final do século XVII, editando várias medidas, entre as quais a limitação do tempo de exercício da função militar de capitão-mor e a nomeação de juízes ordinários, em princípio não sujeitos ao poder dos grandes proprietários rurais. Evidentemente, tais medidas não produziram efeito algum, quando mais não fosse porque era impossível encontrar no sertão pessoas alfabetizadas em número suficiente para exercer as funções de magistrados. Levada essa questão ao conhecimento dos conselheiros da Coroa, responderam estes que pouco importava fossem os magistrados analfabetos, contanto que seus auxiliares imediatos soubessem ler e escrever…[4]

Na verdade, foi o forte vínculo de parentesco ou compadrio dos magistrados locais com as famílias de mor qualidade, que levou à criação dos juízes de fora. Como esclareceu em 1715 o Marquês de Angeja, Vice-Rei do Brasil, com essa nova espécie de magistrados procurava-se impedir que os juízes locais “permitissem aos culpados de prosseguir em seus crimes, em razão de parentesco ou deferência”.[5] Isto, sem falar no fato costumeiro de vários juízes tornarem-se fazendeiros ou comerciantes, apesar da incompatibilidade legal do desempenho de funções oficiais com o exercício de uma atividade econômica privada, quer em seu próprio nome, quer por intermédio de parentes ou amigos.

Como instâncias de recurso judiciário, mas exercendo também funções administrativas, tivemos inicialmente os donatários, em seguida os capitães-mores e os capitães-generais, e finalmente o Governador-Geral, depois denominado Vice-Rei. Em seguida, foram criados, com competência recursal e de corregedoria sobre os juízes de primeira instância, os ouvidores de comarca, e acima destes os ouvidores gerais, todos nomeados pelo Rei.  Nos séculos XVII e XVIII, fundaram-se, respectivamente na Bahia e no Rio de Janeiro, dois Tribunais da Relação, com competência revisional em última instância, tribunais esses cujo presidente nato era o Governador Geral, depois Vice-Rei.[6]

Nenhum desses órgãos judiciários superiores, porém, pôde exercer o necessário controle dos atos das autoridades administrativas. Era mesmo costume que os Governadores, na qualidade de presidentes dos Tribunais da Relação, procurassem se conciliar as boas graças dos desembargadores, acrescentando aos ordenados destes, gratificações extraordinárias denominadas propinas.[7] E quanto à fiscalização que devia ser exercida pelo Conselho Ultramarino sobre o conjunto dos altos funcionários aqui em exercício, ela sempre deixou muito a desejar, pois até o século XVIII havia uma só viagem marítima oficial por ano entre Lisboa e o Brasil.

É de se lembrar, aliás, que o primeiro Ouvidor-Geral a exercer suas funções no Brasil, o Desembargador Pero Borges, aqui chegado com Tomé de Souza em 1549, tinha um passado funcional pouco limpo. Em 1547, ele foi condenado a devolver à Fazenda Régia o dinheiro que desviara das obras de construção de um aqueduto, de cuja supervisão fora encarregado, em sua qualidade de Corregedor de Justiça em Elvas, no Alentejo. A mesma sentença suspendeu-o por três anos do exercício de cargos públicos. No entanto, em 17 de dezembro de 1548 o Rei o nomeou Ouvidor-Geral no Brasil, ou seja, a maior autoridade judiciária abaixo do Governador-Geral. Vale dizer: para o exercício de cargos públicos nesta terra as condenações penais anteriores de nada contavam.[8]

Para nos darmos conta da generalidade dos casos de prevaricação de magistrados no período colonial, basta ler alguns ofícios de presidentes dos Tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro no século XVIII.

Em 22 de janeiro de 1725, por exemplo, Vasco Fernandes César de Menezes escreveu da Bahia ao Rei de Portugal nos seguintes termos:“Senhor – Pelo Conselho Ultramarino dou conta a V. Majestade do mal que procedem os Ouvidores do Ceará, Paraíba, Alagoas, Sergipe del Rei, Rio de Janeiro e São Paulo, e das desordens e excessos que se veem todos estes povos tão consternados e oprimidos, que justamente se fazem dignos de que a grandeza e piedade de V. Majestade lhes não dilate o remédio para que, com a dilatação dele não padeçam a última ruína ou precipício a que continuamente os provoca a crueldade e tirania destes bacharéis, que nenhum faz caso deste governo e muito menos desta Relação.”[9]

Por sua vez, em 21 de junho de 1768 o Marquês do Lavradio, na qualidade de Governador e Capitão-General da Capitania da Bahia de Todos os Santos, enviou ofício ao Vice-Rei Conde de Azambuja no Rio de Janeiro, no qual, entre outros fatos relata: “O Corpo da Relação achei-o no estado que V. Excia. sabe a grande liberdade que eles se tinham tomado uns com os outros o interesse público, que eles costumavam tomar nos negócios particulares, em que eles estavam sendo juízes, finalmente a falta de gravidade com que estavam em um lugar tão respeitoso, tudo me tem obrigado a não faltar um só dia em ir presidir a Relação, donde me tem sido por várias vezes necessário mostrar-lhes ou dizer-lhes o modo com que devem conduzir-se, e a resolução em que estou de o não consertar diferentemente. Tenho o gosto de que já hoje há menos disputas naquele lugar, não embaraçam uns os votos dos outros, e procuram favorecer os seus afilhados com mais modéstia, ao menos com um tal rebuço, que é necessário bastante cuidado para se descobrir os seus afilhados particulares; porém, é certo que ainda os há, não considero que estes se acabem enquanto persistirem alguns dos Ministros que aqui se conservam”.[10]

Da mesma forma, em ofício enviado em 1767 ao Secretário de Estado Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal, o Vice-Rei do Brasil, Conde da Cunha, assim se referiu ao Tribunal da Relação do Rio de Janeiro: “Os ministros desta Relação, que deviam concorrer para a boa harmonia do mesmo tribunal e para a boa arrecadação da Real Fazenda, uniram-se ao chanceler João Alberto Castelo Branco, para protegerem homens indignos, e outros devedores de quantias graves à Real Fazenda; estes procedimentos foram tão excessivos que até na mesma Relação e fora dela fizeram algumas desatenções ao procurador da Coroa.”[11]

Nenhuma surpresa, por conseguinte, se desde cedo entre nós, na maior parte dos casos, o serviço judiciário existiu não para fazer justiça, mas para extorquir dinheiro. No famoso Sermão de Santo Antônio Pregando aos Peixes,[12] o Padre Vieira denuncia o fato em palavras candentes: “Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos, ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o Meirinho, come-o o Carcereiro, come-o o Escrivão, come-o o Solicitador, come-o o Advogado, come-o o Inquiridor, come-o a Testemunha, come-o o Julgador, e ainda não está sentenciado e já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.”

Brasil monárquico

A permanente duplicidade de ordenamentos jurídicos – um oficial, raramente aplicado, e outro não oficial, mas sempre efetivo – acentuou-se após a independência do país. Como escreveu Sérgio Buarque de Holanda, “dificilmente se podem compreender os traços dominantes da política imperial sem ter em conta a presença de uma constituição ‘não escrita’ que, com a complacência dos dois partidos, se sobrepõe em geral à carta de 24 e ao mesmo tempo vai solapá-la”.[12]

A revolta política que levou à independência do país fez-se sob a égide de um pequeno grupo intelectuais, fascinados pelos ideais libertários e igualitários da Revolução Francesa, logo depois consolidada em forma monárquica, ideais esses que inspiraram a redação de nossa primeira Carta Política. Para os potentados econômicos locais, porém, o que importava, antes de tudo, era o acesso aos principais cargos administrativos e políticos, monopolizados pelos homens de ultramar.

A Constituição de 1824 estabeleceu, solenemente, “a Divisão e Harmonia dos Poderes Políticos” como “o princípio conservador dos Direitos dos Cidadãos e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece” (art. 9). De acordo com tal princípio, o Poder Judicial passou a ser um dos quatro Poderes Políticos (art. 10). Na vida real, porém, essa proclamada autonomia dos órgãos judiciários em relação aos demais Poderes foi sempre ilusória. O corpo de magistrados permaneceu estreitamente ligado às famílias dos ricos proprietários no plano local, e subordinado ao Poder Executivo central na Corte.

Em 1827, reproduzindo modelo já existente em Portugal, foi criado o cargo de juiz de paz, a ser preenchido por pessoas sem formação específica e não remuneradas, eleitas pelos cidadãos de cada paróquia. O Código de Processo Criminal de 1832, promulgado sob o influxo das ideias liberais, confirmou a inovação e ampliou a competência desses magistrados. Nos processos-crimes, cabia-lhes realizar o corpo de delito, prender e interrogar os suspeitos, bem como denunciá-los perante o juiz de direito. Nos processos cíveis, deviam eles procurar preliminarmente a conciliação entre as partes, tendo competência para julgar as causas de pequeno valor. Além disso, atuavam ainda os juízes de paz em matéria eleitoral, determinando em cada pleito quem teria direito de voto.

Finalmente, competiam ainda a tais magistrados várias funções policiais, tais como executar as posturas das Câmaras de Vereadores sobre ordem e disciplina urbanas, resolver as contendas entre moradores do distrito acerca de caminhos, pastos e danos contra a propriedade alheia, destruir quilombos e comandar a força armada para desfazer ajuntamentos que ameaçassem a ordem estabelecida.

Escusa dizer que tal instituição, malgrado sua aparência democrática, tornou-se, na realidade, um instrumento decisivo no exercício do poder local pelos senhores de engenho e grandes fazendeiros; os quais, aliás, jamais se furtaram, em muitos casos, a se fazerem eleger, eles próprios, como juízes de paz.

Por outro lado, e em aparente contraste com essa hegemonia dos “poderosos do sertão”, o corpo de magistrados, com exceção dos juízes de paz, permaneceu – sobretudo a partir da “política de regresso” dos conservadores, instaurada em 1841 com a reforma do Código de Processo Criminal – submetido ao poder político central. Competia doravante ao próprio Imperador nomear diretamente os juízes de órfãos, os juízes municipais (com funções diversas das dos juízes de paz), os juízes de direito (com competência territorial mais ampla) e os promotores públicos.

Em pouco tempo, o processo de submissão do Judiciário ao Executivo ampliou-se. A tal ponto que, em Circular de 7 de fevereiro de 1856 dirigida aos Presidentes das Províncias, o Imperador determinou que, “competindo ao Poder Judiciário a aplicação aos casos ocorrentes das leis penais, civis, comerciais e dos processos respectivos, cesse o abuso que cometem muitas autoridades judiciárias, deixando de decidir os casos ocorrentes, e sujeitando-os como dúvidas à decisão do governo imperial, pela qual esperam, ainda que tardia seja, sobrestando e demorando a administração da Justiça, que cabe em sua autoridade, e privando assim aos Tribunais Superiores de decidirem em grau de recurso e competentemente as dúvidas que ocorrerem na apreciação dos fatos e aplicação das leis”.[14]

Obviamente, no entanto, por ocasião das nomeações de magistrados locais, os chefes políticos da Corte ou das províncias acabavam sempre por se compor com os grandes senhores rurais, quando mais não fosse porque as eleições políticas eram decididas por estes últimos. Ainda aí, por conseguinte, o ordenamento jurídico oficial não existia para valer, servindo unicamente de fachada do edifício público.

Uma duplicidade ainda mais escandalosa ocorreu, durante todo o Império, em matéria de escravidão. A Constituição de 1824 declarou “desde já abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis” (art. 179, XIX). Em 1830, porém, foi promulgado o Código Criminal, que previu a aplicação da pena de galés. Conforme o disposto em seu art. 44, ela “sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos públicos da província, onde tiver sido cometido o delito, à disposição do Governo”. Escusa dizer que essa espécie de penalidade, tida por não cruel pelo legislador de 1830, só se aplicava de fato aos escravos.

E havia mais. Apesar da expressa proibição constitucional, os cativos foram, até as vésperas da Abolição, mais precisamente até a Lei de 16 de outubro de 1886, marcados com ferro em brasa, e regularmente sujeitos à pena de açoite. O mesmo Código Criminal, em seu art. 60, fixava para os escravos o máximo de 50 (cinquenta) açoites por dia. Mas a disposição legal nunca foi respeitada. Era comum o pobre diabo sofrer até duzentas chibatadas num só dia. A lei referida só foi votada na Câmara dos Deputados porque, pouco antes, dois de quatro escravos condenados a 300 açoites por um tribunal do júri de Paraíba do Sul vieram a falecer.

Tudo isso, sem falar dos castigos mutiladores, como todos os dentes quebrados, dedos decepados ou seios furados.

Ora, até a Abolição, os órgãos judiciários jamais se preocuparam em impedir a aplicação desse direito não escrito da escravidão, quando mais não fosse porque vários magistrados eram proprietários de fazendas, com bom número de escravos.[15]

O melhor exemplo dessa cegueira deliberada dos órgãos judiciários a respeito dos abusos do sistema escravista foi a permanência do tráfico negreiro por longos anos, em situação de gritante ilegalidade.

Um alvará de 26 de janeiro de 1818, baixado pelo Rei português ainda no Brasil, em cumprimento a tratado celebrado com a Inglaterra, determinou a proibição do comércio infame sob pena de perdimento dos escravos, os quais “imediatamente ficarão libertos”. Tornado o país independente, firmou-se com a Inglaterra nova convenção, em 1826, pela qual o tráfico que se fizesse depois de três anos da troca de ratificações seria equiparado à pirataria. Durante a Regência, sob pressão dos ingleses, tal proibição foi reiterada com a promulgação da Lei de 7 de novembro de 1831. Pelo teor desse diploma legal, eram declarados livres “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora”. Eles seriam reexportados “para qualquer parte da África”, e os “importadores” sujeitos a processo penal; entendendo-se por “importadores”, não só o comandante, o mestre e o contramestre da embarcação, mas também os armadores da expedição marítima, bem como todos aqueles que “cientemente comprarem como escravos” as pessoas ilegalmente trazidas ou desembarcadas no Brasil.

Como se tratava simplesmente de uma “lei para inglês ver”, segundo a expressão consagrada, nenhuma das penas nela cominadas foi jamais aplicada em juízo. Calcula-se terem sido para aqui contrabandeados como escravos, desde a promulgação daquele diploma legal até 1850 – quando entrou em vigor a Lei Eusébio de Queiroz, que reiterou a proibição do tráfico negreiro – nada menos do que 750 mil africanos.

Mesmo após a promulgação desta última lei, no entanto, a responsabilização criminal dos traficantes de escravos e seus comparsas deixou de ser plenamente efetivada, dado que a competência para julgar tais crimes era do tribunal do júri, cujos integrantes submetiam-se, obviamente, à pressão dos potentados locais.[16] Como assinalou Saint-Hilaire, “o temor das vinganças, muito fáceis no interior, onde a polícia é quase sem força, contribui a tornar os jurados mais indulgentes; eles são a isso levados pelo hábito bem antigo de ceder a todas as solicitações (empenhos)”. E acrescentou que até 1847 a própria legislação em vigor estimulava a “excessiva moleza” dos jurados. [17]

Não era de surpreender, por conseguinte, se por efeito da ausência de controles oficiais efetivos sobre a atuação da magistratura, sua honestidade durante o Império tenha deixado muito a desejar. Os mentores intelectuais da Constituição de 24 de março de 1824, sem dúvida preocupados com a longa tradição de venalidade do corpo judiciário durante o período colonial, decidiram incluir dois dispositivos tendentes a extirpá-la, senão reduzi-la ao máximo:          Art. 156 – Todos os Juízes de Direito e os Oficiais de Justiça são responsáveis pelos abusos de poder e prevaricações que cometerem no exercício de seus Empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por Lei regulamentar.

Art. 157 – Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo obedecida na Lei.

Não se sabe se tais determinações constitucionais foram cumpridas. O que se sabe, porém, é que alguns ilustres viajantes estrangeiros – e até o próprio Imperador D. Pedro II – fizeram questão de pôr em foco a generalizada corrupção da magistratura, que grassou durante o período monárquico.

No relato de sua Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, efetuada no segundo decênio do século XIX, Auguste de Saint-Hilaire comenta que “em um país no qual uma longa escravidão fez, por assim dizer, da corrupção uma espécie de hábito, os magistrados, libertos de qualquer espécie de vigilância, podem impunemente ceder às tentações”.[18]

Na mesma época, o comerciante John Luccock, que para cá viera após a Abertura dos Portos, comentando o costume da aquisição por vizinhos, em hasta pública, de terras penhoradas pelo não pagamento de impostos, observa: “Nessa transação, observam-se estritamente as formalidades legais e tem-se a ilusão de que a propriedade foi adjudicada ao maior ofertante da hasta pública; mas na realidade, o favoritismo prevalece sobre a justiça e o direito, pois que não há ninguém bastante atrevido para aumentar o lance de uma pessoa de fortuna e influência.” […] “Na realidade, parece ser de regra que em todo o Brasil a Justiça seja comprada. Esse sentimento se acha por tal forma arraigado nos costumes e na maneira geral de pensar, que ninguém o considera ilegal [a tort]; por outro lado, protestar contra a prática de semelhante máxima pareceria não somente ridículo, como serviria apenas para atirar o queixoso em completa ruína.”[19]

Aliás, como apontou Charles Darwin em seu diário da viagem do Beagle,[20] em data de 3 de julho de 1832, quando fazia estadia no Brasil, a desonestidade da Justiça era apenas uma parte da corrupção generalizada do serviço público: “Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados. Um homem pode tornar-se marujo ou médico, ou assumir qualquer outra profissão, se puder pagar o suficiente. Foi asseverado com gravidade por brasileiros que a única falha que eles encontraram nas leis inglesas foi a de não poderem perceber que as pessoas ricas e respeitáveis tivessem qualquer vantagem sobre os miseráveis e os pobres”.

Segundo consta, nem mesmo o mais alto tribunal do Império permaneceu isento de corrupção. Em declaração ao Visconde de Sinimbu, D. Pedro II desabafou: “A primeira necessidade da magistratura é a responsabilidade eficaz; e enquanto alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por exemplo, certos prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça, não se conseguirá esse fim”.[21]

O período republicano

A Constituição de 1891, ao dispor sobre o Poder Judiciário, estabeleceu expressamente, mas tão só para os juízes federais, a garantia de vitaliciedade, determinando ainda que “os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos” (art. 57, caput e § 1º). Tal norma deixava supor que essas garantias constitucionais não seriam necessariamente aplicáveis à magistratura estadual; o que felizmente foi afastado.

Durante os governos militares de Deodoro e Floriano, houve grande pressão política para submeter os julgamentos do novo Supremo Tribunal Federal ao poder de controle final do Senado. Como a Carta Política estabelecera, à imagem da Constituição norte-americana, a competência do Senado Federal para julgar os Ministros do Supremo em caso de impeachment, sustentou-se que, mesmo fora dessa hipótese, caberia àquele órgão político rever as decisões da mais alta Corte de Justiça. Essa opinião absurda recebeu longa e profunda refutação por parte Rui Barbosa, em seu discurso de posse do lugar de sócio do Instituto dos Advogados, na sessão de 11 de maio de 1911.[22] Ela foi, afinal, abandonada.

Registre-se, porém, a conclusão desalentadora de João Mangabeira sobre atuação do Supremo Tribunal Federal, desde sua instituição até o início do Estado Novo getulista em 1937:[23] “O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada nos dias de risco ou de terror, quando, exatamente, mais necessitada estava ela da lealdade, da fidelidade e da coragem dos seus defensores”.

Registre-se ainda que durante a República Velha, com apoio nas ideias federalistas, a dominação de fato dos potentados locais (os famosos “coronéis”) sobre os magistrados recrudesceu enormemente.

A Constituição de 1934, que vigorou apenas por três anos, acrescentou em benefício dos magistrados, além da vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos, também a garantia da inamovibilidade, sem fazer distinções entre juízes ou tribunais federais e estaduais (art. 64). Dispôs, contudo, que “os juízes, ainda que em disponibilidade, não podem exercer qualquer outra função pública, salvo o magistério e os casos previstos na Constituição”; acrescentando que “a violação deste preceito importa a perda do cargo judiciário e de todas as vantagens correspondentes” (art. 65).

A Constituição de 1946 estabeleceu para os magistrados em geral, além das três garantias acima citadas, a determinação de que “a aposentadoria será compulsória aos setenta anos de idade ou por invalidez comprovada, e facultativa após trinta anos de serviço público, contados na forma da lei” (art. 95).

Instaurado o regime de exceção empresarial-militar com o golpe de Estado de 1964, manteve-se pro forma a vigência do ordenamento constitucional, com a supressão de fato das liberdades e garantias individuais, bem como dos direitos sociais. Em 13 de dezembro de 1968, o chamado Ato Institucional nº 5 emasculou a magistratura, ao decretar a suspensão oficial das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade (art. 6º), além de oficializar a suspensão do habeas corpus “nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular” (art. 10). Isto quanto à Justiça Civil, pois a Justiça Militar, durante toda a duração do regime autoritário, colaborou vergonhosamente na repressão dos opositores políticos.[24]

Extinto o regime autoritário, foi promulgada em 1988 a Constituição Federal em vigor, a qual regulou o Poder Judiciário com muito maior amplitude do que todas as anteriores.

Aliás, já na fase final do regime autoritário, exatamente em 14 de março de 1979, foi editada a Lei Complementar nº 35, instituindo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Entre outras disposições, essa lei criou o Conselho Nacional da Magistratura. Em 1998, porém, em simples despacho de um de seus Ministros, o Supremo Tribunal Federal julgou-o extinto, em razão da superveniência àquela Lei Complementar da Constituição Federal de 1988, a qual nada dispunha a respeito do mencionado Conselho. Ele foi, afinal, ressuscitado, doravante sob a denominação de Conselho Nacional de Justiça, pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004.

A criação desse órgão de controle da magistratura veio, sem dúvida, atender à necessidade – longamente sentida desde o período colonial, como lembrado acima – de se estabelecer um regime de responsabilidade mais amplo e preciso dos magistrados. A reação destes à criação do novo órgão foi, porém, desde logo muito negativa. Antes mesmo de sua publicação oficial, a Emenda nº 45 foi objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3367), proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros. O Supremo Tribunal Federal, embora afastando por unanimidade o vício formal da inconstitucionalidade, decidiu tão só por maioria julgar improcedente a ação em sua totalidade.

Assinale-se, por fim, como evento significativo de um começo de mudança na mentalidade conservadora de nossos magistrados, a fundação em 13 de maio de 1991 da Associação Juízes para a Democracia. Ela tem como objetivos estatutários a defesa do regime democrático de direito, fundado na dignidade da pessoa humana, a democratização interna do Poder Judiciário, bem como a valorização das funções jurisdicionais como autêntico serviço público, isto é, serviço ao povo.

As reformas necessárias na organização do Poder Judiciário

Por todo o exposto, é evidente que algumas reformas se impõem, a fim de eliminar velhos defeitos de funcionamento das instituições de Justiça no nosso país.

Eis as que, em minha opinião, parecem mais importantes.

(1) Ampliar e aprofundar os instrumentos de controle do Poder Judiciário

Sem dúvida, a criação do Conselho Nacional de Justiça representou um avanço no aperfeiçoamento do sistema de controles da magistratura. A atual estruturação do órgão, no entanto, padece de sérios defeitos. Em primeiro lugar, ele não é convenientemente estruturado para exercer suas atribuições em todo o território nacional. O Conselho deveria contar com unidades auxiliares em cada Estado da federação.

Ademais, o órgão é majoritariamente formado por integrantes da própria magistratura sujeita a controle. Por esta razão, ao que parece, o Conselho tem evitado sistematicamente, mesmo nos casos de graves delitos, aplicar aos magistrados, sobretudo os membros de tribunais superiores, a pena de demissão prevista no art. 42, inciso VI, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Assinale-se, ainda, que os integrantes do Supremo Tribunal Federal não se submetem ao controle do Conselho Nacional da Magistratura. Na realidade, aliás, os Ministros de nossa mais alta Corte de Justiça não estão sujeitos a responsabilidade alguma no exercício de suas funções, quer jurisdicionais quer administrativas.

Esse status de total irresponsabilidade foi transposto da Constituição norte-americana, a qual, nesse particular, suscitou a severa crítica de Thomas Jefferson. “Ao pretender estabelecer três departamentos, coordenados e independentes, de modo que cada um deles possa controlar os outros e ser por eles controlado (“that they might check and balance one another”), a Constituição atribuiu a um só deles o direito de prescrever regras para a atuação dos demais, e o fez justamente em favor daquele que não é eleito pela nação e permanece independente dela. Pois a experiência já mostrou que o impeachment estabelecido pela Constituição não chega a ser nem mesmo um espantalho”.[26]

Tampouco entre nós, esse remédio constitucional inspira qualquer espécie de temor no seio do Supremo Tribunal Federal. Isto, sem falar no fato de que os anais de jurisprudência de todo o período republicano não registram caso algum em que os magistrados de nossa mais alta Corte tenham sido acusados de atos criminosos e, em consequência, constrangidos a responder a processo penal. Teríamos, no entanto, a ousadia de afirmar que fatos semelhantes aos que suscitaram a ira de Dom Pedro II em relação ao Supremo Tribunal de Justiça do Império jamais ocorreram no período pós-monárquico?

Ora, é sumamente constrangedor verificar que nem mesmo o cumprimento das disposições do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal pode ser imposto aos seus Ministros.

Tomemos, por exemplo, a norma do art. 337, § 2º desse Regimento, referente ao processamento dos embargos de declaração: “Independentemente de distribuição ou preparo, a petição será dirigida ao relator do acórdão que, sem qualquer outra formalidade, a submeterá a julgamento na primeira sessão da Turma ou do Plenário, conforme o caso”. Pois bem, em caso de repercussão nacional e internacional, qual seja a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 sobre a lei de anistia de 1979, o relator dos embargos de declaração ao acórdão publicado em maio de 2010, até o momento em que escrevo estas linhas – ou seja, há quase 5 (cinco) anos! – apesar de várias vezes solicitado pelo embargante, não submeteu o recurso a julgamento.

Outro exemplo de flagrante desrespeito a norma constante do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal ocorreu durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650, intentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, objetivando o financiamento empresarial de campanhas eleitorais. Em sessão plenária realizada em abril de 2014, após o sexto voto pela procedência da ação – ou seja, quando já se havia atingido a maioria decisória – o Ministro chamado a votar em sequência pediu vista dos autos, e até o início do ano judiciário de 2015 ainda não os havia apresentado para prosseguimento da votação. Ora, o art. 134 do Regimento Interno dispõe, textualmente: “Se algum dos Ministros pedir vista dos autos, deverá apresentá-los, para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subsequente”.

Dispõe a Constituição Federal (art. 5º, inciso XXV) que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O que não é então permitido à lei será por acaso tolerado individualmente a membros de nossa mais alta Corte de Justiça? Ao que parece, por trás do antojo constitucional existe embuçado outro ordenamento, atribuindo a cada Ministro do Supremo Tribunal o poder discricionário de suspender, indefinidamente, o processamento de um recurso, ou o julgamento já iniciado no mérito de qualquer causa, segundo o seu próprio alvitre.

(2) Instituir instrumentos de controle vertical, interno e externo, dos órgãos judiciários.

Tradicionalmente, no sistema das assim chamadas “democracias representativas”, tal como a nossa, os órgãos estatais não são obrigados a prestar contas diretamente ao povo da antijuridicidade de seus atos ou omissões.

Uma exceção a essa regra, entre nós, tem sido a ação popular. No sistema da Constituição de 1824, como visto, qualquer cidadão, na qualidade de substituto processual do povo, podia intentá-la contra juízes de direito e oficiais de justiça, “por suborno, peita, peculato e concussão”. A Constituição Federal de 1891, contudo, não reproduziu essa disposição.

A partir da Constituição de 1934 (art. 114, alínea 38), qualquer cidadão tornou-se parte legítima para pleitear em juízo a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público. A Constituição vigente estende o cabimento dessa ação aos casos de dano ao patrimônio de que o Estado participe, bem como “à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural” (art. 5º, inciso LXXIII). Mas essa ação é incabível contra atos ou omissões dos órgãos judiciários.

Sem dúvida, é permitido a qualquer cidadão denunciar perante o Senado Federal os Ministros do Supremo Tribunal Federal pelos crimes de responsabilidade que cometerem (Lei nº 1.079, de 1950, art. 41). Tal denúncia, porém, jamais ocorreu, nem se imagina que, se um dia fosse feita, os Senadores da República tivessem a coragem de recebê-la e processá-la.

Nessas condições, a fim de cobrir as lacunas no campo do controle vertical dos membros da magistratura, parece sumamente recomendável a criação de ouvidorias públicas perante os órgãos de Justiça de todo o país, sem exceções. Os ouvidores, necessariamente bacharéis em direito, seriam eleitos pelo povo para o exercício dessas funções por prazo determinado, podendo ser reeleitos. Eles teriam competência para abrir e presidir inquéritos, quando houvesse suspeita de violação pelo magistrado dos deveres e proibições expressos na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (artigos 35 e 36).

Se as investigações oficiais confirmarem a suspeita, os ouvidores proporiam, perante o Conselho Nacional da Magistratura, a aplicação das sanções nela previstas. Na hipótese de o inquérito concluir pela prática de crime, caberia ao ouvidor representar ao Ministério Público para a abertura da ação penal cabível.

Ainda no nível do controle vertical, é indispensável deixar expresso na Constituição que o Poder Judiciário nacional tem o dever de cumprir as decisões tomadas pelas cortes de justiça internacionais, quando o Estado Brasileiro aceitou oficialmente a elas submeter-se.

De se lembrar, a propósito, o Caso Gomes Lund e outros v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”), no qual o nosso país foi condenado unanimemente. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, prolatora da decisão em 26 de novembro de 2010, decidiu que “as disposições da Lei de Anistia brasileira, que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos, são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana, ocorridos no Brasil”.

Ora, vários órgãos judiciários brasileiros, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, têm se recusado a cumprir essa decisão internacional; o que levou um partido político a propor, em 15 de maio de 2014, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320, a qual recebeu parecer em grande parte favorável da Procuradoria-Geral da República. A inexecução da mencionada sentença condenatória foi, afinal, oficialmente reconhecida pela própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, em Resolução de 17 de outubro de 2014.

(3) Mudança na cúpula do sistema judiciário

Deve ser lembrada, neste tópico, a Proposta de Emenda Constitucional nº 275/2013, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados. Seu objeto precípuo é a transformação do Supremo Tribunal Federal em uma Corte Constitucional, modificando sua competência e a forma de nomeação de seus Ministros. Ademais, a PEC em questão determina o aumento do número dos Ministros componentes do Superior Tribunal de Justiça, bem como amplia sua competência.

A organização do Supremo Tribunal Federal, com efeito, padece de graves defeitos, tanto na forma de sua composição quanto no tocante ao âmbito de sua competência. São reproduzidas, a seguir, as razões justificativas da mencionada Proposta de Emenda Constitucional.

Em todas as nossas Constituições republicanas, determinou-se, segundo o modelo norte-americano, que a nomeação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal seja feita pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal.

Nos Estados Unidos, o controle senatorial funciona adequadamente, já tendo havido a desaprovação de doze pessoas indicadas pelo Chefe de Estado para a Suprema Corte. Algumas vezes, quando o Chefe de Estado percebe que a pessoa por ele escolhida não será aprovada pelo Senado, retira a indicação.

No Brasil, ao contrário, até hoje o Senado somente rejeitou uma nomeação para o Supremo Tribunal Federal. O fato insólito ocorreu no período conturbado do início da República, quando as arbitrárias intervenções militares decretadas por Floriano Peixoto em vários Estados suscitaram o acolhimento, pelo Supremo Tribunal, da doutrina extensiva do habeas-corpus, sustentada por Rui Barbosa. Indignado, o Marechal Presidente resolveu, em represália, nomear para preencher uma vaga na mais alta Corte de Justiça do país o doutor Barata Ribeiro, que era seu médico pessoal. Literalmente, não houve violação do texto constitucional, pois a Carta de 1891 exigia que os cidadãos nomeados para o Supremo Tribunal Federal tivessem “notável saber e reputação”; o que ninguém podia negar ao Dr. Barata Ribeiro. Foi somente pela Emenda Constitucional de 1926, e em razão daquele episódio, que se resolveu acrescentar o adjetivo “jurídico” à expressão “notável saber”.

Mas essa qualificação aditiva não mudou a prática das nomeações para o Supremo Tribunal Federal. Perdura até hoje a hegemonia absoluta do Chefe de Estado no cumprimento dessa atribuição constitucional. Tal não significa que as pessoas nomeadas não estejam necessariamente à altura do cargo; mas o fato é que, sendo essa escolha feita tão-só pelo Chefe de Estado, este cede facilmente a seus sentimentos pessoais em sua decisão final, além de sofrer toda sorte pressões, em função da multiplicidade de candidaturas informais.

No que diz respeito à competência do Supremo Tribunal Federal, ocorre outra grave deficiência. A Constituição Federal de 1988 atribuiu-lhe, como objetivo precípuo, “a guarda da Constituição” (art. 102). Mas a consecução dessa finalidade maior é simplesmente obliterada pelo acúmulo de atribuições para julgar processos de puro interesse individual ou de grupos privados, sem nenhuma relevância constitucional.

A fim de corrigir esses graves defeitos no funcionamento do Supremo Tribunal Federal, a PEC nº 275/2013 determina seja ele transformado em uma autêntica Corte Constitucional, com ampliação do número de seus membros e redução de sua competência.

A nova Corte seria, assim, composta de 15 (quinze) Ministros,[27] nomeados pelo Presidente do Congresso Nacional, após aprovação de seus nomes pela maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a partir de listas tríplices de candidatos, oriundos da magistratura, do Ministério Público e da advocacia. Tais listas seriam elaboradas, respectivamente, pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Transitoriamente, os atuais Ministros do Supremo Tribunal Federal passariam a compor a Corte Constitucional, com o acréscimo de mais quatro novos membros, nomeados como acima indicado. O novo sistema de nomeação tornaria bem mais difícil do que é hoje exercer com êxito algum lobby em favor de determinada candidatura; além de estabelecer, já de início, uma seleção de candidatos segundo um presumível saber jurídico.

Nos termos da PEC nº 275/2013, a competência da Corte Constitucional seria limitada às causas que dissessem respeito diretamente à interpretação e aplicação da Lei Maior, transferindo-se todas as demais à competência do Superior Tribunal de Justiça.

De acordo com a Proposta em foco, o Superior Tribunal de Justiça teria uma composição semelhante à da Corte Constitucional, mas contaria doravante com um número mínimo de 60 (sessenta) Ministros; ou seja, quase o dobro do fixado atualmente na Constituição. Os atuais Ministros do Superior Tribunal de Justiça seriam mantidos, providenciando-se a nomeação dos futuros Ministros na forma do disposto no art. 104 da Constituição Federal, com a nova redação constante da proposta.

Conclusão

Em passagem famosa de O Espírito das Leis,[28] Montesquieu, ao aceitar o ensinamento de John Locke a respeito da necessária tripartição de poderes na sociedade política, conclui: “Des trois puissances dont nous avons parlé, celle de juger est en quelque façon nulle”. A assertiva parece flagrantemente contraditória, pois como reconhecer no Judiciário um Poder do Estado, e ao mesmo tempo negar-lhe todo poder?

Na verdade, a incongruência verbal é superada quando se estabelece a distinção, que o próprio Montesquieu fez, entre o poder estatuinte (la faculté de statuer) e o poder impediente (la faculté d’empêcher).[29] Em Roma, por exemplo, os tribunos da plebe não tinham poder algum de criar leis ou ordenar a prática de atos jurídicos; mas a tribunicia potestas (sempre temida pelo patriciado) compreendia, entre outras competências, a de vetar qualquer ato de titular de cargo público, contrário aos interesses da plebe.

Com base nessa distinção conceitual, percebe-se, desde logo, que ao Judiciário não compete nenhum poder estatuinte de criar normas gerais ou organizar serviços públicos. Mas ele possui no mais alto grau o poder impediente de corrigir e reparar, não apenas os desmandos dos demais órgãos públicos (e também dos particulares dotados de poder na sociedade), mas também em tese o de suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais no exercício de suas funções.

Ora, para que isto suceda plenamente é indispensável o estabelecimento de um sistema efetivo de controle dos órgãos judiciários, como frisado acima. Ainda aí, importa lembrar a sábia lição de Montesquieu:[30] “É uma experiência eterna que todo homem que dispõe de poder” – e devemos acrescentar, todo órgão estatal dotado de poder, mesmo constitucional – “é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites”.

Saberemos um dia atender a essa exigência fundamental para a verdadeira instituição do Estado de Direito em nosso país?

*Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

Estudo em homenagem ao Professor e Magistrado Enrique Ricardo Lewandowski.

Notas

[1] Veja-se, a propósito, o estudo de Joseph R. Strayer, On the Origins of the Modern State, Princeton University Press, 1970, pp. 38 e ss.

[2] Formação do Brasil Contemporâneo, primeira edição em 1942.

[3] Cf. Fernand Braudel, La dynamique du capitalisme, Flammarion, Paris, 2008, pág. 68.

[4] Sobre todo esse assunto, cf. C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil – 1695/1750, University of California Press, 1962, pp. 209, 306 e ss.

[5] Cf. Stuart B. Schwartz, Sovereignty and Society in Colonial Brazil – The High Court of Bahia and its Judges, 1609-1751, University of California Press, 1973, pp. 257/258 ; 275 e ss.  Em 2011, foi editada a tradução em português dessa obra pela Companhia das Letras.

[6] O Tribunal da Relação da Bahia foi inaugurado em 1609 e funcionou até 1751, ano em que foi criado o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro.

[7] Stuart B. Schwartz, op. cit., p. 272.

[8] Cf. Eduardo Bueno, Ficha Suja, in História do Brasil para Ocupados, organização de Luciano Figueiredo, Casa da Palavra, 2013, pp. 254/255.

[8] Citado por Braz do Amaral, em notas e comentários às cartas de Luís dos Santos Vilhena, editadas sob o título A Bahia no Século XVIII, vol. II, Editora Itapuã – Bahia, 1969, pp. 358/359.

[9] Citado por Braz do Amaral, em notas e comentários às cartas de Luís dos Santos Vilhena, editadas sob o título A Bahia no Século XVIII, vol. II, Editora Itapuã – Bahia, 1969, pp. 358/359.

[10] Marquês do Lavradio, Cartas da Bahia 1768-1769, Ministério da Justiça, Arquivo Nacional, 1972, pág. 20.

[11] Apud Arno Wehling e Maria José Wehling, Direito e Justiça no Brasil Colonial – O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808), Renovar (Rio de Janeiro, São Paulo e Recife), 2004, pág. 310.

[12] Pregado em São Luís do Maranhão em 1654.

[13] História Geral da Civilização Brasileira, II – O Brasil Monárquico, 5 Do Império à República, São Paulo (Difusão Europeia do Livro), 1972, pág. 21.

[14] Apud Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, Rio de Janeiro (Editora Nova Aguilar), 1975, pág. 233.

[15] Vejam-se, a esse respeito as Memórias de um Magistrado do Império, do Conselheiro Albino José Barbosa de Oliveira (Companhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana vol. 231, 1943, pp. 246 e ss.), o qual foi desembargador em dois tribunais da relação e tornou-se, no fim da vida, conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

[16] Eis porque o velho Nabuco, em discurso na Câmara, propôs fosse suprimida a competência do júri para julgar tais crimes. Cf. Joaquim Nabuco, Minha Formação, Editora 34, 2012, pp. 171/172.

[17] Voyage dans les Provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine, tomo primeiro, Paris (Arthus Bertrand, Libraire-Éditeur), 1851, pág. 138.

[18] Obra publicada pela Editora Itatiaia, em colaboração com a Editora da Universidade de São Paulo, 1975, pág. 157.

[19] Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil, Editora da Universidade de São Paulo – Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1975, pág. 321.

[20] O Diário do Beagle, Editora UFPR, 2006, pág. 100.

[21] Apud José Murilo de Carvalho, D. Pedro II – Ser ou Não Ser, Companhia das Letras, 2007, pág. 83.

[22] Rui Barbosa, Escritos e Discursos Seletos, Rio de Janeiro, Companhia Aguilar Editora, 1966, pp. 548 e ss.

[23] Rui, O Estadista da República, Coleção Documentos Brasileiros nº 40, Livraria José Olympio Editora, 1943, pág.78.

[24] Rui, O Estadista da República, Coleção Documentos Brasileiros nº 40, Livraria José Olympio Editora, 1943, pág.78.

[25] Veja-se a esse respeito o estudo de Anthony W. Pereira, Political (In)Justice – Authoritarianism and the Rule of Law in Brazil, Chile, and Argentina, University of Pittsburgh Press, 2005; cuja edição brasileira foi publicada sob o título Ditadura e Repressão – O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina, Paz e Terra, 2010. Nesse estudo, enfatiza-se que, enquanto no Chile e na Argentina o Poder Judiciário foi claramente afastado do sistema repressivo, entre nós os órgãos da Justiça Militar não tiveram dificuldade alguma em colaborar com a repressão.

[26] Thomas Jefferson Political Writings, Cambridge University Press, 1999, p. 378.

[27] De se lembrar que a Constituição Federal de 1891, ao criar o Supremo Tribunal Federal, determinou que ele fosse composto de “quinze juízes” (art. 56).

[28] Livro XI, capítulo 6.

[29] Ibidem.

[30] Do Espírito das Leis, Livro XI, capítulo IV.

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