O igualitarismo mercadológico

Imagem: Demian Smit
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

A erosão das condições de vida dos trabalhadores e as iniquidades estruturais da humilhação espalham a frustração com os valores da democracia

As redes sociais se mostraram ativas na ascensão da extrema direita, nos hemisférios Norte e Sul. O teatro cibernético é um influencer digital poderoso, conforme a pesquisa DataFolha sobre as vendas de joias sauditas recebidas pelo inelegível, no mandato que foi tarde. Para 68% dos entrevistados, Jair Bolsonaro sabia das vendas, e 52% acreditam que cometeu um delito. Mas 38% avaliam que o inelegível não cometeu crime, e 17% confiam que não tinha conhecimento. O percentual dos que, com o escudo do fanatismo e da ignorância, rechaçam as provas em contrário é significativo.

Anda à solta o espírito do terrorista já condenado que rugia em um vídeo: “Supremo é o povo. Os caras cagam tanto no Brasil. Acho que vou cagar no Senado. Tem um espelho d’água lá, vou nadar lá. Aquilo é meu”. Somos ainda uma nação marcada pelo colonialismo e pelo patriarcado, que por séculos naturalizou o racismo e a misoginia. Não surpreende a sub representação política dos negros e das mulheres. Entre nós, a república é uma miragem separada da realidade por um muro de proteção a privilégios que remontam às capitanias hereditárias. A distinção entre o público e o privado é uma mera sugestão na Terra brasilis. A cultura do patrimonialismo embaça as lentes.

Evidentemente o fato de algo se situar no espaço comum não confere sua propriedade a ninguém. No entanto, mais de um terço das pessoas raciocinam à maneira do ressentido que, ora, pena atrás das grades. Supõem que, se os presentes eram da União, podiam render dividendos ao mandatário. A massa de manobra de interesses ocultos ignora os mentores intelectuais e os financiadores do caos em 8 de janeiro, para justificar uma intervenção militar com vistas à anulação das eleições. Sequer classificam de “golpe” as agressões violentas contra a Constituição e a soberania popular.

Ao evitar as prisões de pseudopatriotas defronte os quartéis, durante a madrugada do day after, o comandante da 11° Região Militar do Exército ganhou tempo na expectativa de que a inusitada demonstração de força, metabolizada pela vontade geral, mobilizasse os Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs), além dos zumbis tradicionais para derrubar o governo eleito. Contudo, as ruas silenciaram em favor do Estado de direito democrático. O presidente da República, do Supremo Tribunal Federal (STF), da Câmara dos Deputados e do Senado cerraram fileiras com a legalidade. O Alto Comando das Forças Armadas captou a mensagem, somou-a à desautorização da potência imperial em recados reiterados de Joe Biden – e, com o coração partido, puxou o freio de mão.

A estratégia previa um banho de sangue, a exemplo do atentado planejado no aeroporto de Brasília. Não seria a primeira vez que as Forças Armadas violariam o seu compromisso constitucional. Tampouco a dos empresários que conspiraram para instalar o Estado de exceção, aos moldes da ditadura civil-militar de 1964. O ajuste de contas, que não ocorreu na redemocratização a partir de 1985, revelou o erro do centro político (MDB), à época, ao aceitar a transição “por cima” sem julgar os usurpadores do poder. Para Joaquim Nabuco, fazer a Abolição foi fácil; difícil é tirar a propensão escravista d’alma das “elites”. A geração da Escola Militar de Agulhas Negras, sob o regime antidemocrático de antanho, compõe o generalato atual – cujas estrelas equiparam o país a uma loja de conveniência.

A expulsão do outro

As redes sociais recuperam o que Byung-Chul Han denomina de “terror do igual”, em A expulsão do outro: sociedade, percepção e comunicação hoje. Ampliando o escopo do ensaio, é possível afirmar que a positividade do mesmo virou inimiga da negatividade do outro. “A proliferação do igual constitui as transformações patológicas do corpo social”. Assim, a “sobrecomunicação” e o “sobreconsumo” geraram a “depressão” e a “permissividade” contemporâneas. A comunicação deixou de ser comunicativa para ser cumulativa e, o consumo, predatório. Já os consumidores se entopem de filmes e séries, sem limitação temporal. Os algoritmos garantem o que corresponde ao gosto dos fregueses, percebidos como gado para a engorda com o sempre igual, quando se percebe que a estruturação das narrativas obedece a um padrão que se repete à exaustão, dia e noite.

Vive-se a era da “biopolítica” anunciada por Michel Foucault no curso Nascimento da biopolítica, do Collège de France (1978-1979), onde o pensador francês analisa o expansionismo da ideologia neoliberal que mais do que um modelo econômico – universalizou o sujeito “empreendedor de si mesmo”, com critérios empresariais: rentabilidade, produtividade. O apelo à “autenticidade” reforça a compulsão para a individuação. Adoecemos terminalmente de neoliberalismo, “em um Estado sob a vigilância do mercado, em vez de um mercado sob a vigilância do Estado” (aula de 07/02/1979).

Byung-Chul Han destaca as subjetividades reificadas, as quais evocam a mercantilização de tudo e todos. Para pagar a pequena dívida com Vigiar e punir, Foucault é citado na página 83. Semelhante aos pássaros que cantam longe do ninho para não denunciar a sua localização, muita gente boa sofre da amnésia de citação sobre a obra do predecessor a quem mais deve, na academia. E la nave va.

A expulsão do diferente acarreta um processo de destruição da alteridade. Na internet, falta a tensão dialética do outro; sobra a unidade insípida da uniformidade. O terror do igual abrange múltiplas esferas da existência. O neofascismo também se alimenta da dinâmica que orbita as próprias ideias, no emaranhado do eu. A conexão digital entre iguais substitui o encontro presencial com o outro, o que leva a um estreitamento do nosso horizonte de experiências existenciais.

A essência da relação com o outro é a dor pelo deslocamento do centro de gravidade de cada um. “A dor dá lugar, agora, ao ‘curtir’ que propaga o igual”, para contornar a dor de ser e estar. O cálculo reproduz o conhecido. Na arquitetura, o igualitarismo mercadológico é visível nos shopping centers sem janelas para o exterior, feito um sistema fechado para excluir os indesejáveis e, idem, os críticos antissistêmicos.

A sociedade do medo e a sociedade do ódio se condicionam mutuamente, ensina a filosofia política. Um nacionalismo de fachada entrega à iniciativa privada o patrimônio estratégico do país. No desgoverno o entreguismo atingiu a Eletrobras, a Petrobras, o pré-sal e a Base de Alcântara para uso comercial do centro de lançamento de foguetes e satélites. O acordo com os Estados Unidos foi assinado pelo hipócrita que amava o slogan “Brasil acima de tudo”, ma non troppo (mas não muito). E pregava “Deus acima de todos”, meno dei venditori del tempio (menos para os vendilhões do templo).

Sem propostas que estimulem a solidariedade institucional do Estado e o sentido do comum, para uma superação vital-política do Consenso de Washington, segmentos desinformados são cooptados pela demagogia da extrema direita para canalizar a insatisfação com o status quo.

Um breve balanço

A erosão das condições de vida dos trabalhadores e as iniquidades estruturais da humilhação espalham a frustração com os valores da democracia. A autonomização da economia em face da política mina a organização social fundada nos partidos. A falsa independência do Banco Central confirma o controle do mercado, no caso, de capitais sobre a política monetária nacional. Segundo o Global Wealth Report 2023, 58,7% da população brasileira padece de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave), enquanto metade da riqueza (48,4%) está de posse de 1% de chupacabras. É preciso erradicar do mapa do Brasil tamanha vergonha. A taxação dos ricos é uma questão moral, de solidária empatia com os esforços de desconcentração da renda e implementação da justiça fiscal.

O saldo do “governo da esperança” é positivo. No cenário-local, a correlação de forças políticas está mais equalizada, e os efeitos se refletem nas dimensões social, ambiental, cultural e econômica. No cenário-mundo, as viagens do presidente Lula da Silva movimentam peças fundamentais no xadrez da luta de classes, em escala internacional.

A agenda mundial incorpora consensos para resolver os inadiáveis problemas climáticos, atacar as desigualdades, garantir a paz, fortalecer a democracia e reformar as instituições responsáveis pela governança global, sintetiza o estadista brasileiro (Discurso de Abertura na Assembleia Geral da ONU, 19/09). Já balançam os pilares ideológicos do neoliberalismo. O igualitarismo mercadológico perdeu o prazo de validade.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Matheus Silveira de Souza Vladimir Safatle Michael Roberts Julian Rodrigues Flávio Aguiar Rubens Pinto Lyra Chico Whitaker Ricardo Fabbrini Michael Löwy Jorge Luiz Souto Maior Mário Maestri Eugênio Trivinho Paulo Sérgio Pinheiro José Micaelson Lacerda Morais Rodrigo de Faria Ronald León Núñez João Paulo Ayub Fonseca Osvaldo Coggiola José Raimundo Trindade Lorenzo Vitral Jean Pierre Chauvin Ladislau Dowbor Paulo Martins Sergio Amadeu da Silveira Mariarosaria Fabris Marcos Aurélio da Silva Alysson Leandro Mascaro Andrés del Río João Carlos Salles João Adolfo Hansen José Geraldo Couto Antonino Infranca Henry Burnett Jorge Branco Igor Felippe Santos Marcos Silva Alexandre Aragão de Albuquerque Antonio Martins Renato Dagnino André Márcio Neves Soares Dennis Oliveira Francisco de Oliveira Barros Júnior Fernão Pessoa Ramos Slavoj Žižek Vanderlei Tenório Celso Frederico Walnice Nogueira Galvão Everaldo de Oliveira Andrade Armando Boito Celso Favaretto Gilberto Lopes José Costa Júnior Luiz Renato Martins Chico Alencar Elias Jabbour Daniel Afonso da Silva Eleutério F. S. Prado Otaviano Helene Francisco Fernandes Ladeira Annateresa Fabris João Carlos Loebens Daniel Costa Ricardo Antunes Luiz Eduardo Soares Kátia Gerab Baggio Salem Nasser Leda Maria Paulani Luís Fernando Vitagliano Sandra Bitencourt Ricardo Musse Berenice Bento Tarso Genro Valerio Arcary Ari Marcelo Solon Manchetômetro Fábio Konder Comparato Bernardo Ricupero Antônio Sales Rios Neto Gerson Almeida Eduardo Borges Luis Felipe Miguel Rafael R. Ioris Airton Paschoa Ronaldo Tadeu de Souza Bruno Machado Denilson Cordeiro Jean Marc Von Der Weid Bento Prado Jr. Paulo Fernandes Silveira Vinício Carrilho Martinez Atilio A. Boron Remy José Fontana Lincoln Secco Daniel Brazil José Dirceu André Singer Leonardo Sacramento Luiz Roberto Alves Marcelo Módolo Ronald Rocha Paulo Nogueira Batista Jr Eliziário Andrade Ricardo Abramovay Gabriel Cohn Eugênio Bucci Juarez Guimarães Henri Acselrad José Machado Moita Neto Luiz Werneck Vianna Flávio R. Kothe Michel Goulart da Silva Valerio Arcary Bruno Fabricio Alcebino da Silva Alexandre de Lima Castro Tranjan Francisco Pereira de Farias Maria Rita Kehl Marjorie C. Marona Marilena Chauí Yuri Martins-Fontes Eleonora Albano João Feres Júnior Caio Bugiato Luiz Bernardo Pericás Dênis de Moraes Érico Andrade Samuel Kilsztajn Priscila Figueiredo Luciano Nascimento Marcus Ianoni João Lanari Bo Claudio Katz Afrânio Catani Tadeu Valadares Thomas Piketty Boaventura de Sousa Santos Leonardo Avritzer Andrew Korybko João Sette Whitaker Ferreira Carla Teixeira Fernando Nogueira da Costa Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Boff Luiz Marques Lucas Fiaschetti Estevez Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Milton Pinheiro Manuel Domingos Neto Luiz Carlos Bresser-Pereira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Anselm Jappe Benicio Viero Schmidt Marcelo Guimarães Lima Tales Ab'Sáber Heraldo Campos Paulo Capel Narvai Marilia Pacheco Fiorillo Liszt Vieira José Luís Fiori Gilberto Maringoni Carlos Tautz

NOVAS PUBLICAÇÕES