O potencial da biodiversidade

Imagem: Bia Ventureli
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO ABRAMOVAY*

A Amazônia se torna maior que o Brasil na luta pelo desenvolvimento

Não tem precedentes na história da democracia brasileira o papel que a Amazônia está desempenhando na vida política nacional. É lá que está nascendo o primeiro Plano de Recuperação Verde (PRV), iniciativa do Consórcio dos Governadores da Amazônia, hoje presidido pelo Governador Flavio Dino (PSB) e que representa o mais importante documento programático voltado a resolver os problemas brasileiros. O texto, elaborado sob a competente coordenação de Laura Carvalho, economista da FEA-USP, tem duas virtudes fundamentais.

A primeira é que ele consegue agregar vertentes políticas diferentes – e mesmo opostas – em torno de um objetivo comum. É a demonstração prática de que a racionalidade, a informação qualificada e a discussão de conteúdos podem ter mais força do que as agressões, os estereótipos e os preconceitos cujo sucesso na arena pública (e não só brasileira) é crescente. Se em Brasília o presidente da República confirma sua repulsiva condição de pária global ao receber a líder do partido alemão vinculado ao nazismo, na Amazônia os nove governadores credenciam-se como atores internacionais relevantes ao formularem um Plano de Recuperação Verde. É algo cujo alcance vai muito além de uma região, por mais importante que ela seja.

A segunda virtude é que o PRV reinsere o Brasil no mundo. Ele pretende zerar o desmatamento na Amazônia — cujo avanço coloca o Brasil na contramão do esforço global contra a crise climática. Para isso, é fundamental resgatar o valor do multilateralismo democrático que havia resultado no Fundo Amazônia, onde duas nações democráticas (Noruega e Alemanha) apoiam o País com base em resultados (e não em promessas) na luta contra o desmatamento.

O plano rejeita a obscena postura – típica da cultura miliciana – de chantagem contida na ideia de que se não vier dinheiro de fora, o desmatamento continua. No seu lugar, o PRV sinaliza para o fato de que os serviços ecossistêmicos prestados pela floresta à humanidade podem e devem ser remunerados a partir de mecanismos pactuados internacionalmente, por governos, setor privado, organizações da sociedade civil e povos da floresta. A expansão daa áreas protegidas e sua defesa contra os ataques que vêm sofrendo do crime organizado é parte decisiva deste primeiro objetivo de proteção da floresta.

Além desta meta, o plano tem um conjunto de diretrizes para enfrentar um dos maiores paradoxos brasileiros que é o fato de que ali onde está a mais importante sociobiodiversidade do País também se reúnem seus piores indicadores sociais. E este desafio só poderá ser vencido por modelos de crescimento econômico e por tecnologias que fortaleçam o vigor da floresta e dos rios da Amazônia, mas que também estimulem o desenvolvimento sustentável de suas cidades, onde está a maior parte de seus 30 milhões de habitantes.

E claro que, da mesma forma que está ocorrendo no mundo todo, isso vai exigir que se discuta a natureza das infraestruturas necessárias para o desenvolvimento da Amazônia. Contemplar as necessidades das populações da Amazônia em saúde, educação, habitação, mobilidade, energia e, sobretudo, conexão de alta qualidade à Internet, nas cidades e no meio rural, é decisivo para que se interrompa a destruição atual. No lugar de hidrelétricas caras, ineficientes e fontes de corrupção, estradas que se tornam vetores de desmatamento e garimpo clandestino e poluidor, a Amazônia precisa de inovações tecnológicas capazes de promover bem-estar para suas populações florestais, rurais e urbanas.

Mas além do PRV, é também em torno da Amazônia que duzentos cientistas de imenso prestígio internacional se reuniram de forma virtual, durante dezoito meses, produzindo um diagnóstico e um conjunto de propostas destinadas a “Salvar a Amazônia“. A iniciativa, liderada pelo economista norte-americano Jeffrey Sachs, pelo climatologista brasileiro Carlos Nobre e pela bióloga equatoriana Andrea Encalada, resultou num denso relatório, lançado para consulta pública no último dia 14 de julho com a presença de Juan Manuel Santos, ex-presidente da Colômbia.

Nenhuma região do mundo jamais recebeu tanta atenção da comunidade científica e, como ressaltou Jeffrey Sachs durante seu lançamento, já há negociações para que o modelo do Painel Científico para a Amazônia seja replicado para as duas outras grandes florestas tropicais do planeta: a da Indonésia e a da Bacia do Congo. Neste momento, os 33 capítulos do Painel ainda estão em inglês, mas dentro de alguns dias os textos (e seus sumários executivos) estarão disponíveis em português e espanhol. O documento, após esta consulta pública, será lançado na Conferência Climática de Glasgow em novembro deste ano.

Além destas poderosas mobilizações políticas e científicas, é na Amazônia que um importante e diversificado grupo de empresários, ativistas, representantes de povos da floresta, cientistas e dirigentes políticos se reúnem, desde o início de 2020, na Concertação pela Amazônia. Destas discussões emergem documentos sobre diferentes temas referentes ao desenvolvimento da Amazônia — publicados regularmente pela Revista Página 22, abertos para consulta pública.

O Plano de Recuperação Verde, o relatório do Painel Científico para a Amazônia, as discussões e os textos da Concertação mostram que a Amazônia, tornou-se maior que o Brasil num sentido que não é apenas geográfico. É de lá que está emergindo a reflexão coletiva e diversificada sobre o mais importante desafio do país e talvez do continente: como podemos fazer de nossa biodiversidade o vetor fundamental para nossa inserção na vanguarda da inovação científica e tecnológica global e, ao mesmo tempo, em fator decisivo de luta contra a pobreza e as desigualdades?

*Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES