O imperialismo e a disputa de poder no século XXI

Imagem: Aleksejs Bergmanis
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Por BRUNO BEAKLINI*

As capacidades de projeção imperialistas e as formas de arranjo do Sistema Internacional reproduzem formas do capitalismo

Uma das tarefas mais difíceis na análise do Sistema Internacional e em especial de algumas áreas mais sensíveis como a economia política internacional é dialogar com a história contemporânea e aplicar uma correta periodização. Minha pesquisa mais recente foi iniciada com a intenção de fazer um relevo do período que seria verificável no capitalismo mundial pós-2008 e anterior à pandemia do novo Coronavírus, segundo a classificação da Organização Mundial da Saúde (que decretou pandemia em 11 de março de 2020). Embora não seja necessariamente um objeto de polêmica ou o ponto central para interpretar a virada e perda de poder do mundo ocidentalizado durante e logo após o desastroso governo de Donald Trump, esse debate é necessário por algumas razões.

A mais sensível é porque os conceitos são reais ou, ao menos, têm a intenção de interpretar o real, vivido como experiência concreta, e não apenas o universo imaginário (que também forma o real vivido). Ou seja, parto da premissa de que existe imperialismo e existem potências com capacidade de agendas imperiais, incluindo avanços em escalas regionais. A outra situação bem concreta e em diálogo com a primeira é que o poder global não impede o jogo regional ou mesmo continental, mesmo que este seja muito heterodoxo e fira interesses múltiplos simultaneamente. Um exemplo disso é o caso da Turquia na Era Erdogan, ainda dentro do guarda-chuva da OTAN e com política externa extremamente agressiva e contrariando várias potências regionais e globais simultaneamente. Podemos afirmar estas mesmas capacidades para outras potências médias do G20 e países com capacidades semelhantes, como Irã, Paquistão e Malásia.

Embora a presença militar em escala planetária seja ainda exclusiva dos Estados Unidos, algumas outras potências também são herdeiras do colonialismo do século XIX e da Era das Navegações, tais como França e Reino Unido. Também existem impérios tardios que vão se alastrando na esteira do Império matriz, tal é o caso dos EUA. Este país é classificado como promotor do imperialismo na maior parte dos estudos de pós Segunda Guerra e, em especial, ao final da Guerra Fria e Bipolaridade.

Outra razão prática do debate sobre o imperialismo é reconhecer suas formas contemporâneas (saindo da caricatura). Imperialismo não é apenas uma invasão de fuzileiros navais estadunidenses, mas também uma forma superior do capitalismo, e nisso Lênin estava correto (ao menos na classificação), mas não só. Antigos impérios muitas vezes obedecem a lógicas geopolíticas e étnico-territoriais muito anteriores da formação moderna destes Estados. Por exemplo, na tradição russo-bizantina, a União Soviética agiu de forma imperialista no Afeganistão, seguindo a trajetória da disputa imperial anglo-russa nesta mesma região (conhecido como o Grande Jogo). A relação da China com o Vietnã recém-unificado e liberto da invasão dos EUA (guerra sino-vietnamita de 1979) foi semelhante também. Obedecia a uma lógica de rivalidade milenar, ainda que sob os novos formatos dentro da etapa final da guerra fria ou o mundo bipolar. De forma genérica, o jogo de poder na Ásia pode ser assim classificado, com exceção do Grande Oriente Médio (Mundo Árabe e boa parte do Mundo Islâmico), onde incide a luta contra o colonialismo sionista e as perversas tratativas com o fim do Império Otomano, como no “acordo” Sykes-Picot.

Sistema Cinco Olhos e a legitimidade questionada

No século XXI, as capacidades de projeção imperialistas e as formas de arranjo do Sistema Internacional, ao menos no campo da economia, reproduzem formas do capitalismo. Hoje, EUA e o seu Sistema Cinco Olhos (junto da Grã Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) e a União Europeia (empatadas as últimas duas), já não incidem tanto na área core da Ásia. Apesar de ser uma nota positiva, muito do capitalismo se confunde com a integridade da economia global e está sob alguma tutela da vigilância estadunidense. Índia, Irã e Turquia, em segundo plano, também podem exercer pressões em alguma escala, gerando excedentes de poder de modo a articular interesses nacionais com interesses domésticos de outros países. É preciso afirmar algo delicado: é um gesto legítimo que países fronteiriços ou de territórios contíguos, desde que não sejam povoados por colonos invasores (como na Palestina Ocupada em 1948 e em 1967), incidam e sejam influenciados por seus demais vizinhos, fazendo política para além de suas fronteiras e ampliando áreas de influência direta.

Esta legitimidade é radicalmente distinta de fazer guerras de agressão, ou empregar mercenários salafistas e takhfiristas (como os do Daesh, autodenominados de “Estado Islâmico” e sequestrar pautas e causas que a princípio seriam justas). Especificamente agindo contra a legitimidade internacional, temos a situação de monarquias árabes do Golfo, como Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Arábia Saudita. Como formador de ampla instabilidade e agressão permanente, desde a sua “invenção”, está incluído ao “Estado de Israel”, a entidade colonial por excelência. Outro debate urgente seria a respeito dos poderes médios da constelação do G20 e afins, ampliando o conceito de poder médio (Middle Power).

Entre a diversidade e a conformação global, o planeta é mais complexo do que os manuais de negócios internacionais. A constelação de países e territórios autônomos ou semiautônomos são sistemas políticos, formas de governo e regimes distintos, mas em termos de Economia Política Internacional, a soma da concertação estratégica de frações da classe dominante com a elite dirigente pode reproduzir uma projeção no Sistema Internacional ou com este associado. Observemos a corrida ao “eldorado africano”, uma das bases do renascimento de nosso continente co-irmão: China, França, Turquia e até o Brasil (em um belo exercício de cooperação e competição no continente africano, mas dotado de críticas) disputam ou disputaram espaços importantes, além dos EUA de sempre. Há cooperação Sul-Sul, mas sempre dependemos de arranjos locais, política doméstica ou mesmo da correlação de forças com o “centro do ocidente”.

Igualmente é válido debater o tema, pois, quase sempre, o modelo do século XIX, onde há um conjunto de alianças locais que se beneficia da pressão externa (ou da desnacionalização das riquezas e da perda de soberania popular) ainda existe e se reproduz. O domínio interno e associado pode ser motivado por interesses, muitas vezes, de motivação original ideológica (sentido de pertencimento, colonialismo e ausência de decolonialidade), e se posicionam, concomitantemente, ao conflito distributivo interno.

Cabe também observar que a complexidade do tema pede um debate à altura de sua ameaça, incluindo versões muito atuais, como os efeitos quase sempre nefastos da Cooperação Jurídica Internacional (temas permanentemente abordados por este analista); da interpenetração das redes sociais e de grupos de desinformação (o Brasil e a relação com neopentecostais e ultraliberais do Partido Republicano exemplificam o problema); e também de perigosas teses absurdas da “conspiração globalista”.

Por fim, conspiração e presença externa, assim como espionagem e guerras híbridas são assuntos tão evidentes e sérios, que não podemos ser irresponsáveis em confundi-las com absurdas e delirantes “teorias conspiratórias totalizantes”, sem evidências nem conceitos. O debate urge assim como a correta classificação conceitual.

*Bruno Beaklini é cientista político e professor de relações internacionais. Editor dos canais do Estratégia & Análise.

Publicado originalmente na Revista Manutenção.

 

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