Rita Lee (1947 -2023)

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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Homenagem à cantora recém-felecida

Pagu

Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão
Eu sou pau pra toda obra
Deus dá asas a minha cobra
Minha força não é bruta
Não sou freira, nem sou puta
Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem
Sou rainha do meu tanque
Sou Pagu indignada no palanque
Fama de porra louca, tudo bem
Minha mãe é Maria ninguém
Não sou atriz, modelo, dançarina
Meu buraco é mais em cima

Nessa canção de Rita Lee e Zélia Duncan, que também é uma declaração de princípios, vai a demolição clichê por clichê do machismo a par com o conformismo.

A compositora e cantora não tinha papas na língua e dizia as coisas mais ultrajantes com um ar cândido. Doce garota de olhos miosótis, era um furacão. Feminista sempre alerta e avessa ao proselitismo, dava o exemplo e caprichava nos gestos cheios de verve. Quem mais ousaria chamar o câncer que a estava matando de “Jair”?

Antes de mais nada, uma libertária. Era a favor das experiências e nunca negou sua atração pelas drogas, pelo álcool e pelo sexo. Grande trabalhadora, passou a vida apostando em Eros, na alegria, na festa. A Rainha do Rock era uma dionisíaca sem remorsos.

Tente ouvir uma gravação dela sem ficar tomado: o corpo começa a vibrar e a se embalar, em uníssono com a pulsação das cordas e o ribombar da percussão.

Ela sabia que tinha uma voz pequena e às vezes precisava gravar por cima da primeira gravação. Mas seu forte não era a voz, era o balanço inimitável, a graça, a capacidade de fazer-se palhaça. Uma certa inocência – numa mulher tão vivida – transparecia no cunho infantil que sobrenadava de muitas de suas composições. Campeã absoluta em vendagem de discos, nisso sobrepujou todas as cantoras do país. E como performer era ímpar: fazia imitações e criava personagens bufos.

Pagou o preço da independência e da irreverência, e muitas vezes. Foi presa pela ditadura militar, por porte de maconha. Ficou meses na cadeia e recebeu a visita de Elis Regina, que lutou por sua libertação. Elis lhe daria a filha Maria Rita por afilhada e xará, enquanto Rita dedicaria a ela a canção “Doce de pimenta”, alusiva ao apelido de Elis, a Pimentinha. Na missa de sétimo dia desta, na Igreja do Perpétuo Socorro em São Paulo, apenas Rita Lee e o irmão da gaúcha leram os textos litúrgicos.

Além de jogá-la na masmorra, a ditadura encarniçou-se contra ela, mutilando e censurando suas canções. Um exemplo é o verso que consta do laudo oficial do negregado órgão que tanto dano causou às artes por 20 anos. “Me deixa de quatro no ato” acarretou a proibição de Lança-perfume, cujo título é clara metáfora substituindo o erótico pelo entorpecente. O laudo do censor justifica a proibição, acusando o verso, tão gráfico, de “ambiguidade”. Que ambiguidade? Pura denotação, de sentido unívoco.

Uma delícia sua autobiografia, franca e de coração aberto, onde faz as confissões mais descabeladas – e consegue cativar duplamente o fã, tal o jeito singelo com que enuncia as piores revelações. Já era escritora de livros infantis, mas agora se anuncia o segundo volume da autobiografia, aguardado com ansiedade.

Seu interesse por Pagu decorre de tudo o que fazia dela uma libertária, uma feminista, uma pessoa alegre, cheia de vitalidade e senso de humor.

Seria de esperar que o empenho político militante e o trânsito nas esferas rarefeitas dos artistas modernistas, próprios de Pagu, a tornariam avessa a Rita Lee, com quem aparentemente nada tinha em comum. Ledo engano. Rita assumiu a similaridade e a expressou nessa bela canção, uma homenagem compreensiva, mostrando que entendeu perfeitamente a trajetória de Pagu.

Quando indagada sobre ser o ambiente do rock brasileiro uma selva em que para sobreviver é preciso ter culhões, ela declarou que isso não bastava, mais que isso é preciso ter ovários.

Mulher sábia, mulher plena, transgressora e grande artista, de rara inteligência e originalidade única. Vai aqui para ela um poema, um haicai da autoria de Ilka Brunilde Laurito, à guisa de epitáfio:

Vitória da Samotrácia

Que mulher sensata
Perdeu a cabeça
Mas ficou com as asas

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).


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