O prêmio Machado de Assis 2025

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Por DANIEL AFONSO DA SILVA*

Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero

1.

Rubens Ricupero vem de ser contemplado com o prêmio Machado de Assis. A maior honraria da Academia Brasileira de Letras ao conjunto da obra de um autor. Seguramente o maior dístico do gênero no país. Que, doravante, conduz o laureado ao hall dos autores de obras imortais no Brasil.

Alçando-o à companhia dos inesquecíveis Augusto Meyer (1902-1970), Érico Veríssimo (1905-1975), Câmara Cascudo (1898-1986), Gilberto Freyre (1900-1987), Cecília Meireles (1901-1964), Hermes de Lima (1902-1978), Thales de Azevedo (1904-1995), Mario Quintana (1906-1994), Raquel de Queiroz (1910-2003), Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), Antonio Cândido de Mello e Souza (1918-2017), Rubem Fonseca (1925-2020), Carlos Heitor Cony (1926-2018), Ferreira Gullar (1930-2016), Marina Colassanti (1937-2025), Ana Maria Machado, Adélia Prado e outros. Lugar de prestígio. Conquista magistral. Comenda incomparável. À sua altura. Genial.

A diplomacia na construção do Brasil, de 2017, havia-lhe rendido o prêmio Senador José Ermírio de Moraes de melhor livro do ano. Mas foi Memórias, de 2024, que colocou-o de vez no panteão.

Memórias possui variados predicados. Muitos dos quais ainda não totalmente analisados nem explorados. Mas seu aspecto mais encantador e impressionante, que seguramente pesou muito na decisão da Academia, reside em sua capacidade de humanização de seu autor. Quem lê ou relê Memórias com alguma calma vai notando a emergência do Rubens frente ao Ricupero. Do artista frente ao servidor do estado.

Do homme de lettres frente ao distinto diplomata, embaixador, alto funcionário nacional e internacional. Vê-se, em Memórias, Rubens de corpo e alma. Rubens filho, neto, marido, pai e avô. Rubens leitor. Com olhos puídos de vida marinando a arte de escritor. Imenso escritor. Agora reconhecido por esse prêmio. O maior de todos. Machado de Assis.

Para justificar a atribuição do prêmio, o presidente da Academia, Merval Pereira afirmou que o conjunto da obra do laureado reúne “mérito literário e contribuição pública de relevância histórica para o país”. Tudo verdade. Que merece mais verniz. Trata-se do reencontro do barão do Rio Branco (1845-1912) com Machado de Assis (1839-1908). Pois é também a primeira vez que um diplomata pleno e tout court recebe esse prêmio.

João Guimarães Rosa (1908-1967) recebeu-o em 1961. Raul Bopp (1898-1984), em 1977. Mas um nem outro sobressaíram-se puramente como herdeiros do barão. Ambos esmagaram o diplomata no interior do homem de Letras.

Guimarães Rosa produzindo genialidades tipo Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956) e Grande Sertão: Veredas (1956). Raul Bopp restando o mais longevo e impecável poeta da Semana de Arte de 1922. Não sobrando, assim, espaço para outras memórias ou lembranças.

2.

Rubens Ricupero, por seu turno, foi certamente um dos maiores e mais fiéis seguidores dos preceitos do barão. Devoto da diplomacia do conhecimento, conduziu a alquimia diplomática aos níveis mais elevados de excelência, renovação e transmissão. Fazendo-se diplomata acabado. Embaixador e ministro de estado. Alto funcionário. Aos moldes da gente da rua Larga. Ao estilo do barão. Mobilizando inteligência, dedicação, imaginação no escrutínio de gestos e olhares.

Afiançando-se às artes e às letras para alcançar a perfeição do ofício. Fazendo-se para isso verdadeiramente culto e erudito. Indo muito além de somente escrever, falar e representar. Tornando-se historiador. Depois, intérprete do Brasil. E, por fim, construtor do Brasil.

Não se sabe ao certo quando nasce um tipo assim. Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero.

De toda sorte, parecem existir pelo menos dois pontos de não retorno em sua vida. Um em 1937, quando de seu nascimento. Outro em 1958, o seu ingresso no Instituto Rio Branco.

Partindo ao segundo. Caiu num sábado aquele 6 de setembro de 1958, início das provas de admissão do Instituto. O Brasil fluía em glória. Os brasileiros, em regozijo. A seleção de Feola servia o tom. Pelé, Garrincha, Didi, Nilton Santos haviam feito o que haviam feito naquele julho: 5 a 2 nos anfitriões suecos no Råsunda. Levando o país a vestir-se em chuteiras. Acalmando seus demônios. Mitigando seus complexos. Adestrando seus lutos. Informando que, sim: o martírio de 1954, do adeus, Getúlio Vargas, ainda se fazia sentir.

Mas, em contrário, o infortúnio do Maracanazo uruguaio jazia em passado. Longe e distante. Remoto. Irrecuperável. Sem sentido nem razão. “A taça do mundo é nossa/Com brasileiro, não há quem possa”. Eis o mote da canção. Entoada, ato contínuo, a plenos pulmões. Assoviada. Mentalizada e vivida como catarse e vazão. Liberando o grito contido imposto por desventuras que agora não existem mais. “Eh, eta, esquadrão de ouro/É bom no samba, é bom no couro.”

Fazia-se Brasília. Belém-Brasília. Cinema Novo. Bossa Nova. João Gilberto (1931-2019). Chega de Saudade. Augusto Boal (1931-2009), Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), Teatro Experimental. Visão abstrata na Bienal. Zoológico em São Paulo. Arquidiocese em Aparecida. Furnas em Minas. Operação Pan-Americana em Washington. Sudene no Nordeste. Mais Ford e mais Volks no Brasil. Estradas e mais estradas. Modernização, industrialização, internacionalização. Plano de Metas em ação. Anos JK. Entusiasmo. Inspiração. Alegria. Nova bossa. Tudo num dia só. Tipo síntese, meta-síntese. Que conduziria toda a trajetória a seguir de Rubens Ricupero.

3.

Começando pela sua aprovação, em primeira colocação, naquelas provas do Instituto Rio Branco em 1958, avançando para a sua estreia como diplomata na novíssima Brasília em 1961 e espraiando-se por mais de sessenta anos de observação atenta e participação segura nas tessituras nacionais e internacionais das epopeias da política, da cultura e do poder do Brasil e no mundo.

Sendo, assim, testemunha ocular da renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961. Acompanhando a amargura do momento com os maiorais Afonso Arinos (1905-1990) e San Tiago Dantas (1911-1964). Aperfeiçoando a sua acurácia diplomática com João Augusto de Araújo Castro (1919-1975), Mario Gibson Barboza (1918-2007) e Ramiro Saraiva Guerreiro (1918-2011).

Lançando-se às suas funções mais longas no exterior na embaixada brasileira em Viena em 1963. Em seguida, sendo movido para Buenos Aires, de 1966 a 1969.  Adiante, para Quito, de 1969 a 1971. Regressando ao Brasil e a Brasília de 1971 a 1974. Partindo para Washington de 1974 a 1977. Voltando, novamente, a Brasília de 1977 a 1987, para chefiar a prestigiosa Divisão da América Meridional II do Itamaraty até 1984.

Para, em seguida, tornar-se assessor diplomático do presidente Tancredo de Almeida Neves (1910-1985) e inaugurar – na embarcação dos vencedores – a Nova República em 1985. Organizar e participar do momentum presidencial internacional de janeiro-fevereiro de 1985. Ser assessor especial da presidência José Sarney. Seguir para Genebra, em 1987, como embaixador do Brasil. Ser movido para os Estados Unidos, também como embaixador do Brasil em Washington, em 1991.

Retornar ao Brasil, em 1993, para inaugurar o Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal. Virar Ministro da Fazenda, guardião da moeda e apóstolo do Plano Real em 1994. Voltar a ser embaixador do Brasil no exterior, agora, em Roma, em 1995. Tornar-se alto funcionário das Nações Unidas, como diretor da UNCTAD – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, a partir de 1995. Ficar nessa função, baseado em Genebra e virando mundos, por quase dez anos até aposentar-se em 2004. Regressar ao Brasil em 2004-2005.

Renascer profissionalmente como diretor da Faculdade de Economia e Relações Internacionais da FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado. Reencarnar na Paulicéia, sua São Paulo natal. Rever amigos. Voltar a congraçar-se com eles. Renovar vivências. Observar o retrocesso lento, gradual, seguro e catastrófico da realidade política, econômica e social brasileira do Mensalão ao Petrolão. Testemunhar a inequívoca frustração da presidência Dilma Rousseff desde as tormentas de junho de 2013. Anotar a agonia do impeachment de 2016.

Participar da ofensiva contra o mal maior em 2018. Auxiliar na recomposição do mal menor a partir de 2022. Compor a sua obra primordial: Diário de Bordo. A viagem presidencial de Tancredo (2010). Finalizar a sua obra magistral: A diplomacia na construção do Brasil (2017). Legar seu escrito seminal: Memórias (2024). E seguir ofertando, incansavelmente, suas análises, impressões e joie de vivre – síntese dos anos JK – à opinião pública, à intelligentsia do país e aos seus numerosos alunos pelo Instituto Rio Branco, pela Universidade de Brasília, pela Universidade de São Paulo e afins.

Incrível. Envolvente. Comovente. Que remete a uma impressão do saudoso embaixador Marcos Azambuja (1935-2025) que costumava afirmar que Rubens Ricupero – pessoa, diplomata e artista – era um dos seres humanos mais extraordinários que ele conhecera.

Para alguns, essa percepção beira o exagero. Justificando-se apenas como mostra de amizade. Entretanto, esse distinto prêmio Machado de Assis vem desmentir de vez os céticos e acentuar a valoração. O outrora apenas herdeiro do barão, doravante, vira, também, herdeiro bruxo. Só ele. Ninguém mais.

Vida longa, querido Rubens Ricupero.[1]

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ).

Nota


[1] Agradeço ao embaixador Paulo Roberto de Almeida pela leitura atenta e generosa da primeira versão deste texto.


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