Introdução à história da União Soviética

Clara Figueiredo, Izmailovsky Market, Lênin_ 2067,60 rublos, Moscou, 2016
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JULIAN RODRIGUES*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Lincoln Secco

“o mundo foi melhor para a classe trabalhadora mundial enquanto a União Soviética existiu” (Lincoln Secco)

Lyotard decretou o fim das métarécit[1] no fim dos anos 1970, e de lá para cá, todo tipo de fragmentação e particularização das teorias e análises (não marxistas) se fizeram canônicas. Grandes interpretações e sínteses viraram objeto de bullying. Mais vale um paper em inglês do que um livro, né. Mas, deixemos de lado a crítica ao produtivismo neoliberal majoritário na universidade. Aqui vamos falar de um livro que vai na contramão desse zeitgeist.

Poder ler um livro de 160 páginas, intitulado História da União Soviética (o epíteto “uma introdução” aparece nas páginas internas) não é acontecimento corriqueiro. Afinal, a essa altura do campeonato, o que mais haveria a dizer de novo? O título soa como se tivéssemos diante de nós um tratado de centenas de páginas.

Não é nada disso. Lincoln Secco, como já havia feito em obras anteriores (A Revolução dos Cravos, de 2004; História do PT, de 2011), mescla rigor historiográfico, argúcia argumentativa, linguagem acessível e gosto pela condensação. Misto de crônica, reportagem, ensaio. Escrito visando um público mais amplo, o livro dialoga com quem já conhece o enredo básico da trama. É como um apanhado geral papeando com a militância de esquerda e com as diversas tradições interpretativas.

Um panorama geral, com estilo saboroso, riqueza de dados – e detalhes do tipo registrar que Lenin tinha “a sola do sapato furado” ao discursar na instauração do governo revolucionário. Apesar de alicerçado em ampla bibliografia, o autor opta por não fazer grandes digressões teóricas, embora polvilhe o texto todo com seu ponto de vista sobre os acontecimentos relatados.

Lincoln, sempre que possível, trata do tema das mulheres, das artes, da cultura, dos direitos civis, os avanços e retrocessos da revolução entre 1917 a 1991. Chama atenção também o esforço do autor em sempre cravar a classe/origem social familiar, profissão e formação das e dos principais dirigentes bolcheviques.

Stálin era “neto de servos”, Trotsky “filho de um fazendeiro”; Alexandra Kolontai, “filha de um general czarista”. Leitores apressados, talvez engajados, talvez entusiasmados, ou enredados no looping da “nova” polêmica sobre stalinismo x trotskismo, podem ser tentados a rotular rápido.

Secco incorpora o conceito de stalinismo. Não só usa termos como “terror em massa”. Dá amplo espaço para autores que desqualificam pessoalmente o georgiano, reverbera a imagem de Stalin como o mais tosco dos bolcheviques. Valida a ideia de que o período de “terror stalinista” foi o que mais assassinou comunistas historicamente.

Todavia, muita calma nessa hora. Antes de carimbar o livro como mais um esforço militante trotskista é preciso destacar que Lev Bronstein não é o herói da trama. O historiador considera o relatório Kruschov um “erro geopolítico” (do ponto de vista soviético) e dá espaço também para opiniões como as de Althusser e Togliatti, que discordam da responsabilização individual de Stalin e do “culto à personalidade” como explicação universal.

O livro avança, aborda a Guerra Fria, o contexto internacional e chega à dissolução do país. “O fracasso da economia socialista foi um mito. O desempenho econômico da União Soviética não era inferior aos da OCDE nos anos 1980”, crava o professor da USP.

Em uma das partes talvez mais controversas do livro, Secco caracteriza ora como “revoluções” ora como “revoltas” as movimentações acontecidas nos países do leste europeu em 1989. A chave interpretativa adotada é evidentemente vinculada à tradição “trosca” (que sempre defendeu como positivas a derrubada das “burocracias” naqueles países). Ocorre que depois disso só vieram regimes neoliberais capitalistas.

Didática e generosamente, o livro traz também, ao final, glossário e mapas.

*Julian Rodrigues é professor, jornalista e ativista LGBTI e de Direitos Humanos.

Referência


Lincoln Secco. História da União Soviética. São Paulo, Editora Maria Antonia, 2020.

Nota


[1] LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna (José Olympio)

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Claudio Katz Dennis Oliveira Caio Bugiato Paulo Fernandes Silveira Gabriel Cohn Eliziário Andrade Priscila Figueiredo Jean Marc Von Der Weid Ricardo Antunes José Luís Fiori Marcelo Guimarães Lima Carlos Tautz Walnice Nogueira Galvão João Lanari Bo Fernando Nogueira da Costa Leonardo Sacramento Vladimir Safatle Anselm Jappe Luiz Bernardo Pericás Lucas Fiaschetti Estevez Vinício Carrilho Martinez Ronald León Núñez Annateresa Fabris Daniel Afonso da Silva Liszt Vieira Maria Rita Kehl Lorenzo Vitral Igor Felippe Santos José Raimundo Trindade Mário Maestri Everaldo de Oliveira Andrade Francisco Pereira de Farias Roberto Noritomi Berenice Bento Celso Favaretto João Adolfo Hansen Juarez Guimarães Eugênio Bucci Roberto Bueno Eleutério F. S. Prado João Feres Júnior Andrew Korybko Chico Whitaker Luís Fernando Vitagliano José Dirceu Bernardo Ricupero Remy José Fontana Ari Marcelo Solon Benicio Viero Schmidt Salem Nasser Sergio Amadeu da Silveira Antonino Infranca Tales Ab'Sáber Gilberto Lopes Alexandre de Freitas Barbosa Afrânio Catani Luiz Marques Fernão Pessoa Ramos Marilena Chauí Denilson Cordeiro Manuel Domingos Neto Marilia Pacheco Fiorillo Vanderlei Tenório Leonardo Boff Rodrigo de Faria João Sette Whitaker Ferreira Bento Prado Jr. Jorge Branco Paulo Martins Ricardo Abramovay Armando Boito Eugênio Trivinho João Paulo Ayub Fonseca Atilio A. Boron Manchetômetro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Michael Löwy André Singer Luiz Eduardo Soares Otaviano Helene Valerio Arcary Leonardo Avritzer Rafael R. Ioris João Carlos Salles Samuel Kilsztajn Francisco de Oliveira Barros Júnior Luis Felipe Miguel Gilberto Maringoni Marcelo Módolo Milton Pinheiro Daniel Costa Slavoj Žižek Luiz Carlos Bresser-Pereira Henri Acselrad Ladislau Dowbor Carla Teixeira José Machado Moita Neto Bruno Fabricio Alcebino da Silva Flávio R. Kothe Rubens Pinto Lyra Boaventura de Sousa Santos José Geraldo Couto Ricardo Fabbrini Mariarosaria Fabris Gerson Almeida Antônio Sales Rios Neto Marcus Ianoni Sandra Bitencourt Ronald Rocha Luiz Werneck Vianna Daniel Brazil Francisco Fernandes Ladeira Leda Maria Paulani Michael Roberts Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Musse Eleonora Albano Ronaldo Tadeu de Souza José Costa Júnior Flávio Aguiar Renato Dagnino Marjorie C. Marona Anderson Alves Esteves Elias Jabbour Érico Andrade Chico Alencar Jean Pierre Chauvin Airton Paschoa Dênis de Moraes João Carlos Loebens André Márcio Neves Soares Matheus Silveira de Souza Celso Frederico Jorge Luiz Souto Maior Tadeu Valadares José Micaelson Lacerda Morais Heraldo Campos Kátia Gerab Baggio Marcos Aurélio da Silva Alexandre de Lima Castro Tranjan Osvaldo Coggiola Luciano Nascimento Alysson Leandro Mascaro Tarso Genro Paulo Capel Narvai Luiz Renato Martins Henry Burnett Thomas Piketty Luiz Roberto Alves Eduardo Borges Julian Rodrigues Lincoln Secco Antonio Martins Yuri Martins-Fontes Alexandre Aragão de Albuquerque Valerio Arcary Marcos Silva Bruno Machado Fábio Konder Comparato Paulo Sérgio Pinheiro

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada