A privatização da educação superior em São Paulo

Imagem: Luis Quintero
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por OTAVIANO HELENE*

A educação é basicamente ou quase exclusivamente pública na maioria dos países; não no Brasil, menos ainda em São Paulo

Por causa de seu caráter estratégico e de sua importância na construção do futuro de um país, o ensino é majoritariamente ou quase exclusivamente público em todos os países. Mas no Brasil não é bem assim; na média de todos os níveis educacionais, nosso país está entre os 20% mais privatizados.

Quando examinamos a educação superior em particular, nossa situação se mostra ainda mais extremada: de cada quatro matrículas, três são em instituições privadas, proporção que nos coloca entre os seis países mais privatizados do mundo em um conjunto de cerca de 160 países.

É necessário observar que esta situação não está apenas muito distante da média mundial, mas também do que se observa nos países de economia liberal. Por exemplo, nos EUA, a situação é a inversa da nossa: lá, de cada quatro matrículas na educação superior, três são em instituições públicas.

Entre os países com taxas de privatização na educação superior abaixo dos 5% estão Cuba, Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo, Mauritânia, Síria, Tajiquistão e Uzbequistão, mostrando que a forte presença do setor público é uma característica encontrada em países política, cultural, geográfica e economicamente bastante diversos.

Países europeus apresentam taxas de privatização do ensino superior tipicamente abaixo ou muito abaixo daquela dos EUA. Na América do Sul, com exceção do Chile, todos os demais países têm taxas de privatização menores do que a brasileira, sendo o Uruguai, com cerca de 15%, o menos privatizado, segundo dados divulgados pela Unesco.

São Paulo e os demais estados

A privatização na educação superior não é uniforme nos diversos estados brasileiros, tendo São Paulo taxas de privatização bem superior às dos demais Estados, qualquer que seja o critério usado para defini-la. Adotando como indicador de privatização a distribuição dos estudantes pelas diferentes instituições, vemos que em São Paulo apenas 15% das matrículas em cursos presenciais estão em instituições públicas, contra 25% na média dos demais estados.

Quando comparamos a oferta de vagas de ingresso na educação superior pública com a quantidade de concluintes do ensino médio, novamente São Paulo destoa, e muito, dos demais estados. Em São Paulo há apenas uma vaga de ingresso em universidade pública para mais do que dez concluintes do ensino médio; nos demais estados essa relação é de uma vaga para cada 3,7 concluintes. Se considerarmos todos os tipos de instituições e de cursos pós-médio, em São Paulo há 5,2 formados para cada vaga contra 3,0 nos demais estados.

É importante observar que essa alta relação entre o número de formados no ensino médio e o número de vagas de ingresso disponíveis no setor público não se deve ao fato de que em São Paulo a taxa de conclusão do ensino médio seria muito mais alta do que nos demais estados, pois a exclusão dos estudantes é muito grande em todo o País. Atualmente, cerca de um terço dos jovens abandona a escola antes de completar o ensino médio, tanto em São Paulo como na média nacional. A diferença da taxa de conclusão em São Paulo e nos demais estados é muito inferior às enormes diferenças entre formados no ensino médio e vagas públicas disponíveis.

Se adotarmos como indicador da privatização as populações dos estados, novamente São Paulo é recordista: por aqui, temos uma matrícula em universidade pública para cada conjunto de mais do que 210 habitantes, relação duas vezes maior do que se observa nos demais estados. Se considerarmos todos os tipos de cursos superiores – faculdades, centros universitários, institutos federais e cursos de curta duração (como os de formação de tecnólogos) – a relação seria de quase 150 habitantes por matrícula em São Paulo em comparação com 93 nos demais estados.

Conclusão

A educação brasileira sempre foi muito ruim, mesmo quando comparada com os países da América do Sul. No quesito alfabetização de adultos (25 anos ou mais), apenas a Guiana apresenta uma taxa inferior à nossa. Nossos indicadores de inclusão na educação superior, incluindo as matrículas nas instituições privadas, estão muito aquém daqueles da Argentina, Chile e Uruguai, colocando-nos no grupo de países com menores taxas de matrículas. Em raríssimos países a privatização atinge a proporção vista no Brasil e talvez em nenhum país ela seja tão alta como no estado de São Paulo.

O fato de São Paulo ter uma taxa de privatização do ensino superior bem maior do que os demais estados mostra que o argumento de que o setor privado atua em complementação ao setor público, dada a insuficiência de recursos deste último, não condiz com o que se observa. Caso isso fosse correto, a privatização seria maior nos demais estados, não naquele com maior renda e geração de impostos per capita. O fato parece ser mais condizente com a hipótese de que onde a população tem maior renda, o Estado se ausenta para abrir espaço para o setor privado.

Essa situação paulista e também brasileira é um dos frutos da privatização e do subinvestimento em educação pública no Brasil e no estado de São Paulo e um projeto político, social e ideológico. Ela não é apenas resultado de ações de um ou outro governo, mas é parte de um projeto de longo prazo, construído ao longo de décadas.

Educação é fundamental para a emancipação das pessoas e para o entendimento do mundo, para o crescimento econômico e o desenvolvimento social e cultural de um país, para o enfrentamento das desigualdades econômicas entre pessoas e regiões e para a garantia da soberania nacional. Por essas razões, entre outras também importantes, a educação é basicamente ou quase exclusivamente pública na maioria dos países, e não uma mercadoria cujo acesso dependa do poder aquisitivo e da motivação das pessoas.

*Otaviano Helene é professor sênior no Instituto de Física da USP.

Publicado originalmente no Jornal da USP.

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Flávio R. Kothe Gilberto Maringoni Milton Pinheiro Jean Marc Von Der Weid Kátia Gerab Baggio Flávio Aguiar Sandra Bitencourt Paulo Sérgio Pinheiro Vanderlei Tenório Alexandre de Lima Castro Tranjan João Adolfo Hansen Lucas Fiaschetti Estevez Marcos Silva Gilberto Lopes Jorge Luiz Souto Maior Atilio A. Boron Dênis de Moraes Sergio Amadeu da Silveira Celso Favaretto Rodrigo de Faria Lorenzo Vitral José Raimundo Trindade Érico Andrade Valerio Arcary Eugênio Bucci Elias Jabbour Fábio Konder Comparato Ronaldo Tadeu de Souza Maria Rita Kehl Liszt Vieira Ricardo Antunes Salem Nasser Julian Rodrigues Tadeu Valadares Ronald Rocha Osvaldo Coggiola Denilson Cordeiro Thomas Piketty Afrânio Catani Alysson Leandro Mascaro José Luís Fiori Antonio Martins Tales Ab'Sáber José Costa Júnior Henri Acselrad Mariarosaria Fabris Berenice Bento Luiz Marques Otaviano Helene Paulo Martins Ari Marcelo Solon Gabriel Cohn André Singer Everaldo de Oliveira Andrade Anselm Jappe Jorge Branco Luiz Carlos Bresser-Pereira João Paulo Ayub Fonseca Alexandre de Freitas Barbosa Bento Prado Jr. Bernardo Ricupero Tarso Genro Gerson Almeida Eleonora Albano Francisco Fernandes Ladeira Remy José Fontana Luis Felipe Miguel Airton Paschoa Ricardo Fabbrini Marilena Chauí Vinício Carrilho Martinez Boaventura de Sousa Santos Carlos Tautz Heraldo Campos João Carlos Salles Igor Felippe Santos Luiz Bernardo Pericás Marcelo Guimarães Lima Eliziário Andrade João Sette Whitaker Ferreira Matheus Silveira de Souza Claudio Katz Chico Whitaker Celso Frederico Daniel Brazil Leda Maria Paulani Luciano Nascimento Luiz Renato Martins Chico Alencar Marcus Ianoni Luiz Werneck Vianna Lincoln Secco Michael Löwy Juarez Guimarães Ricardo Abramovay Eduardo Borges Plínio de Arruda Sampaio Jr. Manchetômetro Leonardo Avritzer Slavoj Žižek Dennis Oliveira Daniel Afonso da Silva José Machado Moita Neto Rafael R. Ioris Marilia Pacheco Fiorillo João Lanari Bo Renato Dagnino Andrew Korybko Paulo Fernandes Silveira Eleutério F. S. Prado Marcelo Módolo José Geraldo Couto Henry Burnett Ricardo Musse Jean Pierre Chauvin Bruno Fabricio Alcebino da Silva Fernando Nogueira da Costa Bruno Machado Vladimir Safatle João Carlos Loebens Antônio Sales Rios Neto Leonardo Sacramento Marjorie C. Marona Benicio Viero Schmidt Carla Teixeira João Feres Júnior Luiz Roberto Alves Leonardo Boff Eugênio Trivinho Antonino Infranca Luís Fernando Vitagliano Yuri Martins-Fontes José Micaelson Lacerda Morais Armando Boito Priscila Figueiredo Manuel Domingos Neto Mário Maestri Samuel Kilsztajn André Márcio Neves Soares Paulo Capel Narvai Francisco de Oliveira Barros Júnior Francisco Pereira de Farias Michel Goulart da Silva Ronald León Núñez Daniel Costa Rubens Pinto Lyra Andrés del Río Marcos Aurélio da Silva Fernão Pessoa Ramos Paulo Nogueira Batista Jr Annateresa Fabris José Dirceu Michael Roberts Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Eduardo Soares Valerio Arcary Caio Bugiato Ladislau Dowbor Walnice Nogueira Galvão Alexandre Aragão de Albuquerque

NOVAS PUBLICAÇÕES