O sul global não existe

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Por MARCOS HONORIO*

Qual será o marcador ideológico do conjunto de países englobados no que se convencionou chamar de “Sul Global”?

A essa altura, é seguro dizer que a desintegração da relativa paz sob a qual a humanidade se assentou nas últimas décadas é um evento que nos espreita. Não há desajuízo na afirmação de que a hegemonia norte-americana encontra contestação na atuação de países que despontam como potências regionais. Esses novos opositores se articularam e criaram meios de coordenar ações que visam à atenuação da influência maciça do bloco EUA-União Europeia no sistema internacional.

Entretanto, é importante fazer uma análise aprofundada a respeito desse grupo que, como alguns defenderiam, assumiu para si a responsabilidade histórica de confrontar os interesses dos países imperialistas – a mais meritosa das intenções, ao considerar que o imperialismo, a fase superior do capitalismo, é responsável direto pelo esmagamento dos povos oprimidos ao redor do mundo. Qual será o marcador ideológico do conjunto de países englobados no que se convencionou chamar de “Sul Global”?

É difícil apontar uma só característica comum a todos os países contidos nessa classificação. Ao que parece, essa denominação surgiu para conjugar os países da periferia do capitalismo, os países que ocupam as mais deterioradas posições na divisão internacional do trabalho. Ora, para isso nós já possuíamos algumas opções (“países de capitalismo dependente”, “países de capitalismo periférico” etc.). O que ocasionou a necessidade de tipificar esse novo grupo?

Quando se ouve falar nesse “Sul Global”, normalmente ocorre a menção às perspectivas de alteração da ordem mundial, de anseios multipolaristas e de derrubada da supremacia estadunidense por parte de países, dentre outros, como Rússia, China, Irã e Venezuela. Essa classificação também parece indicar, por parte de quem a utiliza, a crença na cooperação entre esses países.

Acredito que somente o desdobramento histórico nos revelará os agentes da disputa à qual eu aludi anteriormente. Estamos plantados no meio de um momento preparatório onde as partes do conflito estão se maturando, e talvez esse painel não seja algo tão simples quanto EUA- União Europeia contra China-Rússia-Irã. Algumas contradições terão que ser resolvidas no seio do primeiro bloco e muitas outras precisarão ser sanadas dentre o segundo.

Porém, o que é possível inferir antecipadamente são as cores dessa competição: essa será uma disputa entre a vertente da cadeia imperialista encabeçada pelos Estados Unidos e a vertente orientada pela doutrina social-chauvinista, insuflada pelo acelerado crescimento econômico de países como a China e pelo descontentamento de países como a Rússia por ocuparem lugares tão diminutos no sistema de expropriação capitalista e na divisão internacional do trabalho.

À barlavento, se procurará manter as taxas de lucro dos países do capitalismo central, seus mercados consumidores e a dinâmica de obtenção e fornecimento de matérias-primas; à sotavento, se buscará melhores condições de disputa no sistema imperialista, sem romper com ele. Comprimidas no interior da violência interimperialista e intercapitalista, estarão as classes trabalhadoras de todos os países envolvidos na disputa.

A arbitrariedade envolvida na idealização de um “Sul Global” é uma estratégia para legitimar a guerra. A “multipolaridade” é uma apologia à guerra e à cooptação dos trabalhadores para a colaboração de classes. Sotavento se utilizará de um apelo à moralidade dos povos contra as barbáries cometidas pelo rival barlavento. Esse apelo é um passivo valioso em tempos em que muitos horrores são cometidos por barlavento. A vacuidade representativa das esquerdas permite que seja possível espoliar esses passivos relegados, o que, somado a uma estratégia de diferenciação ineficaz, alimentará o bloco social-chauvinista.

Os imperialistas à sotavento admitirão como estratégia nesse amplo campo de batalha a instrumentalização da crítica ao decadentismo ocidental e ao “declínio moral do Ocidente”. Porém, uma vez que o social-chauvinismo é uma ideologia essencialmente reacionária, essa crítica partirá de pressupostos arraigados em preconceitos e mistificações. A falibilidade moral ocidental afigura-se, por exemplo, na postura apática dessas sociedades em relação ao genocídio palestino, e não na luta contra as opressões de gênero ou raça, como alguns pretendem dissimular.

Reconheço pouca taticalidade mesmo nas mais pontuais cedências ao bloco social-chauvinista. Conforme exposto, acredito estarmos na esteira de um conflito mundial generalizado, da guerra total desdobrada da crise do capitalismo-imperialismo. É perigosíssimo – talvez o preço desse pecado seja impagável – confundir a classe na iminência dessa disputa, imputando-lhe a tarefa de dar sustentação ao bloco social-chauvinista em nome de um suposto anti-imperialismo.

Isso não acontece isoladamente em nossos tempos. As burguesias virtualmente progressistas tentam enganar o movimento operário, atribuindo-lhe percalços táticos (que são, na verdade, estratégicos, ao passo que escamoteiam as tarefas da revolução) em momentos decisivos de sua luta por emancipação. A novidade na estratégia das burguesias à sotavento é que agora a ideologia nacional não será a única ferramenta utilizada para mistificar os povos e barganhar o apoio dos trabalhadores na guerra interimperialista: ao fazer apelos moralizantes, os social-chauvinistas utilizarão outras e mais variadas formas de estigmatização.

O vale-tudo para arranhar o hegemon

As consequências para os partidos que se disporem a tentar convencer a classe trabalhadora de que o seu apoio ao bloco social-chauvinista é vital para o sucesso de um movimento anti-imperialista serão as mesmas impostas aos partidos pró-guerra da Segunda Internacional. Isso significa dizer que, uma hora ou outra, os social-chauvinistas darão de cara com a desmoralização de suas posições diante do movimento operário e terão a sua atuação deslegitimada pelos povos convencidos a combater em guerras que perenizarão suas próprias situações de opressão.

Entretanto, é crucial que os meus interlocutores ideais – ou seja, aqueles dispostos a travar uma luta consequente contra todas as faces da cadeia imperialista – iniciem, desde já, a denúncia contra as tendências já manifestas no presente; que fixem a ideia de que “não cabe aos socialistas ajudarem o bandoleiro mais jovem e forte [oxigenado]a roubar os bandoleiros mais velhos e saciados [caducos e decadentes]”;¹ que revigorem as determinações do Manifesto da Basileia, que apelava aos operários que eles opusessem “ao imperialismo capitalista a força da solidariedade internacional do proletariado”.

O advento de uma oposição consequente à barbárie imperialista pelas mãos dos comunistas pode legar aos movimentos revolucionários de todos os países um imenso crescimento que os retiraria da resignação à qual eles foram relegados nas últimas décadas – isso porque, ao mesmo tempo que os social-chauvinistas se enfraqueceriam durante o período de desenfreada agressão interimperialista, os comunistas, ao se oporem à guerra, retirariam desse fato político o apoio das massas horrorizadas pelo conflito, como historicamente foi feito.

Para que esse desfecho se torne viável, é necessário formular uma preposição que opere na afirmativa (a construção revolucionária de uma sociedade socialista) ao mesmo tempo em que se deve abandonar a negativa (ser “contra” o imperialismo, sempre tomado como uma abstração conceitual). Por debaixo da estrita negação, o que existe é a legitimação de estratégias e linhas oportunistas (social-chauvinismo, multipolarismo, frente amplismo). Esse é um momento decisivo. A depender da postura dos comunistas diante dele, será possível energizar o marxismo ou enterrá-lo.

*Marcos Honorio é estudante e ativista político.

Nota

¹ “O Socialismo e a Guerra”, V. I. Lênin. Disponível em Capítulo I – Os Princípios do Socialismo e a Guerra de 1914-1915 (marxists.org)

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