Sob o risco de demolição

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Flavio Aguiar*

Uma das marcas centrais do estilo de (des)governança dos atuais conquistadores do governo federal é o desprezo. Desprezo por tudo: pelo decoro de governo, pelo bom gosto, pelo bom português, pelo decoro do linguajar, da diplomacia, incluindo aí a história da diplomacia brasileira, pelo bom jornalismo, pelo meio ambiente, pelo nosso litoral, pela floresta amazônica, pela gastronomia, pelo horário de verão, pelos direitos dos trabalhadores, dos idosos, das crianças, dos quilombolas, dos indígenas, das mulheres, da população LGBTI, por muita e muita outra coisa, e last, but not least, pelo mundo acadêmico. Este último motivo de desprezo tem sido o alvo de uma fieira de ataques por parte dos ministros que atendem a área e pelo próprio presidente da república, que foi assim apequenada, reescrita com minúscula.

Uma das últimas manifestações deste desprezo compulsório e compulsivo (além de repulsivo) foi a nomeação para presidir a Fundação Casa de Rui Barbosa da jornalista, roteirista de TV, escritora, repórter Letícia Dornelles. Com essa penada o ministro responsável, Osmar Terra, da cidadania (tudo agora assim, com minúscula), desprezou a indicação dos funcionários da Casa, que era a pesquisadora Rachel Valença, que já se dedicara por mais de 30 anos a ela.

Mandava a tradição que se nomeasse a pessoa indicada pela Casa. Mas a tradição, ora, a tradição… A tradição está aí também para ser desprezada. E assim nomeou-se para a casa (agora assim, com minúscula) uma pessoa cujo maior mérito para tanto, a julgar pelas declarações passadas, presentes e quiçá futuras é ser Bolsonarista (agora sim, cabe uma maiúscula, talvez até capitulares garrafais, BOLSONARISTA) ardente, além de uma apadrinhada do deputado federal Pastor Marco Feliciano (apud matéria de Igor Gadelha https://www.oantagonista.com/brasil/feliciano-emplaca-ex-reporter-da-globo-no-governo/).

Lendo os cruzamentos de declarações e mensagens a respeito, ficamos sabendo que a dita nomeada pediu para não ser indicada para algum cargo em Brasília, preferindo ficar no Rio de Janeiro. Portanto, encontrou-se um cargo na Cidade Maravilhosa: a presidência da Fundação Casa de Rui Barbosa, o que, além de ser uma solução, é uma rima. (“Queriam achar uma função pra mim em Brasília. Aí eu falei: ‘não, deixa eu ficar no Rio’. A fundação foi o que encontramos para eu poder ajudar” – O Globo, 27/10/2019).

Prosseguindo a pesquisa sobre este desejo de “poder ajudar”, entramos no mundo veloz do Twitter, onde lemos, sob a chancela da nomeada, uma série de BOLSONARICES (assim, em capitular) da melhor espécie. Uma das mais recentes deplora a “violência” das últimas manifestações populares no “Chile em chamas” e adverte: “Fica esperto, Brasil”, numa evidente e patriótica conclamação a que se evite, em nossa terra, enveredar por tais perigosas demonstrações de rua.

Encontramos outra pérola no elogio ao vestido “rosa clarinho” da primeira dama “linda, jovial, charmosa”. Também se lê por ali certo desprezo pelo “horário de verão”, em favor do “horário de Deus”. Aliás, é Deus para todo lado, sem economia. Nem o petróleo nas praias fica de fora, qualificado não como um possível acidente, mas como “um ataque criminoso ao Brasil”. Deixo aos leitores o trabalho de indagar quem poderá ser o tal “criminoso”.

Enfim, nas ditas palavras, entre entrevistas e tuitadas, encontramos a declaração de um futuro esforço para “acelerar palestras, que hoje são muito acadêmicas”, seguida da sua afirmação de que como boa “libriana” saberá lidar com os ânimos na fundação diante de sua presidência.

Para completar (e encerrar) esta derrota (no sentido antigo, de “viagem”) lemos esta profissão de fé: “não tenho mestrado, mas também sou pesquisadora. Não estou caindo de paraquedas. Passei por entrevistas, foi quase um reality show”. Bom, tire-se o chapéu. De fato, a nomeada não está caindo, mas subindo de paraquedas.

Como dizia o saudoso Millor Fernandes ao fim de algumas de suas tiradas, “Pano rápido”.

*Flávio Aguiar é escritor, jornalista, professor de literatura brasileira na USP

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura
  • O avesso de Marxcultura los soles 14/09/2024 Por TIAGO MEDEIROS ARAÚJO: Comentário sobre o livro recém-lançado de José Crisóstomo de Souza
  • Silvio Almeida — entre o espetáculo e o vividoSilvio Almeida 5 09/09/2024 Por ANTÔNIO DAVID: Elementos para um diagnóstico de época a partir da acusação de assédio sexual contra Silvio Almeida
  • Ken Loach – a trilogia do desamparocultura útero magnético 09/09/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: O cineasta que conseguiu capturar a essência da classe trabalhadora com autenticidade e compaixão
  • Silvio Almeida: falta explicarproibido estacionar 10/09/2024 Por CARLOS TAUTZ: Silvio Almeida acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame
  • O caso Sílvio Almeidasilvio almeida 4 11/09/2024 Por ANDRÉ RICARDO DIAS: Considerações sobre a idealização reificada do negro pelo discurso identitário

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES