Por FLÁVIO AGUIAR*
As operações semânticas e sintáticas próprias da guerra de Israel contra a Palestina, conforme o lado da observação.
Faz-se necessária uma observação metodológica prévia. Não sou especialista em Oriente Médio, sionismo, judaísmo, Israel, Palestina, Hamas, Hezbollah, embora disto tudo e temas afins tenha um conhecimento um pouco mais amplo e profundo do que o superficial. Embora tenha uma longa experiência na cobertura analítica de guerras, desde a do Vietnã e os protestos contra, quando eu trabalhava como redator da United Press International no seu escritório de São Paulo, também não me considero um expert no assunto e suas conexões.
Mas sou sim um especialista, por dever de profissão, em construções e manipulações semânticas e sintáticas em torno destes e de outros fenômenos sociais. E é disto que este artigo trata: linguagem. Nada mais, mas nada menos, do que isto.
Toda guerra tem sua(s) operação(ões) semântica(s) e sintática(s) própria(s), conforme o lado da observação.
Na Guerra do Vietnã, por exemplo, no lado Ocidental predominava a transformação de vítimas civis no Vietnã do Sul em “guerrilheiros vietcongues”, o que engrossava as estatísticas em favor de uma suposta eficiência dos “defensores da democracia” (EUA e seu aliado fantoche em Saigon) contra os “comunistas invasores” do outro lado. Curiosos “invasores”, que “invadiam” a sua própria terra! O engodo durou até o escândalo de My Lai, a estranha “batalha” em que haviam perecido centenas de “vietcongues” contra nenhuma baixa – sequer um arranhão – do lado das “forças democráticas” do Vietnã do Sul e dos EUA.
A “batalha” acontecera em março de 1968. O engodo ainda esperneou durante algum tempo, desde a denúncia em novembro de 1968, de que a suposta “batalha” fora na verdade um massacre de centenas de civis, na maioria inermes idosos, mulheres e crianças, até o massacre de inermes estudantes norte-americanos que protestavam contra a guerra na Kent State University, estado de Ohio, cometido pela tropa da Guarda Nacional, em 04 de maio de 1969, deixando um rastro de quatro mortos e vários feridos a bala. A partir daí mudou a retórica na mídia mainstream norte-americana e mundial.
Chegando mais perto, olhemos a guerra na Ucrânia. Desde antes a retórica dominante na mídia Ocidental expunha o golpe de estado que derrubou o governo pró-russo em Kiev, liderado por grupos pára-militares de inspiração misturadamente nazi e nacionalistas, em 2014, como se tratando de uma “revolução popular” levada a cabo pelos “heróis da praça Maidan”. Quando as tropas russas invadiram a Ucrânia, esta mídia não só tomou o lado desta, como passou declaradamente a apresentar tudo o que a Ucrânia fizesse como uma “vitória” e tudo o que a Rússia fizesse como uma “derrota”.
A retórica dura até hoje, embora a propalada “contra-ofensiva” ucraniana tenha empacado num beco sem entrada nem saída. Ao mesmo tempo se recobria a ação ucraniana com uma semântica derivada da Resistência anti-nazi durante a Segunda Guerra Mundial e a operação russa com todos os requintes possíveis de crueldades e atos de barbárie – como se somente os russos as e os cometessem. Tudo o que Kiev dissesse era verdade, tudo o que os russos alegassem era mentira. Por razões de consciência profissional consegui acesso aos informes do outro lado, divulgados pelas Forças Armadas de Moscou: é outra guerra.
Parece tratar-se de um verdadeiro passeio de “desnazificação” em que as tropas ucranianas sofrem baixas astronômicas e as russas revivem os dias gloriosos do Exército Vermelho, embora este não receba mais este nome, já que a Rússia de hoje tem muito pouco da antiga União Soviética, apesar do que a mídia ocidental alardeia sobre ela. Onde estará a “verdade”? De um ou de outro lado, no meio, na base do in medio virtus? Por ora, só é possível dizer que a “verdade” está em duvidar de tudo o que se leia ou ouça, já que se vê muito pouco sobre esta guerra tão insana quanto aos guerras costumam ser.
Bem, afinal chegamos onde eu queria chegar: a presente guerra do governo de Israel contra o Hamas, e vice-versa. Além das atrocidades cometidas, a do ataque do Hamas contra civis israelenses em 07 de outubro e as atrocidades que vêm sendo cometidas pelo governo de Israel contra a população palestina em Gaza e em menor escala na Cisjordânia, uma característica peculiar desta guerra é a de uma atrocidade semântica, um curto-circuito operacional que tende a decapitar qualquer esforço de raciocinar sobre ela.
Este curto-circuito pode acontecer numa leitura, numa conversa telefônica ou ao vivo e a cores, num email, etc. Funciona assim, como descrevo abaixo, em várias modalidades.
Se você não fala, não escreve, não podcasta em primeiro lugar que o ataque do Hamas em 7 de outubro contra civis israelenses foi um ataque terrorista, independentemente do que você considerar depois, é porque você é um antissemita contumaz desde sempre, um inimigo do povo de Israel, etc. Pior: se você critica o governo de extrema direita liderado por Benjamin Netanyahu com sua gangue de sionistas aloprados que querem o arraso da população palestina, crítica o criminoso bombardeio e assalto contra a população de Gaza e da Cisjordânia, você também é um antissemita sem remédio, um inimigo da civilização e amigo da barbárie anti-ocidental, e também mais etc.
Agora, se você critica o ataque terrorista cometido pelo Hamas em 07 de outubro contra a população civil israelense, é porque você é um sionista desalmado, amigo do imperialismo norte-americano, inimigo do direito do povo palestino a um Estado independente e é favorável ao crime lesa-humanidade que vem sendo cometido cotidianamente pelos bombardeios e assaltos israelenses contra a população de Gaza e da Cisjordânia. Ah sim, também independentemente do que você escrever depois. Em suma, a análise não interessa, pois o que interessa é o rótulo em que você possa ser encaixado.
Há variantes nestes curto-circuitos. Há quem nada diga, mas cujo silêncio nada obsequioso é simplesmente a cortina de ferro, de pelica ou de fumaça que encobre o escaninho em que você é enquadrado e metido, sem saída.
Tais casos, o segundo sobretudo, são dramáticos aqui na Alemanha, onde vivo de momento. Uma pessoa amiga, a quem manifestamos nosso repúdio ao ataque do Hamas, nosso apreço pela causa palestina, nossa preocupação diante do sempiterno e recrudescente antissetimismo nas plagas germânicas, disse, pudicamente, que também não gostava do governo de Benjamin Netanyahu, “mas que não era hora de falar disto”, era hora de “ficar ao lado de Israel”, como se Israel e Benjamin Netanyahu fossem sinônimos, e os criminosos bombardeios contra a população civil de Gaza não significassem nada. Outra me recriminou porque eu considero os Estados Unidos “um país imperialista”. Uma terceira pessoa me disse que Israel estava certo ao bombardear hospitais, porque ali se escondiam “terroristas do Hamas”.
Os lados conflitantes nas batalhas de linguagem mobilizam termos de prestígio. Contra a política de Benjamin Netanyahu esgrimem-se termos como “apartheid”, “genocídio” e até – este considero um tanto fora do lugar – “holocausto”. Do lado israelense esgrimem-se termos como “civilização contra barbárie” e alguns mais exaltados compararam seus inimigos a “animais”. Lá há mais acerto do que erro; aqui, prevalece o erro sem acertos.
A posição do governo israelense e de seus aliados e próceres Ocidentais está cada vez mais isolada. A diplomacia de Tel Aviv vem fazendo gestos canhestros e com repercussão negativa, como a do seu embaixador na ONU discursar com estrelas de Davi amarelas na lapela, coisa condenada por associações judaicas, ou do seu representante em Brasília aparecer no Congresso Nacional Brasileiro na companhia de Jair Messias, o golpista contumaz, mas fracassado Bolsonaro.
Assim está a situação: pelo mundo, graças aos curto-circuitos, velhas amizades e até casamentos consolidados estão estremecidos. Isto já começara anteriormente. No Brasil, entre bolsonaristas e democratas. Em geografia mais ampla, entre negacionistas e amigos das vacinas contra a Covid. Depois, nas dobras complicadas da guerra da Ucrânia, em que falar mal da OTAN ou dos Estados Unidos te transformava automaticamente num autoritário pró-Putin, aos olhos dos curto-circuiteiros. Mas agora, com o tema sensível do Oriente-Médio e seu entorno geográfico e histórico, a prática nefasta da anti-inteligência se ampliou e – pior Benjamin está se consolidando.
A palavra “paz” está tão isolada quanto esteve diante das trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Então ela se refugiava por vezes nas luzes de alguma taverna, como o Café Voltaire, no no. 1 da Spiegelgasse em Zurique, na Suíça, fundado em fevereiro de 1916 pelo dramaturgo alemão Hugo Ball, frequentado por uma coorte de intelectuais pacifistas de origens nacionais muito diferentes, mas convergentes no repúdio à violência. Só para lembrar: um pouco adiante, no segundo piso do número 14, vivia um obscuro refugiado russo, chamado Vladimir Ilyich Ulianov e sua mulher, Nadezhda Krupskaya.
A palavra “paz”, tão frágil quanto uma pomba de Picasso, hoje bandeira, dentre outros, do governo brasileiro, tem seus desconhecidos e imprevistos poderes.
*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés. Boitempo, São Paulo: 2011. [https://amzn.to/48UDikx]
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