A camisa 10

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Por FLÁVIO AGUIAR

Uma homenagem a Pelé

Na final da Copa no Qatar, os dois principais jogadores de Argentina e França, Messi e Mbappé, vestiam a camisa 10. Apenas um deles foi o vencedor, mas ambos honraram a camiseta, que é a mais reverenciada nas seleções de estrelas.

Mas nem sempre foi assim. Quem consagrou a camiseta de número 10 foi Pelé, na Copa de 1958 e depois na de 1970. Na de 1962 Pelé se machucou no segundo jogo contra a Checoslováquia e foi substituído por Amarildo. Na de 1966 ele foi literalmente caçado pelos portugueses e saiu quebrado de campo. O Brasil acabou eliminado. Mas em 1970 as “Feras do Saldanha”, como ficou conhecida a seleção, embora o técnico final fosse o Zagallo, deram o troco, arrasando os adversários. E Pelé fez de tudo, com a camisa 10.

Até a Copa de 1958 a camisa mais reverenciada numa equipe era a de número 9, a do centro-avante.

A história do encontro do Pelé com a camisa 10 da seleção – ou pelo menos o que se conta sobre ela – é muito original. Foi fruto do acaso. Quando a então CBD (hoje CBF) enviou para a FIFA e a Federação Sueca a relação dos jogadores brasileiros, ela foi sem a definição dos números das suas camisetas. E quem a recebeu, desconhecendo os detalhes da seleção, distribuiu os números um tanto arbitrariamente. Até a Copa de 1954, disputada na Suíça, a numeração canônica das camisetas impunha que os titulares tivessem os algarismos de 1 a 11, do goleiro à ponta esquerda, assim distribuídas: 1 (goleiro), 2 e 3 (zagueiros), 4, 5 e 6, médios, e de 7 a 11 para os atacantes, da ponta-direita à ponta-esquerda. Os reservas repartiam os números de 12 a 22, na mesma ordem.

Na Copa de 1958, a numeração brasileira subverteu tudo. O time titular, que estreou contra a Áustria, vencendo por 3 x 0, tinha a seguinte numeração: goleiro, Gilmar, no. 3; Bellini e Orlando (zagueiros), no. 2 e 15; De Sordi, Dino e Nilton Santos (médios), no. 14, 5 e 12; e os atacantes, Joel, 17, Didi, 6, Mazzola, 18, Dida, 21, e Zagallo, 7. Os reservas eram Castilho (1), goleiro; Mauro e Oreco (16 e 8), zagueiros; Djalma Santos, Zito e Zózimo (4, 19 e 9), médios; Garrincha, Moacyr, Vavá, Pelé e Pepe (11, 13, 20, 10 e 22), atacantes. Esta formação passou por mudanças ao longo dos jogos, até fixar a equipe consagrada na final, com Gilmar, Bellini e Orlando; Djalma Santos, Zito e Nilton Santos; Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagallo, Pelé com a no. 10. Para aumentar o dinamismo numérico, nesta altura, embora os locutores, ao anunciar as equipes, seguissem a ordem da formação em “pirâmide”, ou seja, 1; 2 e 3; 4, 5 e 6; 7, 8, 9, 10 e 11, o Brasil já jogava na formação 4 – 2 – 4, com a variante 4 – 3 – 3, ou seja, Gilmar, Djalma Santos, Bellini, Orlando e Nilton Santos; Didi e Zito; Garrincha, Vavá, Pelé e Zagallo (às vezes recuado para o meio do campo).

Em 1958 o Brasil deu seis jogadores para a seleção mundial do certame: Djalma Santos (embora este tivesse jogado uma única partida, a final), Bellini, Nilton Santos, Didi, Garrincha e Pelé. Didi foi aclamado como o melhor jogador da Copa, e chamado de “Rei”. Pelé ficou em segundo lugar, também aclamado como o melhor jovem jogador, pois tinha 17 anos. O franco-argelino Just Fontaine foi o goleador, com 13 gols, e ficou em terceiro. Em Copas anteriores, os brasileiros Leônidas (1938) e Zizinho (1950), foram eleitos os melhores jogadores da Copa, embora o Brasil não ganhasse o título.

Antes de Didi, o brasileiro Friedenreich foi aclamado “Rei” pela imprensa francesa durante uma excursão pela Europa. Leônidas ganhou o apelido de “Diamante Negro”, que virou nome de uma barra de chocolate fabricada pela Lacta. Em 1950 a imprensa europeia comparou o brasileiro Zizinho a Leonardo da Vinci, pela sua versatilidade, chamando-o de “gênio”. Na Europa, Didi ganhou o apelido de “Mr. Football”. Numa votação de especialistas em futebol Pelé foi eleito o melhor jogador do século XX; Didi ficou em 19o. lugar, sendo o 7o. brasileiro.

Pessoalmente, considero Didi o melhor jogador que já vi jogar. Pelé era o mais completo, fazendo de tudo com maestria; atuava até no gol, se fosse necessário. Decididamente, no entanto, Didi (junto com Falcão) era o mais elegante. Nelson Rodrigues apelidou-o de “Príncipe Etíope”, e dizia que quando ele corria “levava um manto de arminho nos ombros”. Quanto a Falcão, ganhou o apelido de “Rei de Roma”, quando jogava na Itália (1980 – 1985) e foi considerado o segundo melhor jogador da Copa de 1982.

Embora em 1962 a numeração das camisetas dos jogadores brasileiros seguisse a orientação canônica, a partir daquela numeração de 1958 a atribuição dos números começou a variar muito, até que a FIFA padronizou a distribuição numérica, impondo que cada jogador tivesse um algarismo definido, fosse qual fosse. E em muitas equipes a numeração passou por variações enormes, com jogadores assumindo números extravagantes para o futebol, como 99, 89, 36 e outros.

O fato é que a partir dali consagrou-se a camiseta 10 como a mais famosa na maioria das equipes, do “Rei Pelé”, assim nomeado a partir de 1970, até Messi e Mbappé, em 2022, passando por Maradona. Pelé ficou sendo também o eterno Rei da Camisa 10.

Uma curiosidade. Quando se instalou o 4 – 2 – 4 como formação básica das equipes, na maior parte do Brasil o atacante recuado para o meio do campo foi o de número 8, meia-direita, mantendo na frente o de número 10, meia-esquerda. Já no Rio Grande do Sul seguiu-se a orientação dominante no Uruguai e na Argentina naquele momento, recuando-se o número 10 e mantendo-se no ataque o número 8. Coisas da fronteira.

*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

 

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