O realismo dinâmico

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIS FELIPE MIGUEL*

O pragmatismo político retira de seu campo de visão toda a energia de mudança que está latente na sociedade

Sempre que publico um texto criticando o “pragmatismo” de líderes da esquerda – as concessões ao capital, as concessões aos pastores, as concessões ao Centrão, as concessões aos militares, as vices para golpistas etc. etc. – não falta quem venha dizer que não há outro jeito. Que as circunstâncias são essas. Que é o que temos para o momento. Que, citando a frase atribuída a Otto von Bismarck, “a política é a arte do possível”. Será mesmo?

Em certo sentido, sim – mas no sentido banal de que toda atividade humana, da engenharia à culinária, do futebol à medicina, é, a seu modo, uma “arte do possível”. O problema é que a frase é lida numa chave em que o realismo cede lugar ao possibilismo.

Podemos contrastar o adágio de Otto von Bismarck ao trecho eloquente dos Cadernos do cárcere em que Antonio Gramsci descreve o “político em ação” como “um criador, um suscitador; mas não cria do nada, nem se move no vazio túrbido dos seus desejos e sonhos. Baseia-se na realidade fatual”.

De maneira sintética, Antonio Gramsci está apontando a necessidade de ultrapassar tanto o possibilismo estreito, que vê os limites postos à ação política como imutáveis, quanto o voluntarismo, que julga que eles podem ser desprezados por mera decisão subjetiva.

Ele adota um realismo dinâmico, que é herdeiro de Nicolau Maquiavel e de Karl Marx, incluindo em seu relato tanto as energias transformadoras latentes no mundo social quanto a vontade atuante de mobilizá-las.

Grande parte da esquerda brasileira permanece estranha a essa dinâmica e presa ao possibilismo, que leva a uma redução brutal do horizonte de expectativas – a partir do entendimento que há uma “correlação de forças” favorável aos grupos conservadores e, portanto, nossa opção é entre o pouco e o nada.

Ou menos que isso. Desde o golpe de 2016, a direita endureceu suas posições e o que nos resta é o pouquíssimo, como alternativa ao menos que nada.

Nessa linha de pensamento, a correlação de forças é percebida, sobretudo, como aquela presente nas instituições políticas formais. O argumento é: Lula está diante de um Congresso muito conservador; logo, a margem para adotar políticas redistributivas e democratizantes é muito pequena. Corolário: é melhor esperar por muito pouco, porque mais do que isso não será possível alcançar.

Não estou entre os que negam liminarmente validade a um cálculo desse tipo. Na verdade, a diferença entre o muito pouco e o nada pode ser desprezada pelos privilegiados, mas muitas vezes é questão de vida e morte para os mais pobres.

O problema é que essa leitura trabalha com uma temporalidade limitada e retira de seu campo de visão toda a energia de mudança que está latente na sociedade – toda a inconformidade, a revolta, a indignação, que continuarão latentes, incapazes de ação organizada e efetiva, caso as forças políticas comprometidas com a transformação do mundo permaneçam indiferentes, mergulhadas numa visão da política que se resume ao cálculo eleitoral imediato.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).

Publicado originalmente nas redes sociais do autor.


Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES