Os desafios da política externa brasileira

Blanca Alaníz, serie Cuadrados, fotografía digital y fotomontaje a partir de la obra Baindeirinhas de Iván Serpa, Brasilia, 2016.
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Por CARLOS ENRIQUE RUIZ FERREIRA*

Resgatar a dignidade da Casa do Barão do Rio Branco e inaugurar novos paradigmas políticos de formulação e ação

Dois são os grandes desafios, em termos estruturais, a serem levados em consideração para a política externa brasileira que se iniciará na aurora do 1º de janeiro de 2023. O primeiro, resgatar a dignidade da Casa do Barão do Rio Branco e, o segundo, inaugurar novos paradigmas políticos de formulação e ação.

Sobre o primeiro, embora pareça fácil, não é trivial. Ainda que a diplomacia mundial tenha bem entendido que estávamos vivendo um período de exceção do Estado brasileiro, as máculas não se dissolvem tão rapidamente. A memória, quando muito negativa, amarga o sabor do tempo. Foi assim quando o país saiu da ditadura. E a política externa de José Sarney teve de cuidar sobremaneira de, senão apagar, pelo menos minimizar os prejuízos causados pelo afastamento do país das instituições multilaterais, em especial da ONU. Durante boa parte da nefasta noite de 21 anos, estivemos ausentes do Conselho de Segurança e à margem dos avanços do Direito internacional humanitário. Afinal, aqui se efetuavam as mais abjetas práticas de violações aos direitos humanos.

Os esforços do governo Sarney foram notáveis. Um verdadeiro “divisor de águas”, um “novo processo histórico”, de “transcendental importância”, disse o ilustríssimo jurista Antonio Augusto Cançado Trindade. Ele, e outros, destacaram não só a adesão do país aos instrumentos jurídicos internacionais de direitos humanos, como ponderaram sobre a participação efetiva na formulação e defesa de conceitos na seara.

No próximo governo Lula, mutatis mutandis, desafios semelhantes se aproximam. A diferença do período da ditadura militar de 1964 com o governo militar de Bolsonaro é que este não se alijou do debate internacional dos direitos humanos (para ficarmos no tema), ele agiu e promoveu uma catástrofe na área. Não é necessário repetir as falas e posições, do presidente e seus auxiliares, repercutidas na imprensa internacional, de caráter machista, misógino, racista, homofóbico, de intolerância religiosa, dentre outros.

Mas o fato é que as práticas seguiram as falas. Numa aliança com os EUA (de Donald Trump), Egito, Hungria, Indonésia, Uganda, entre outros países, o Brasil promoveu a Declaração de Consenso de Genebra, com uma pauta de extrema direita para os direitos humanos, que suscitou graves críticas por parte de Organizações Não Governamentais e movimentos sociais, como, por exemplo, a Anistia Internacional. Este é apenas um exemplo de como a política externa de Bolsonaro não foi de isolamento, mas de participação ativa a partir de uma agenda internacional que, muitas vezes, contradita com os próprios direitos fundamentais expressos na Constituição Federal de 1988 e os instrumentos de direito internacional.

Por outro lado, o que se comentava nos bastidores das organizações internacionais, é que o próprio protocolo diplomático foi abalado. Em missões internacionais presidenciais as práticas ritualísticas e cerimoniais deixaram a desejar, para dizer o mínimo, criando embaraços para nossa tradição e história diplomática. Em suma, há muito o que se corrigir, tentando minimizar os graves prejuízos deixados.

Ao passo em que corrigir os graves erros, a política externa encontra outro desafio. Quiçá maior. Não é apenas necessário retomar uma agenda democrática de inserção internacional, dando ênfase ao fortalecimento do multilateralismo e à participação nas instituições internacionais, mas será preciso atualizar, e mesmo inovar, o projeto da política externa ativa e altiva, tão bem conduzida pelo chanceler Celso Amorim (2003-2010). Explico: a promoção de uma geometria variável e de uma nova governança global, que pode ser exemplificada, pela criação do G20, do G4 e dos BRICS, em âmbito global, e da UNASUL, em nível regional, é preciso ser repensada à luz das variáveis contemporâneas e seu cenário complexo.

Com a guerra da Ucrânia e com a pujança imperial chinesa, será necessário encontrar uma agenda de cooperação internacional para os BRICS em que o desenvolvimento ganhe centralidade vis a vis as concepções compartilhadas de nova ordem internacional. No que se refere ao projeto de nova ordem, mais inclusiva e democrática, talvez os membros do G4 ganhem mais proeminência, em particular a Alemanha, bem como outros parceiros da América Latina e da África.

Uma das reformas mais relevantes para o sistema internacional diz respeito ao Conselho de Segurança da ONU, com a criação de novos assentos permanentes. A primeira aparição internacional do presidente eleito Luiz Inácio, na COP 27, deu o tom. Lula foi ousado, não apenas invocando a necessária inclusão de novos membros, mas questionando o próprio poder do veto. Isso é fato novo na política externa brasileira. Aliás, a proposta do G4 sempre foi cauta quanto o tema. Mas Lula age com sabedoria. Pois se não formos agressivos na barganha, inclusive propondo algo que na prática (dada a política de poder, para lembrar M. Wight) seja inalcançável, talvez não conquistemos a tão almejada vaga permanente, ainda que sem mudar a estrutura do poder de veto. É preciso ousar.

De toda forma, a complexidade da geopolítica internacional nos fará encontrar novas alianças internacionais para promover as urgentes reformas das instituições internacionais e lograr uma voz mais ativa dos movimentos e organizações não governamentais de caráter transnacional na governança global, outro tema de importância ímpar. Lula sabe como ninguém que o diálogo social (esteio da democracia) e a interação dos múltiplos atores – movimento sindical, as juventudes, a academia, ONGs, povos indígenas, movimento negro, iniciativa privada, entre outros – constituem um dínamo para o desenvolvimento e para as soluções dos problemas tão urgentes das nações e dos povos. É a hora do “empoderamento” dos atores sociais nas relações internacionais.

O processo de integração do MERCOSUL merecerá atenção prioritária. Por um lado, é atilado construir uma agenda de longo prazo, de alguma forma distante da política partidária, como o fez a União Europeia. Esta estratégia estabelecerá alicerces mais fortes que podem fazer sobreviver, nos tempos de crises econômicas e políticas (com governos de extrema direita), a Integração. Neste âmbito, as políticas de coesão social, atreladas a uma agenda intensiva de infraestrutura (em sintonia com as novas tecnologias de informação e comunicação), são essenciais.

No campo social e comercial da integração, deve-se cuidar de não apenas ouvir os diversos atores, mas fazê-los partícipes do processo. A expertise do movimento sindical e da iniciativa privada são de riqueza inigualável. De longe, não há burocrata que conheça as entranhas do MERCOSUL tão bem quanto os sindicalistas e o setor produtivo. Há muito que se avançar em estândares de direitos sociais e trabalhistas, promovendo a cidadania regional. As instâncias de representação, e em especial o PARLASUL, precisam de reformas para ganhar mais legitimidade e responsabilidades.

Como se percebe, será necessária uma dose de ousadia. O problema é que a ousadia recebe recorrente críticas, ainda mais quando se trata de política externa. Mas é a partir dela que se projeta melhor o país e se produzem mudanças significativas.

Como inspiração não custa lembrarmos de alguns grandes momentos e próceres da PEB das últimas décadas. A começar pela Operação Pan Americana (que em algum momento será mais bem considerada pela literatura da área), iniciativa do presidente Juscelino Kubitschek que inaugurou o “exercício mais consistente de diplomacia presidencial” na história recente, nas palavras de Sérgio Danese. Muito antes da Escola de Copenhague e a Teoria de Securitização, Juscelino Kubitschek (com a ajuda de Frederico Schmitt e de jovens diplomatas – ver a respeito o último livro de Rubens Ricupero), inovou a política internacional promovendo a interdependência dos conceitos de segurança e desenvolvimento. Depois, a política externa independente de Jânio e Jango, bem formulada e conduzida por Afonso Arinos, Araújo Castro e San Tiago Dantas.

Em plena Guerra Fria o Brasil disse na ONU que nem tudo era Leste ou Oeste nas relações internacionais, que “o mundo possuía outros pontos cardeais” (Araújo Castro, discurso na ONU de 1963). O chanceler Azeredo da Silveira, durante o governo de Ernesto Geisel, e o seu pragmatismo responsável, merece também consideração, ao resgatar o universalismo e promover relações importantes com os países socialistas e terminar, por fim, com o triste capítulo de nossa história com relação à descolonização. Por fim, o governo Lula e a política externa altiva e ativa promovida por Celso Amorim.

Para além das alianças já mencionadas neste artigo desse período, não se deve olvidar da negociação no campo nuclear com o Irã, a CELAC, o Conselho de Defesa da UNASUL, e a promoção do conceito e princípio da solidariedade nas relações internacionais (pouco afeito ao mainstream da realpolitik). Todos estes personagens e suas políticas foram, uns mais, outros menos, duramente criticados em seus tempos. Mas não é menos verdade que, no curso da história, se tornaram reconhecidos protagonistas da nação.

A combinação entre a recuperação da mais alta tradição e prestígio diplomático com a ousadia próprias dos artistas e dos cientistas – a criação, a invenção – constituem-se como dois grandes eixos desafiadores da política externa da nova aurora. Que os primeiros raios solares do 1º de janeiro emanem a tranquilidade para que os gestores realmente saibam quem verdadeiramente somos, valorizando nossas constantes participações e contribuições para as relações internacionais, e que, outrossim, sirva de inspiração, para compreender que “quem sabe faz a hora e não espera acontecer”.

*Carlos Enrique Ruiz Ferreira é professor de relações internacionais na Universidade Estadual da Paraíba.

 

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