Por ANNATERESA FABRIS*
Considerações sobre o livro de Paco Gómez.
Para Tadeu Chiarelli, que me presenteou com este livro.
As fotografias podem narrar uma história? Marcelo Rubens Paiva demonstra acreditar nessa possibilidade quando escreve: “Me lembro de coisas da infância porque vejo fotos. Como da vez em que colocaram em mim um capacete verdadeiro de bombeiro, profissão que por muitos anos planejei ter. Está registrado, tem foto, então tenho certeza de que aconteceu. Ou será que está na memória porque há um registro do momento? Me lembro das festas de São João de Serelepe, em que minha mãe me fantasiava de caipira da cabeça aos pés […] Lembro porque há muitas fotos da quadrilha em que eu danço com minha irmã Nalu, uma coreografia nitidamente ensaiada, cercados por monitores que organizam o casamento na roça, a fuga da cobra e da chuva. Mas não me lembro com clareza. Vejo as fotos”.
É justamente porque há muitas fotos que Paco Gómez pôde escrever Os Modlins, publicado na Espanha em 2013 e traduzido no Brasil dez anos mais tarde. A história tem início numa noite de primavera de 2003, quando o autor é avisado pelo cunhado de que, não muito longe de sua residência em Madri, havia uma “montanha de fotografias” jogadas no lixo. O aviso não tinha sido dado por acaso; o cunhado sabia que Paco Gómez gostava de colecionar todo tipo de documento descartado: “Minha casa acumula fotos velhas, cadernos, cartões-postais, livros, cartas de crianças para os reis magos, diários inacabados, notas fiscais, radiografias… Pertencem a pessoas desconhecidas pelas quais sinto uma irresistível curiosidade que me leva a imaginar suas vidas a partir de dados pequenos e desconexos”.
Havia um motivo autobiográfico para esse interesse: “A obsessão por mergulhar nas vidas alheias vem da impossibilidade de fazê-lo na minha. Essas vidas que imagino são sempre mais interessantes e melhores. Venho de uma família de agricultores das montanhas de Ávila de Castilla La Vieja sem nenhuma importância e da qual mal guardo relatos gráficos”. Além de tentar encontrar um substituto para a ausência de imagens próprias, o autor, durante os tempos de faculdade, tinha exercido a profissão de lixeiro, imaginando “a vida dos donos dos sacos de lixo abertos. […] Aprendi a reconhecer o que tinha acontecido numa casa pelo tipo de porcaria que os moradores descartavam: uma ruptura sentimental, um falecimento, um despejo ou uma síndrome de Diógenes”.[1]
Esse background não é suficiente para evitar o espanto que o acomete ao deparar-se com fotografias “estranhas, misteriosas, absurdas, inquietantes”. Havia pessoas em poses insólitas, esqueletos de animais, flores secas, figuras geométricas. Em algumas das imagens, reconhece atores, escritores e personagens de filmes “disfarçados de sacerdotes, pistoleiros e soldados romanos”.
Apesar da curiosidade despertada por um universo visual tão fora do comum, Paco Gómez só volta às imagens um ano e meio depois, quando se muda para um novo apartamento. Tenta então colocar ordem num “quebra-cabeças de peças confusas e indecifráveis”. Classifica as fotografias em dois grupos: experimentais e familiares. Nestas, percebe a presença constante de três pessoas: uma mulher e um homem, entre quarenta e cinquenta anos, e um jovem de uns vinte.
Como era fotógrafo, o autor interessa-se pela persistência daqueles desconhecidos em se fotografar em “lugares concretos: a esquina de uma casa sobre um chão com padrão de tabuleiro de xadrez, um terraço, uma praia, uma escada e um pátio em ruínas”. Em busca de relações lógicas, debruça-se por horas a fio sobre aquele “oceano de imagens”, mas as pessoas das fotos continuavam a ser “gente desconhecida, estranha, alheia a meus costumes e que vinha de uma época passada”.
Paco Gómez chega a fantasiar que os documentos pertenciam a um embaixador inglês, que teve que mudar-se de repente, mas logo se dá conta de que os diplomatas viviam longe do bairro Malasaña. Algumas características das fotos – pessoas nuas e em “poses disparatadas” – jogam igualmente contra a hipótese. Decide deixar de lado aquele “mosaico indecifrável”, que despertava apenas perguntas sem resposta, e dar precedência à família e ao trabalho: “Eu era apaixonado por fotografia e não podia continuar perdendo tempo numa procura absurda e inútil”.
Não contava, porém, com o acaso. Ao fotografar um amigo em seu quarto, vê na parede uma moldura com quatro pequenos retratos de uma mulher que já tinha visto antes. O amigo esclarece que se tratava de uma pintora chamada Margaret e que as fotos tinham sido encontradas no lixo. A imagem, no entanto, não correspondia à do rosto “enroscado” na cabeça de Gómez. Ao saber que a história da pintora tinha saído na imprensa, este encontra na internet um artigo de El País com dados sobre Margaret Marley Modlin, falecida em 1998, que tinha deixado uma coleção de mais de 120 quadros de sua autoria; o filho Nelson, morto em 2002; e o marido Elmer, desaparecido no ano seguinte. Esse achado muda totalmente o quadro de referências de Paco Gómez que, com a curiosidade aguçada, resolve “reconstruir essas vidas jogadas no lixo”, embora os novos detalhes viessem acompanhados de “mais incógnitas para resolver”.
Inicia-se um processo de investigação, definido pelo autor como “uma experiência intensa e singular perseguindo as sombras e os sonhos de umas pessoas que nunca conheci”, como “uma história pela qual fiquei obcecado noite e dia”. A primeira etapa é El Palentino, “um bar mítico que preserva o caráter tradicional das velhas tabernas de Madri”. Frequentado por Paco Gómez, estava situado em frente ao prédio no qual tinha vivido a família Modlin. Este consegue algumas informações com a atendente Loli, que lhe indica o nome da costureira de Margaret, que morava ao lado do bar. Sentindo-se envolvido de vez na investigação, resolve rodar um documentário intitulado Os Modlins, com a colaboração do amigo Jonás Bel.
Graças ao depoimento de Milagros, a costureira, Margaret e Elmer “começaram a ganhar uma dimensão real. Já não eram aqueles personagens estáticos das fotografias”. O casal nunca chegou a falar bem o espanhol; tinha se conhecido na juventude e se apaixonado, apesar da diferença social: ela provinha de uma família abastada; ele era um rapaz do interior. Tudo girava em volta da pintura de Margaret: Elmer fazia o possível para facilitar-lhe uma tranquilidade absoluta e uma dedicação exclusiva à arte. Milagros, que sabia pouco de Nelson, tinha na residência um estudo do próprio rosto de perfil e uma litografia em preto e branco intitulada Henry Miller ve más que un águila, com uma estranha datação “Ano da lua”.
Os passos seguintes levam Gómez e Bel ao escritor Javier Marías, que tinha marcado no caderno de telefones o nome de Nelson Modlin, de quem não se lembrava mais; a Luis Herrero, que trabalhava numa oficina de metal, que lhes fornece o nome de Carlos Postigo, marchand de Margaret; ao próprio Postigo; e a Miguel Cervantes. Se o contato com Javier Marías tinha sido provocado por um artigo publicado em El País Semanal, dedicado ao tempo, à morte e à melancolia, a oficina de metal tinha sido descoberta graças à lembrança do filme Blade Runner.
Inspirado no comportamento do tenente Deckard, que descobre “algo surpreendente observando minuciosamente uma imagem que aparentemente não tem nada de especial”, o autor resolve explorar “até o limite do grão” todas as fotografias encontradas no lixo. Numa delas, percebe que Elmer tinha sido fotografado na primeira casa que o casal ocupou em Madri,[2] mas não consegue determinar sua localização. Mais uma vez intervém o acaso: uma placa de trânsito que o desorientava em diversas fotos dos Modlins tiradas na mesma sacada, ajuda-o a resolver o impasse quando vista em outra imagem do mesmo período pendurada na parede da taberna Escalada.
Nela se via a fachada do bar e a mesma placa de trânsito que aparecia na foto de Elmer: “As ruas tinham mudado de mão com os anos, e essa placa desaparecida me levou até a casa na qual tinham morado os Modlins na rua de Don Felipe. Se não tivesse visto Blade Runner e se minha visita ao Escalada tivesse sido um dia depois, eu nunca teria descoberto”.[3]
A entrevista com Postigo é bastante esclarecedora, pois este revela aspectos da relação de Margaret com a própria obra. A pintora era capaz de sacrifícios que incluíam a saúde para ter dinheiro para comprar o material de melhor qualidade para seus quadros. Apoiada por Elmer, pedia cifras astronômicas por suas obras para não se desfazer delas. Como resume o marchand: “Eles sabiam que nunca poderiam vender muitos de seus quadros, porque estavam aderidos à sua pele, e encontravam a desculpa perfeita: não vendiam porque não havia quem pagasse o que valiam”.
Se Postigo desconhecia o paradeiro dos quadros, este era conhecido por Cervantes, com quem Elmer se relacionara no último ano de vida. O professor da Escola de Agronomia era executor do testamento dos Modlins e podia levar Paco Gómez e Bel até um depósito especializado no armazenamento de obras de arte em Torrejón de Ardoz e facilitar o acesso ao apartamento da rua del Pez.
Acompanhados por Postigo e Cervantes, Gómez e Bel vivem uma experiência frustrante no depósito: só conseguem ver Black Anne (La negra) e um retrato de Nelson, que evocava a fase rosa de Picasso, além da escultura com as cabeças do casal, “de um realismo assustador”, que deveria conter suas cinzas, mas que estava vazia. O contato com La negra confirma que Paco Gómez estava certo quanto à identidade da mulher vista no quarto do amigo. A modelo não era Margaret e sim uma mulher de “traços judaicos”, que “precipitou a busca dos Modlins”.
Decepcionado com a visita a um lugar que lembrava um “cemitério”, no qual a arte “desaparece armazenada em forma de nichos”, o autor deve contentar-se com imagens digitalizadas dos quadros fornecidas por Cervantes. À decepção provocada pela impossibilidade de recriar com a câmera “as texturas e as cores dos quadros”, soma-se outra decepção: as imagens eram de baixa resolução e os quadros, à primeira vista, eram “um tanto infantis, de cores estridentes e excessivamente barrocos, repletos de elementos simbólicos”.
Apesar da frustração com as obras “pobres” de Margaret, Paco Gómez resolve não desistir: fica estudando seus desenhos por horas, estabelecendo relações e detendo-se nos detalhes. Esse exercício permite-lhe resolver uma das incógnitas que o obcecavam desde que os Modlins tinham entrado em sua vida: “Aconteceu de repente: com a mesma surpresa como quando uma cópia fotográfica inicia a desenhar suas formas na bandeja do revelador, comecei a compreender o significado das fotografias que encontrei no lixo. Descobri que as imagens eram representações dos personagens que habitavam a apocalíptica imaginação de Margaret e que ela usava como modelos para compor suas telas. […] Por isso as fotografias eram tão boas; porque eram apenas ferramentas despojadas de toda intenção artística. E, como já tinha comprovado mais de uma vez, são [sic] nas fotografias de arquivos de polícia, nos retratos dos fotógrafos ambulantes ou nas maravilhosas imagens das obras de engenharia do século XIX que a fotografia revela todo seu poder”.
Dando prosseguimento à investigação, Paco Gómez consegue depois de muitas tentativas ter acesso ao apartamento da rua del Pez. Tomado pela desordem e pela sujeira, pois tudo havia permanecido igual ao momento em que Elmer foi resgatado, o apartamento reservava algumas surpresas: pilhas de jornais, revistas e papéis com registros de acontecimentos históricos importantes para o casal; um molho de chaves antigas e modernas depositadas num prato de cobre na cozinha; um chapéu masculino cinza com um envelope no qual se lia “Out of order” colocado em cima da tampa da privada…
O resultado da visita é assim resumido: “Sentia a presença dos Modlins na casa e podia ver como seus personagens ocupavam os cantos habituais. Margaret pintava na sua esquina; Elmer trabalhava numa mesa comprida preparando as telas, dando batidas de martelo amortecidas com uns trapos para não fazer barulho; e Nelson tocava violão enquanto observava como vazava o sol de inverno por uma das sacadas”.
Na etapa seguinte, Gómez e Bel viajam até um vilarejo da Extremadura para entrevistar uma família que tinha posado para uma das obras mais importantes de Margaret, o tríptico El Empalao de la Vera, inspirado numa tradição da Semana Santa. Toda a família Luengo tinha sido imortalizada no quadro, mas os Modlins tinham se afeiçoado particularmente ao pequeno Sotero, um menino “surdo e introvertido que Margaret comparava a um anjo que o artista renascentista Piero della Francesca pintava”.
A visita a Valverde de la Vera é proveitosa: Paco Gómez tem acesso a uma pasta azul repleta de fotografias, cartas e reproduções de quadros de Margaret “perfeitamente ordenadas e classificadas”. Essa documentação permite-lhe perceber a importância que a artista dava ao tríptico. Ela registrou minuciosamente seu processo de criação, pois “sentia que estava realizando uma importante obra de arte para a história da humanidade e queria facilitar o trabalho dos historiadores que se renderiam diante de sua genialidade”.
Cada vez mais tomado pela investigação, o autor sente a necessidade de fotografar os espaços nos quais os Modlins tinham se retratado, embarcando “numa gincana esquizofrênica a absurda pelo mundo”, que o leva a Paris, Florença, Veneza, a uma rua do bairro Maravillas de Madri, às muralhas de Ávila. Conta com a colaboração da esposa Isabelle e de amigos, que assumem os papéis dos Modlins, em “pequenos experimentos e homenagens íntimas carentes de qualquer explicação racional. Precisava confeccioná-los e constatar com minha presença a realidade daqueles espaços. Buscava os sulcos que os Modlins tinham deixado no ar”.
Um desses vestígios é descoberto quando Modlins Gómez amplia o negativo de uma foto na qual Margaret estava sentada numa caixa num dos cômodos do apartamento: a seus pés havia uma cópia fotográfica que tinha passado despercebida. A importância dada a esse achado pode ser aquilatada pela descrição do processo que o levou a descobrir as figuras negras de Margaret e Sotero na imagem jogada no chão: “Ampliei o papel ao máximo, contrastei, hiperenfoquei, voltei a ampliá-lo. Procedia inspirado no protagonista de Blow Up de Antonioni”. A conclusão só reforça o aspecto quase messiânico que o fotógrafo dava à investigação: “Os Modlins deixavam pistas espalhadas pelo chão que eu tinha que continuar interpretando. Estavam tentando nos dizer algo?”.
Uma segunda visita ao apartamento para uma nova gravação tem como resultado a descoberta de algumas fotocópias com uma capa azul de livros datilografados em inglês. Os dois primeiros correspondiam a um projeto de Margaret intitulado The mirror of time’s angel; de autoria de Elmer, o terceiro volume, A poem in my pocket, continha uma seleção de cartas e poesias.
O prólogo do projeto da pintora ajuda a compreender a relação do casal com Henry Miller e a datação da gravura pertencente a Milagros. Gómez percebe que os Modlins “tentaram fazer com que Henry Miller fosse seu salvo-conduto para alcançar a fama. Sua lógica era muito simples e um tanto infantil: se o autor de Trópico de Câncer era um gênio, também o eram aqueles que tinham uma relação íntima com ele. Por isso Margaret e Elmer documentaram para a posteridade sua relação com o escritor: fotografaram de forma policial suas cartas e transcreveram com todos os detalhes qualquer tipo de contato entre eles, seja uma dedicatória de um livro, uma carta ou um simples bilhete. Tudo isso estava escrito nos livros azuis que acabava de encontrar na despensa da rua del Pez”.
A datação “Ano da Lua” está também associada a Miller. A pintora faz começar o mundo em 1969 para que seu calendário particular coincida com o encontro com ele. Decide retratá-lo e, com a ajuda do marido, fotografa “cada parte do corpo de Miller com a perícia de forenses”. Miller não era a única pessoa famosa admirada pelo casal; ao lado de Francisco Franco gozava da fama de “personalidades mais extraordinárias de todos os tempos”. Partidária de um “patriotismo cego e radical”, a artista via na ditadura de Franco “uma etapa iluminada da humanidade, cheia de paz, beleza, ordem e prosperidade”.
Resolve dedicar um quadro à figura que representava “o ideal de soldado cristão contemporâneo”, em mais uma tentativa de conquistar uma glória por reflexo. Anota os preparativos do quadro num caderno; consegue entrar em contato com um procurador do Estado que se compromete a falar com o almirante Luis Carrero Blanco para a aquisição da obra; pede um preço exorbitante. Quando tudo parecia dar certo, acontece o imprevisto: Carrero Blanco morre num atentado da ETA em 20 de novembro de 1973, dois dias depois de Margaret comunicar a seu contato a finalização do quadro.
O quebra-cabeças representado pela vida dos Modlins começa a ganhar contornos mais precisos. Traumatizado pela experiência da Segunda Guerra Mundial, que o levou até a destruída Nagasaki, Elmer decide “buscar na ficção o sentido de sua existência”: resolve ser ator e, nessa qualidade, conhece Margaret em novembro de 1947.
Os dois e Nelson trabalham em produções cinematográficas, televisivas e publicitárias, sempre em papéis secundários, e entre os três, o rapaz parece ser o mais profissional. Elmer chega a participar como extra da cena final de O bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968), de Roman Polanski, levando Modlins Gómez a especular se o diretor não teria se inspirado em sua vida para traçar o perfil do marido da protagonista: um ator incompreendido que não assume seu fracasso e que sobrevive com trabalhos secundários, à espera do grande papel.
Graças ao melhor amigo de Nelson, o matemático Jaime Lipton, o autor consegue configurar um retrato mais preciso da família. Nelson tinha se transferido para Madri em 1969 a fim de escapar da convocação para a guerra do Vietnã. No colégio americano destacava-se por sua diferença em relação aos colegas: com apenas 17 anos afirmava querer ser empresário e ganhar muito dinheiro para contrapor-se aos pais. Não falava muito deles, mas considerava a mãe uma artista genial que, quando descoberta, seria considerada “uma das maiores pintoras de todos os tempos”.
Coube a ele fazer todos os trâmites para a transferência dos pais e encontrar um apartamento na rua Miguel Moya, onde “começam a se forjar os mitos do Apocalipse modliniano”. Duas motivações estavam na base da migração do casal para a Espanha. A ideia de que os Estados Unidos eram um país que “tinha perdido seu rumo”, estando “à beira da ruína e da guerra civil”. E a crença de que a Europa lhes daria a fama que lhes tinha sido negada na pátria. Representante do surrealismo apocalíptico, Margaret esperava que este fosse reconhecido como a recuperação do verdadeiro caminho da arte, perdido com as experiências modernas e abstratas.
A conversa com Lipton gera em Paco Gómez a sensação de que a história dos Modlins estava perto do desfecho. Dentro do contexto familiar, Nelson afigura-se como “o grande prejudicado da loucura intelectual de seus pais” e as novas incógnitas que surgiam diziam respeito ao modo como tinha superado o conflito com eles. Para fechar o quadro, propõe-se a falar com as três esposas, com a noiva com quem iria casar-se e visitar a casa de campo adquirida pouco antes de morrer. Da primeira esposa não havia nenhuma fotografia; só se conhecia o nome, Berta, e a profissão, dançarina de flamenco.
A segunda, Olga Barrio, tinha apresentado um telejornal famoso em 1988, mas tinha se mudado para a Alemanha e não estava disposta a colaborar com a investigação. Da noiva, sabia-se o nome, Monica Fornasieri, e a cena constrangedora a que Elmer a submetera no enterro do filho. Abalado com a morte de Nelson, tenta convencê-la “que eles dois devem ter um filho para que a estirpe Modlin sobreviva. Elmer buscava desesperadamente um herdeiro impossível. Monica foge chorando para Jaime buscando refúgio. Não é capaz de processar essa reação do pai em um momento tão trágico”.
A terceira esposa, Susana Jarabo, aceita colaborar com Paco Gómez e fornece novos dados sobre Margaret e Elmer. Moravam numa casa decadente e em ruínas, com as paredes cheias de quadros, e chamavam a atenção por seus trajes: “roupas que poderiam ter trinta anos e que pareciam restos. Não diria que fossem sujas, mas como se estivessem fora da moda, cheias de pó”. A visão dos quadros de Margaret desperta nela uma impressão de “morbidez”, de “um interesse muito grande e pessoal da mãe por seu filho”. Afetada por essa “sensação mórbida”, chega à conclusão de que Nelson era “uma pessoa bastante normal considerando os pais que tinha”.
Cada vez mais obcecado pela investigação, o autor percebe que sua vida e a dos Modlins “confluíam de uma forma alarmante. Duvidava se tinham sido eles que tinham se aproximado de mim desde o outro lado dos vivos, ou se era eu que inconscientemente os tinha procurado. Estava me tornando um lunático?”. Embora soubesse que as obras de Margaret não conseguiriam interessar o mercado de arte, resolve torná-las conhecidas do grande público junto com a história dos Modlins para que elas ficassem na Espanha, como era seu desejo.
Ciente de que nem ele nem o amigo Jonás tinham a experiência e os meios para realizar um documentário de qualidade, entregam o material coletado ao diretor brasileiro Sergio Oskman. Após um trabalho de três anos, este transforma Gómez no protagonista do filme, ao narrar a história de um personagem que “encontra fotografias no lixo e interpreta a vida dos Modlins”. Quando a película estreia, Paco Gómez não esconde a própria decepção ao não encontrar seu nome nos créditos: “Tudo o que o filme continha parecia meu, mas eu tinha desaparecido da história dos Modlins feito Elmer desaparecia nos filmes em que trabalhava como ator secundário”.[4]
Na tentativa de encontrar um mecenas que permitisse a permanência dos quadros de Margaret na Espanha, o autor tinha promovido, junto com Cervantes e Bel, a mostra Os três emes mágicos na AVA Galeria, entre 7 e 30 de março de 2007. Além dos principais quadros de Margaret, a exposição colocava à disposição do público estudos fotográficos, objetos, esculturas, documentos e uma videomontagem de Bel, que “tornava mais palatável e crível a odisseia dos Modlins”.
No folder estava estampado um retrato colorido da família, no qual Gómez detectava as chaves de sua história: “Uma imagem que é uma porta para outra dimensão e representa um universo complexo, estreito, cifrado e inventado onde tudo está medido e empostado. Lá estão os três, a mãe, o pai e o filho, em uma perfeita representação de um tri-ser. Margaret Marley Modlin simbolizou com essa fotografia um sistema planetário familiar com dois satélites que giravam ao seu redor”.[5]
Tendo transformado a investigação num “assunto pessoal”, Paco Gómez viaja para Villa Margarita, a casa de campo de Nelson, em cujo jardim se depara com uma escultura de Margaret deixada ao relento, “como se fosse um vestígio arqueológico”. No interior da casa havia os livros azuis dos pais, um bom número de retratos, imagens de filmagens e de Nelson com Susana Jarabo. A sensação de ter terminado a investigação é posta em xeque pela fita de vídeo entregue ao autor pelo dono da casa; nela, o casal jogava conversa fora e punha em destaque a escultura que deveria ser posta em seu túmulo.
Para encerrar de vez o processo e despedir-se dos Modlins, Paco Gómez dirige-se para o parque Casa de Campo, em cujo lago tinham sido espalhadas as cinzas de Margaret, Elmer e Nelson. A história deveria terminar onde “sua pegada foi perdida”. Mais uma vez, no entanto, o acaso prega uma peça ao casal que tinha perseguido a fama com tanto afinco. Nas placas das urnas funerárias que deveriam ser jogadas no lago, o sobrenome fora gravado errado, Modglin. Isso leva o autor a concluir: “Os Modlins haviam sacrificado tudo para alcançar a fama e o reconhecimento, e, até nessa última recordação de suas vidas, um desconhecido tinha se enganado ao gravar seus nomes nas placas. Era como se o fracasso tivesse que sobreviver a eles”. Ironicamente o erro tinha atingido também Nelson, que tinha sido um empresário bem-sucedido, depois de abandonar a carreira de ator, modelo e locutor.
O saldo da aventura não é considerado positivo por Paco Gómez: “Empreender um projeto dessa natureza me mostrou o catálogo completo de nossas mesquinharias e fragilidades, mas principalmente me expôs ao veneno daqueles em quem confiei, os mesmos que me traíram assim que puderam para obter sua miserável dose de notoriedade. Hipotequei minha vida e a dos meus filhos, e para quê?, me pergunto. Por isso coloquei todas as fotos que encontrei na rua em um saco de lixo e as trouxe com a intenção de jogá-las no fundo do lago”.
Como comprova o livro de 2013, o autor não levou a cabo esse ato. Ao contrário, acrescentou à documentação encontrada no lixo fotografias de própria autoria e outras cedidas pelos herdeiros de Elmer, por Ana, empregada deste, por Postigo, Raúl García, Susana Jarabo, Francis Tsang e pela família Luengo. Além delas, o livro traz uma foto do barco-hospital que levou Elmer para Nagasaki, um fotograma de O bebê de Rosemary, frames de um vídeo gravado por Bel e da fita U-matic que estava na casa de campo de Nelson. Com a ajuda desse conjunto visual[6], Paco Gómez confere contornos realistas a um relato que, em alguns momentos, poderia parecer inverossímil em virtude das idiossincrasias do casal que acreditava ter uma missão a cumprir no mundo.
Como definir o livro em termos literários? Trata-se de uma mistura de gêneros – crônica jornalística, autobiografia, relato detetivesco, diário –, acompanhada de uma abundante documentação fotográfica que, aos poucos, transforma o leitor num espectador capaz de gerar “uma película em sua imaginação”. Relato “que se lê enquanto se vê ou que se vê enquanto se lê” – como consta do site NOPHOTO –, a obra estrutura-se como um quebra-cabeças feito de memórias díspares e dispersas à espera de alguém disposto a reuni-las numa composição coerente. Um título adequado à empreitada de Paco Gómez poderia ser Três personagens à procura de um autor, pois, graças à sua obsessão, os Modlins saíram do lixo ao qual tinham sido destinados por parentes pouco sensíveis para converter-se em pessoas dotadas de uma personalidade própria e de projetos de vida.
Embora o relato seja configurado a partir de diversos gêneros, é inequívoco que seu autor é um fotógrafo, capaz de detectar nas fotografias resgatadas do lixo não apenas a narrativa aparente, mas também um segundo nível de leitura, no qual afloram detalhes despercebidos num primeiro olhar. Inspirado em personagens ficcionais, Paco Gómez interroga longamente o material visual de que dispõe, usa os recursos técnicos da fotografia para revelar e dar consistência ao que poderia parecer um borrão, encena performances com a esposa e amigos na tentativa de anular o arco temporal que o separava daquela família peculiar.[7]
A frustração de Paco Gómez no final do projeto poderia ser contrastada por um episódio relatado no livro. A exposição de 2007 trouxe-lhe uma satisfação: num autoadesivo branco que um desconhecido colou no interfone da rua del Pez, lia-se “Aqui viveram os Modlins. Lembrem-se deles”. Além disso, um ano antes, a Prefeitura de Madri tinha colocado uma placa no imóvel com os seguintes dizeres: “Nessa casa viveu e pintou de 1975 até a morte MARGARET MARLEY MODLIN ‘A melhor pintora do Apocalipse de todos os tempos’ junto com o marido o ator de Hollywood ELMER MODLIN e o filho NELSON MODLIN modelo e locutor de rádio que nunca orbitou no universo místico criado por seus pais”.[8]
A capa da edição brasileira, que mostra o casal tomando sol num barco, é bastante anódina e não introduz de imediato o leitor num universo peculiar feito de sonhos grandiloquentes e de uma simbiose absoluta entre Margaret e Elmer. A edição espanhola, ao contrário, propõe uma visão ambígua do casal, de maneira a realçar o elo profundo entre os dois, não isento de fraturas. A capa representa um rosto fragmentado, aparentemente masculino, como levariam a supor o casaco e a gravata usados pela figura. A ele é sobreposto um rosto feminino, que se torna o elemento dominante da composição, se for levado em conta o detalhe dos cabelos que remetem ao penteado de Margaret.
A sobreposição não é perfeita e confere ao conjunto um aspecto enigmático, gerando uma sensação inquietante no observador. Este sente-se instigado a ir além da capa e adentrar um universo no qual a realidade e o sonho se fundem e se confundem graças à perícia de Gómez e à sua estimulante composição em mosaico. A capa pode ser vista então não apenas como um índice da relação do casal, mas igualmente como uma alusão à fragmentação da narrativa, que mimetiza as andanças de Paco Gómez pelo universo modliniano e permite que seus personagens se mantenham como formas abertas, impermeáveis a qualquer cristalização antecipada.
*Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).
Referência
Paco Gómez. Os Modlins. Tradução: Mari-Jõ Zilveti. São Paulo: Fotô Editorial, 2023. [https://amzn.to/3Qd02nX]
Bibliografia
NOPHOTO. “Los Modlin. Una historia increíble rescatada de la basura”. Disponível em: <http://nophoto.org/los-modlin>
PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.
Notas
[1] A síndrome de Diógenes é um tipo de depressão, que leva a pessoa a negligenciar os cuidados com a higiene e a acumular lixo em casa de maneira compulsiva.
[2] Posteriormente Gómez descobre que esta era a segunda residência do casal.
[3] O autor tinha estado no bar no dia de seu fechamento definitivo por estar localizado num edifício em ruínas.
[4] Intitulado Una historia para los Modlin, o curta-metragem estreia em 2012 e se estrutura em dois momentos: a vida de Elmer e sua participação no filme de Polanski; a fuga para a Espanha e a transformação da arte de Margaret no eixo central da vida familiar. A película usa como recurso cênico uma mão que dispõe num plano o material encontrado por Gómez, enquanto um narrador descreve esse mesmo material e interpreta a vida dos Modlins como um grande quebra-cabeças atirado no lixo.
[5] Sobre a exposição, ver também: NOPHOTO. “Los Modlin. Una historia increíble rescatada de la basura”.
[6] Gómez não publica no livro todas as imagens de que dispõe. O artigo “Los Modlin. Una historia increíble rescatada de la basura” traz outras fotografias, particularmente as recriadas nos locais em que estiveram Margaret e Elmer.
[7] Ele próprio participa dessas recriações. É o que demonstra uma montagem fotográfica composta de uma imagem esmaecida de Elmer fazendo uma saudação diante da Torre Eiffel (anos 1970) e de uma foto de Gómez replicando a pose (2007).
[8] A foto da placa pode ser vista no já citado artigo “Los Modlin. Una historia increíble rescatada de la basura”.
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