Ostia, Pompeia, SP: uma reflexão turística

Imagem: Jacques-Antoine Volaire, 1729-1799
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARCO BUTI*

Os sacrifícios humanos, destituídos de simbolismo e magia, estão planejados nos discursos de transparência, austeridade, competição, controle, empreendedorismo, punição, conformismo

As duas cidades romanas compartilham um alto grau de preservação de suas estruturas urbanas divergentes. Ostia é muito mais determinada pela atividade econômica, devido a sua localização na foz (“ostia”) do rio Tibre, que atravessa Roma. Sua situação geográfica a tornou a principal entrada de mercadorias chegadas por via marítima para a capital do império, durante séculos. Mas não se tornou um destino turístico tão disputado quanto Pompeia, desde o início das escavações, ainda em curso.

Falta o elemento dramático, espetacular, a destruição num prazo extremamente curto, não só da cidade, mas da vida de grande parte de seus habitantes, pela erupção do Vesúvio. Uma tragédia raríssima, atestada pelas cavidades deixadas por corpos em agonia, onde o gesso derramado tornou presentes formas mais tocantes que obras de arte. Drama que estimula a imaginação, amplificada por tantos relatos exaltando o sacrifício humano produzido por forças naturais além de qualquer controle, aterrador, luminoso, contrastado, ruidoso, sublime. Não há como negar o terrível fato histórico real, e sua reiteração através de palavras e imagens atrai turistas agora, para o palco dos acontecimentos do ano 79 d.C.

O processo que levou ao abandono de Ostia foi bem diferente, mas não menos natural. O lento e discreto assoreamento, ao longo de séculos, tornou inviável a função portuária, apesar das iniciativas dos imperadores Claudio e Trajano, que procuraram manter ativa a importante função econômica da cidade. Hoje, a foz do Tibre deslocou-se para cerca de três quilômetros além, com as praias da moderna Ostia.

Pompeia e Ostia Antica estão igualmente preservadas, mas a falta da grande notícia histórica torna a visita a Ostia tranquila. A interrupção súbita da vida cotidiana atrai multidões a Pompeia, imaginando uma história real pouco conhecida, mas que evoca grandes templos e monumentos, deuses pagãos e sacrifícios, lutas até a morte entre seres humanos, grandes espetáculos circenses e arquitetônicos, perseguições religiosas, mortes e torturas, mártires e heróis, governantes e militares poderosos, eventualmente cruéis, guerras, invasões, vitórias e derrotas, a queda final do grande império. O pouco espetacular assoreamento não pode disputar a atenção do turista com tais imagens e narrativas.

Life is what’s happen to you while you’re busy making other plans, sugeria John Lennon no início da década de 1980, já durante a gestão Thatcher no Reino Unido, pouco antes do primeiro mandato de Ronald Reagan na presidência dos U.S.A. O curso da vida comum tende a passar despercebido, como se a história se reduzisse aos grandes acontecimentos, que não podem ser negados. O assassinato, o atentado terrorista, o incêndio, a vitória esportiva, a eleição, o desabamento, o acidente ecológico, a guerra, o assalto, o massacre, tornam-se imagens e discursos, focos da atenção, desviada da rede capilar que os alimentou, e lhes daria um sentido mais real. Sobre a complexa palpitação lança-se um véu de dúvidas e desinformação, embaçando as relações com o acontecimento inegável. Um conhecimento melhor demandaria um tempo menos acelerado daquele determinado pela informação audiovisual contemporânea, que impede a reflexão.

Mas até este fluxo caótico de informações registra o fracasso das conferências mundiais sobre o meio ambiente. Até com a superficial informação passante seria possível perceber que as ameaças provem de decisões originadas fora da esfera pública, dos interesses das grandes organizações, que não mantém com os seres humanos relações de direito e cidadania. Esta obrigação caberia aos estados, que vem modificando constituições para atrair investimentos. O patriotismo é mobilizado para eventos como eleições e campeonatos, enquanto o raciocínio não é estimulado a perceber as raízes econômicas dos desastres naturais, educacionais, alimentares, de segurança, saúde e assistência, dos direitos em geral. É pouco crível que pessoas provavelmente formadas nas melhores escolas, em posição de tomar decisões baseadas na racionalidade econômica, a partir da mágica de projeções, estatísticas, tendências, gráficos, médias e indicadores, sejam incapazes de perceber as consequências nos seres humanos e no mundo real. São certamente complexas as razões que levam a uma diferença de mais de 20 anos na expectativa de vida em diferentes bairros de uma mesma cidade – São Paulo. Mas existiria um conjunto de conhecimentos capaz de propor tentativas de solução razoáveis, menos fáceis e mais inteligentes que revoluções e atentados, mais dignas e democráticas que o achatamento da existência, a serviço da eficiência econômica.

Os sacrifícios humanos, destituídos de simbolismo e magia, estão planejados nos discursos de transparência, austeridade, competição, controle, empreendedorismo, punição, conformismo. A morte lenta, invisível, estatística, indireta, a manutenção deliberada de condições que abreviam a vida de grande parte da sociedade, a criação de riscos para otimizar o desempenho econômico, são crimes como as execuções.

Não é preciso o espetáculo de um imperador sanguinário para haver assassinos.

*Marco Buti é professor titular do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ricardo Musse Thomas Piketty Kátia Gerab Baggio Eliziário Andrade Alexandre de Freitas Barbosa Alexandre de Lima Castro Tranjan José Luís Fiori Mário Maestri Antonino Infranca Airton Paschoa Denilson Cordeiro Fernando Nogueira da Costa Caio Bugiato Marcus Ianoni Luis Felipe Miguel Eugênio Trivinho Luiz Marques José Machado Moita Neto Salem Nasser Marilia Pacheco Fiorillo João Paulo Ayub Fonseca Fernão Pessoa Ramos Luiz Werneck Vianna Manchetômetro Fábio Konder Comparato João Carlos Loebens André Márcio Neves Soares Tales Ab'Sáber Vladimir Safatle José Micaelson Lacerda Morais Manuel Domingos Neto Marcelo Módolo Berenice Bento Sergio Amadeu da Silveira Jean Marc Von Der Weid Benicio Viero Schmidt Slavoj Žižek Alysson Leandro Mascaro Boaventura de Sousa Santos Marcos Aurélio da Silva Gerson Almeida Elias Jabbour Luciano Nascimento Luiz Carlos Bresser-Pereira Tadeu Valadares Atilio A. Boron Michel Goulart da Silva Paulo Fernandes Silveira Ladislau Dowbor Everaldo de Oliveira Andrade Eduardo Borges Paulo Martins Claudio Katz Érico Andrade Celso Frederico Bento Prado Jr. Julian Rodrigues Dênis de Moraes Bernardo Ricupero Ronald Rocha Paulo Capel Narvai Milton Pinheiro Lorenzo Vitral Paulo Nogueira Batista Jr Anselm Jappe Marcelo Guimarães Lima Luís Fernando Vitagliano João Carlos Salles Liszt Vieira Juarez Guimarães Chico Alencar Ronaldo Tadeu de Souza Vinício Carrilho Martinez Osvaldo Coggiola Carlos Tautz Afrânio Catani Eleonora Albano Paulo Sérgio Pinheiro Daniel Afonso da Silva Igor Felippe Santos Carla Teixeira Rubens Pinto Lyra Ricardo Abramovay Bruno Fabricio Alcebino da Silva Heraldo Campos Francisco Pereira de Farias Plínio de Arruda Sampaio Jr. Andrés del Río Gilberto Lopes Flávio R. Kothe Priscila Figueiredo Marilena Chauí Francisco de Oliveira Barros Júnior Francisco Fernandes Ladeira Leonardo Avritzer Luiz Bernardo Pericás Marjorie C. Marona Gilberto Maringoni Marcos Silva Sandra Bitencourt Chico Whitaker Luiz Eduardo Soares Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Daniel Brazil José Raimundo Trindade Maria Rita Kehl Jean Pierre Chauvin Luiz Renato Martins Gabriel Cohn Mariarosaria Fabris Lucas Fiaschetti Estevez Armando Boito Celso Favaretto Jorge Branco Yuri Martins-Fontes Michael Roberts Ronald León Núñez João Sette Whitaker Ferreira Antônio Sales Rios Neto André Singer Walnice Nogueira Galvão Annateresa Fabris Samuel Kilsztajn Alexandre Aragão de Albuquerque José Geraldo Couto Renato Dagnino José Dirceu Leonardo Boff Ari Marcelo Solon Valerio Arcary Jorge Luiz Souto Maior Tarso Genro Otaviano Helene Dennis Oliveira Lincoln Secco Matheus Silveira de Souza João Adolfo Hansen João Lanari Bo Luiz Roberto Alves Andrew Korybko Antonio Martins Rafael R. Ioris Vanderlei Tenório Remy José Fontana Rodrigo de Faria Eleutério F. S. Prado Michael Löwy Leonardo Sacramento Bruno Machado Flávio Aguiar Henry Burnett Ricardo Fabbrini José Costa Júnior Leda Maria Paulani Eugênio Bucci Henri Acselrad João Feres Júnior Valerio Arcary Ricardo Antunes Daniel Costa

NOVAS PUBLICAÇÕES