Golpe de Estado – história de uma ideia

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Por NEWTON BIGNOTTO*

Introdução do autor ao livro recém-lançado

Afinal, o que é um golpe de Estado?

Os meses que antecederam o 31 de março de 1964 no Brasil foram dominados por uma série de intervenções dos atores políticos que povoavam a cena pública brasileira e por muitos boatos. Durante toda a Segunda República, foram muitas as tentativas de interferir nos rumos da nação por meio de um golpe de Estado, de tal maneira que a prática parecia para muitos algo normal, que fazia parte do arsenal da disputa pelo poder.

Naquele ano, no entanto, as coisas estavam mais explícitas. De um lado, o presidente João Goulart (Jango) apostava todas as suas fichas na realização de suas “reformas de base”, que deveriam promover mudanças na economia e na política capazes de colocar o Brasil na trilha da superação de suas tremendas desigualdades. Ele contava com o apoio de alguns sindicatos, principalmente de funcionários públicos, de metalúrgicos e de setores das Forças Armadas, sobretudo de cabos e sargentos. Do outro lado, a direita conspirava. Ela contava com a fala inspirada e radical de Carlos Lacerda, e se apoiava no descontentamento de amplos setores da hierarquia militar e de parcelas da classe média urbana.

No dia 19 de março daquele ano ocorreu em São Paulo uma gigantesca marcha contra o governo. Os manifestantes denunciavam Jango e seus supostos laços com o comunismo, defendiam os valores tradicionais do catolicismo mais conservador e contavam com o apoio decisivo do governo dos Estados Unidos.

O presidente não levou muito a sério o movimento de oposição que naquele dia parou a cidade com uma multidão estimada em 500 mil pessoas. Preferiu se fiar no apoio dos setores de esquerda da sociedade e no pretenso apego à legalidade da hierarquia militar, que, na verdade, estava a cada dia mais revoltada com a quebra da ordem supostamente patrocinada pelo governo por meio de seu apoio aos marinheiros e sargentos rebelados. O fato é que, de maneira atabalhoada, no dia 31 de março, o general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar sediada em Juiz de Fora, colocou as tropas na estrada pensando em tomar o Ministério da Guerra no Rio de Janeiro e dar início à deposição de Jango.

Sua ação não foi planejada com cuidado, atropelava os planos de outros conspiradores, mas o certo é que, ao colocar os tanques em movimento e contar com a hesitação de Jango, que preferiu ir para Brasília no lugar de enfrentar o general e suas tropas no Rio de Janeiro, acabou dando início a um golpe de Estado que instituiria uma ditadura que durou 21 anos. O golpe, de fato, só se consumou na madrugada do dia 2 de abril, quando o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, depois de uma sessão secreta das duas casas legislativas, declarou vaga a presidência da República. Como o presidente João Goulart estava no Brasil, o ato não tinha fundamento legal algum. Mas os dados estavam lançados e o país mergulhou num longo período de arbítrio e violência.

A literatura sobre o golpe de Estado de 1964 é abundante e permite termos uma visão aprofundada de cada momento que antecedeu ao fatídico 31 de março e seus desdobramentos nos anos seguintes. Como é natural, existem muitas pesquisas em curso sobre o significado daqueles acontecimentos, mas nenhum historiador sério pensa em contestar que se tratou de um golpe de Estado. Os militares procuraram colocar um véu sobre suas ações e a consequente destruição das instituições democráticas chamando o movimento de 1964 de “revolução”. Com isso, pretendiam, e alguns setores da sociedade brasileira atual ainda pretendem, conferir prestígio a uma ação de ruptura com a ordem constitucional democrática.

Vamos ver, no curso do livro, que essas noções, a de golpe de Estado e revolução, aparecem juntas em muitos momentos históricos, mas isso, a meu ver, não é motivo para confundi-las. Falar em Revolução de 64 é apenas uma maneira de negar a realidade e a natureza das ações que botaram fim à Segunda República e inauguraram um longo período ditatorial.

Mas deixemos a década de 1960 e nos transportemos ao mês de abril de 2016. Como cinco décadas antes, os meses que antecederam a derrubada da presidente Dilma Rousseff foram povoados por movimentos de rua, articulações políticas e muitos boatos. Numa tarde de domingo, no dia 17 de abril de 2016, escolhida talvez para dar mais visibilidade ao ato, a Câmara dos Deputados se reuniu para votar o processo de impeachment da presidente, municiada por um parecer de rara mediocridade jurídica e muito barulho nas ruas e nos órgãos de imprensa, que muitas vezes não hesitaram em tomar o partido dos que desejavam destituir Dilma do cargo.

Esse movimento começara já ao fim das eleições de 2014, quando o opositor da presidente no segundo turno das eleições, o senador Aécio Neves, recorreu à Justiça Eleitoral, alegando que tinha havido fraude no processo. Sua reclamação se mostrou infundada, mas deu início a um movimento de destituição da presidente que dificultou e, a partir de um certo momento, inviabilizou o governo eleito. Assim, quando se iniciou a votação naquele dia, comandada pelo deputado Eduardo Cunha, que mais tarde viria a ser preso por corrupção, havia pouca esperança entre os assessores de Dilma de que o resultado lhe fosse favorável. Ao fim, 367 deputados votaram a favor, 137 contra e não houve abstenções. Nos meses seguintes, o Senado confirmaria, no dia 31 de agosto, a destituição que colocou fim à presença do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder.

A indigência intelectual da maioria dos deputados surpreendeu muitos observadores estrangeiros pouco acostumados com o perfil dos representantes do povo brasileiro; os pareceres que serviram de base para as votações eram destituídos de coerência jurídica e revelavam apenas o desejo de muitas forças do Congresso de colocar um fim aos governos do PT. Setores variados da sociedade foram às ruas pedir o impeachment da presidente. Poucas foram as análises serenas do que estava acontecendo.

Diante das evidências de que algo escapara do curso normal da vida democrática, o significado do ato de destituição da presidente logo se tornou matéria de debate. Excluindo os textos publicados por movimentos políticos claramente orientados e por alguns jornalistas, que preferiram participar diretamente da luta política no lugar de fazer jornalismo sério, a questão de compreender a natureza do acontecido povoou corações e mentes de políticos, jornalistas, cientistas sociais e cidadãos comuns.

Talvez o problema mais agudo tenha sido o de saber se o que ocorrera fora um golpe de Estado ou um processo normal de destituição de uma governante, que cumprira todos os ritos previstos na lei. Para os defensores da segunda interpretação, a suposta legalidade dos atos era suficiente para garantir-lhes a lisura e, portanto, a correção das votações do Legislativo. No segundo polo, se alinharam os que viram em todo o processo uma farsa política destinada a desalojar do poder sua ocupante legítima, para transferi-lo para grupos de interesse que se mostraram incapazes de seguir a vontade da população, que havia votado na candidata do PT.

Os que foram contrários ao impeachment observaram que a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, e o artigo 85 da Constituição de 1988, que caracterizam como crimes de responsabilidade do presidente da República vários comportamentos, entre eles quando ele/ela pratica atos contra a lei orçamentária ou a probidade na administração, não especificam exatamente quais são esses crimes e não poderiam ser usados naquela ocasião. A Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, em seu artigo 3º, aprofunda a questão sem permitir ter clareza, no entanto, se as chamadas “pedaladas fiscais”, termo jornalístico que não designa nada de específico na lei brasileira, podem ser enquadradas como crime de responsabilidade.

O que chamou a atenção de muitos foi o fato de que houve muito pouco debate sobre a natureza dos supostos crimes praticados pela presidente e uma enxurrada de pedidos para sua deposição vindos de atores de vários partidos. Mas, como lembrou o jornalista Elio Gaspari, firme opositor dos governos petistas, havia muita vontade de se livrar do PT, mas nenhum fundamento jurídico sólido para expulsar a presidente do Palácio do Planalto.

Sem aprofundar no exame dos acontecimentos dos últimos anos, mas para que o leitor não fique aguardando a revelação de minha posição pessoal sobre os acontecimentos de 2016, basta dizer que me alinho com os que acreditaram que se tratou de um golpe. Apesar da surpresa de alguns analistas e de suas dúvidas quanto à natureza das ações levadas a cabo por vários atores da cena pública brasileira naquele período, o que ocorreu foi um golpe de Estado parlamentar que, como veremos, faz parte da tradição da política ocidental e não teve nada de excepcional com relação ao que já ocorreu várias vezes na história moderna e contemporânea.

O que importa é que a noção de golpe de Estado é tão popular quanto mal compreendida. Mesmo entre cientistas sociais, historiadores e filósofos o conceito não é unívoco e costuma produzir debates ásperos entre os que se dedicam a estudar casos particulares e os que buscam formular teorias gerais capazes de explicar as razões subjacentes aos muitos acontecimentos que povoam a história e que são associados ao conceito. Meu propósito não é escrever uma história exaustiva das diversas teorias que ao longo dos séculos trataram do tema. A simples apresentação dos debates mais recentes já exigiria um grande esforço sem que eu possa dizer que ao fim estaríamos de posse de um quadro completo das investigações em curso em várias partes do mundo.

Este é um livro de história das ideias, mas não apenas. Ao longo dos capítulos procuro situar os pensadores em sua época, em face dos acontecimentos que os motivaram a escrever, mas também procuro mostrar como a leitura dos argumentos de cada um permite conversar com eles desde nosso tempo. O que me interessa são as teorias que ao longo da história investigaram a natureza e o significado de ações radicais que interrompem o curso normal do poder político regido por leis ou costumes assentados.

*Newton Bignotto é professor titular de filosofia na UFMG. Autor, entre outros livros, de Matrizes do republicanismo (Editora UFMG).

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Newton Bignotto. Golpe de Estado: história de uma ideia. Belo Horizonte, Bazar do Tempo, 2021, 384 págs.

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