Para onde caminha o conflito Hamas-Israel?

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Por RUBEN BAUER NAVEIRA*

Se Irã de um lado e EUA do outro entrarem nesta guerra, o nível de horror superará em muito qualquer coisa que tenha sido vista na Ucrânia

Para entendermos para onde caminha esse conflito, as duas perguntas para as quais muito possivelmente jamais haverá uma resposta conclusiva são: “O Hamas agiu por conta própria, ou foi comandado pelo Irã?” e “O Mossad foi enganado, ou sempre soube de tudo e deixou acontecer, ao estilo 11 de setembro?”. E uma terceira pergunta, para a qual muito em breve alguma resposta haverá, é: “Haverá guerra entre de um lado os Estados Unidos e Israel, e de outro o Irã?”

No caso das duas primeiras, o que podemos fazer é buscar construir respostas plausíveis, sabedores que sujeitas a equívocos. No caso da terceira, podemos orar para que a resposta seja “não”, porque se for “sim” o nível de horror superará em muito qualquer coisa que tenha sido vista na Ucrânia, dado as décadas de ódio represadas.

As Forças Quds da Guarda Revolucionária do Irã

É sabido que um dos objetivos do Irã é a destruição de Israel. As Forças Quds da Guarda Revolucionária do Irã são dezenas de milhares de tropas de elite, operando secretamente, na preparação e na coordenação de milícias e de governos por todo o universo muçulmano, para uma atuação conjunta contra Israel “quando chegar a hora”. Para além da libertação do povo palestino, o objetivo último das Forças Quds é a libertação da cidade sagrada (também para os muçulmanos) de Jerusalém (“Quds” é “Jerusalém” em árabe).

Há, então, células adormecidas preparadas pelas Forças Quds, apenas aguardando uma senha para entrarem em ação segundo um planejamento pré-definido? Sim, milhares delas, pelo mundo todo. Isso sugere que o Hamas tenha agido sob ordens diretas do Irã? Sim. Mas, isso assegura que tenha ocorrido assim? Não.

Tanto quanto as Forças Quds, o Hamas (e também o Hezbollah libanês) é uma instituição em si. É claro que todas as três consultam-se mutuamente buscando coordenar suas ações a um nível estratégico, porém a um nível operacional cada uma delas opera com autonomia.

Devemos ter em mente que o Hamas é uma organização fundamentalista islâmica de orientação sunita, ao invés de xiita como o Irã e o Hezbollah. Durante a guerra civil na Síria o Hamas aliou-se aos rebeldes do (hoje) HTS (Hay’at Tahrir al-Sham), igualmente fundamentalista e sunita, contra o governo de Bashar al-Assad, alauita mas relativamente secular, junto a quem o Irã e o Hezbollah combateram. Existe então coordenação (arranhada pelos eventos na Síria e posteriormente recomposta), mas não subordinação hierárquica.

Além disso, células adormecidas costumam atuar de forma relativamente avulsa quando despertadas, de modo a não botar a perder o conjunto do plano caso alguma célula seja descoberta antes da hora – porém os ataques do Hamas foram altamente coordenados, até mesmo com pousos com asas-deltas e parapentes.

A respeito dessa suposta participação do Irã, é claro que Israel sustentará a versão que melhor lhe convier, não necessariamente a verdadeira. Mas nem quanto a isso há (ainda) consenso: o embaixador de Israel junto às Nações Unidas, Gilad Erdan, disse no domingo que: “We know that there were meetings in Syria and in Lebanon with other leaders of the terror armies that surround Israel so obviously it’s easy to understand that they tried to coordinate. The proxies of Iran in our region, they tried to be coordinated as much as possible with Iran”, ao passo que o porta-voz das Forças Armadas israelenses, Brigadeiro-General Danny Hagari, declarou não haver indicações de envolvimento iraniano nos ataques do Hamas.

Tenha a decisão de atacar Israel sido tomada pelo Irã ou autonomamente pelo Hamas, fato é que o cálculo estratégico que deu base a ela tomou como certeza que a represália israelense consistiria na destruição de Gaza, pois a Israel não restaria outra opção senão reagir o mais duramente possível ao verdadeiro crime de guerra cometido contra os seus civis.

Menos de 24 horas após o ataque os fatos tendem a confirmar aquele cálculo, com novos crimes de guerra como respostas ao crime de guerra do Hamas: Israel bloqueou por completo o fornecimento de água, comida, luz e combustíveis a Gaza, vem bombardeando não apenas alvos militares, mas também a infraestrutura civil, inclusive hospitais, escolas, mesquitas e estações de tratamento de água, já matou milhares e desabrigou centenas de milhares de civis, moveu mais de cem mil soldados para as fronteiras de Gaza e convocou mais de trezentos mil reservistas para o combate.

Assim, a eliminação física dos combatentes do Hamas em meio à mortandade entre a população foi considerada um sacrifício necessário à causa, e mesmo um martírio (algo valorizado e até mesmo buscado pelos fundamentalistas islâmicos). Nesse cálculo, é claro, foi avaliado que uma destruição de Gaza será inaceitável para boa parte dos países árabes, que seriam assim levados a entrar em guerra contra Israel (de antemão, o Hezbollah já declarou que a invasão de Gaza por Israel significará a guerra).

Mossad

Quanto ao Mossad ter supostamente falhado, pode parecer inverossímil, mas não é impossível. Como qualquer outra instituição humana, ele está sujeito a ciclos de apogeu e decadência. Pode ter ocorrido alguma acomodação, na linha de ter-se tornado “vítima do próprio sucesso”. E o Hamas certamente passou por uma curva de aprendizado, aprendendo com seus erros do passado. Tudo isso considerado, a hipótese de falha do Mossad é sim improvável.

Mais comum de ocorrer com agências de inteligência é “não ser ouvido” (pelos decisores políticos), em contextos de presunção e soberba por parte das altas autoridades, de desgaste na confiança quanto ao trabalho dos órgãos de inteligência, ou de ambos – o que pode ter sido o caso. O governo de Benjamin Netanyahu vinha passando por forte desgaste interno com seu projeto de reforma do judiciário, considerado autoritário e ditatorial por vastos segmentos da sociedade, que acabou dividida. No vazamento dos documentos do Pentágono de abril deste ano, constava a informação (naturalmente negada) de que o Mossad estimulava os protestos conta o governo:

É óbvio que um evento como o ataque em massa a civis pelo Hamas teria como condão unir a sociedade israelense em torno do governo, sendo assim bastante conveniente para Benjamin Netanyahu. Porém, Israel desde sempre cultivou e cultuou uma imagem de invulnerabilidade para suas Forças Armadas e seus órgãos de segurança, sendo assim improvável que se tenha deixado desmoralizar, deliberadamente, um ativo tão precioso.

A sociedade israelense, por sua vez, em especial a parcela mais secular que se opõe a Benjamin Netanyahu, é de modo geral culta, bem-informada e dotada de razoável discernimento, com o que uma “armação” ao estilo 11 de setembro dificilmente perduraria por muito tempo (vide a “rebeldia” do Mossad, acima). Tanto assim o é que o mais tradicional veículo da mídia mainstream em Israel, o jornal Haaretz, não embarcou na onda da “união nacional” e prossegue na oposição a Netanyahu – não porque tenha repentinamente se tomado de amores pelos palestinos, mas porque reconhece os riscos existenciais para Israel em uma conflagração contra o Irã.

Seria possível que Benjamin Netanyahu e seu governo de religiosos radicais anti-palestinos tenha resolvido partir para um tudo-ou-nada de altíssimo risco para, de uma tacada só, superar a oposição interna dos que se opõem a suas reformas e eliminar a oposição externa dos palestinos em Gaza (e talvez também na Cisjordânia), escolhendo fazer vista grossa a qualquer advertência pelo Mossad e colocando em risco a própria sobrevivência do estado judeu, em nome de seu projeto de governo, e mesmo pessoal? A ver.

Se for isso mesmo, o cálculo de Benjamin Netanyahu necessariamente envolve arrastar os Estados Unidos para a guerra contra o Irã se deixando atacar pelos iranianos, após o que não restaria outra alternativa aos americanos.

Fato é que Israel sabe que não tem como enfrentar o Irã sem ser junto com os Estados Unidos. A geografia conta muito, e a distância em linha reta entre os dois países, a ser coberta pela Força Aérea israelense, varia de 1.300 a 2.000 quilômetros (ao contrário dos iranianos, que desenvolveram mísseis e drones de longo alcance, Israel conta basicamente com seus jatos). Qualquer ataque aéreo seria detectado imediatamente após a decolagem pelos satélites russos e chineses, e repassado a Teerã.

Israel, depois de ter perdido um F-16 e um F-35 contra as defesas antiaéreas da Síria (a derrubada do F-35 foi atribuída a “pássaros”) passou a somente atacar aquele país a partir das águas do Mediterrâneo, com muito menos efetividade. E as defesas antiaéreas do Irã são bem mais avançadas que as da Síria.

Os americanos, por sua vez, encontram-se com sua logística militar já por demais sobrecarregada e exaurida pelo apoio à Ucrânia na guerra contra os russos, e pelos preparativos para a guerra contra a China a pretexto de Taiwan. Neste momento, abrir mais um front é tudo o que o militares americanos não pretendem. Aonde fica o maior estoque de munições dos EUA no Oriente Médio? Por razões óbvias, em Israel. E há relatos de que cerca de 80% do total de munições em Israel já tenham sido repassados à Ucrânia.

EUA, Rússia e China

Assim, é bem plausível que o Irã tenha tomado partido desse momento desfavorável aos EUA para desencadear sua operação para liquidar Israel, e que isso esteja sendo feito em comum acordo com os maiores adversários dos americanos, Rússia e China. A Rússia se beneficiaria de uma inevitável redução do fluxo de recursos (dinheiro e armas) para a Ucrânia, e do igualmente inevitável salto nos preços internacionais do petróleo; a China ganharia tempo para continuar a se armar para a guerra contra os americanos. E seria somente coincidência que, no mesmo ano em que a Rússia toma a dianteira na guerra contra a Ucrânia e os Estados Unidos tendem a ser ver arrastados para uma guerra contra o Irã, países africanos tenham se sublevado contra os poderes coloniais?

A partir disso seria possível afirmar-se que os Estados Unidos, imperialistas inveterados, prefeririam não entrar agora em uma guerra contra o Irã? Não, de modo algum. Há décadas todo governo americano, democrata ou republicano, se encontra infiltrado por elementos de um grupo ultra-imperialista conhecido como os “neocons straussianos”, que manipula as engrenagens do poder em direção ao objetivo de uma dominação mundial pelos Estados Unidos. Assim, diante de um Irã em franca ascensão (fornecedor de armas à Rússia, com suas relações com a Arábia Saudita enfim normalizadas, recém-admitido nos BRICS) os noecons straussianos podem ter feito o seu próprio cálculo e concluído que, se o Irã não for enfrentado e destruído agora, depois será tarde demais, e os Estados Unidos estarão condenados.

Partir para um enfrentamento contra o Irã, depois dos fracassos no Afeganistão, Iraque e Síria, e num momento de esgarçamento logístico da máquina de guerra americana, não seria uma estratégia desesperada de tudo-ou-nada? Sim, mas a situação dos americanos pode por vários modos ser considerada desesperadora: dívida galopante, desdolarização lenta porém firme do comércio mundial, iminente derrota militar na Ucrânia, fraturas sociais internas profundas, provável perda das eleições para Trump…

Uma guerra contra o Irã flexibilizaria as resistências a gastos militares no Congresso (inclusive em relação à Ucrânia), serviria como cortina de fumaça para tirar a Ucrânia do foco de atenção (a mídia mainstream já vinha deixando de tocar na Ucrânia), poderia vir até mesmo a justificar uma suspensão das eleições presidenciais do ano que vem e, convertida em uma guerra global, poderia vir a propiciar “zerar” o rombo financeiro dos Estados Unidos, a cada dia mais sombrio:

Fato é que os americanos já deslocaram o maior dentre seus porta-aviões, o Gerald Ford, para o Mediterrâneo oriental, junto ao litoral de Israel, Líbano e Síria. Em paralelo, um dos veículos de mídia alinhados com os neocons straussianos, o The Wall Street Journal, já deu a largada no procedimento-padrão de catequese do público via fake news:

Algumas considerações finais de cunho militar:

(i) Israel possui um sistema de defesa antimísseis, o Iron Dome. A razão pela qual um significativo volume de foguetes do Hamas, boa parte dos quais “fundo de quintal” (muito embora tenham também sido lançados mísseis de fabricação iraniana, contrabandeados para Gaza) ter “vazado” o Iron Dome foi terem sido lançados todos praticamente ao mesmo tempo, saturando assim o sistema. De todo modo o Iron Dome buscou interceptar o máximo deles, e assim alguns analistas conjecturam que um efeito que pode ter sido planejado pelo Hamas foi o de “desabastecer” (desmuniciar) o Iron Dome, e assim deixar Israel ainda mais vulnerável aos mísseis mais modernos do Hezbollah.

(ii) Uma “tragédia anunciada” que se constatou foi o amplo uso de armamento ocidental pelos atacantes do Hamas, proveniente do mercado negro ucraniano. Já se dá como certo que, mundo afora, as insurgências e mesmo o crime organizado puderam ser fartamente abastecidos de armamento de ponta por meio dessa via.

(iii) Israel, desde a década de 1960, possui armas nucleares, então fornecidas pela França e, desde a década de 1970, fabricadas domesticamente. Em caso de ameaça existencial (ameaça à sobrevivência do país), Israel não hesitará em usá-las, como ademais qualquer outro país detentor de armas nucleares o faria. Vejamos, porém, o que consta da doutrina da Rússia para emprego de armas nucleares, amplamente divulgada por Moscou: “The Russian Federation retains the right to use nuclear weapons in response to the use of nuclear weapons and other types of weapons of mass destruction against it and/or its allies and also in the case of aggression against the Russian Federation with the use of conventional weapons, when the very existence of the state is put under threat”.

Você leu “and\or its allies”. Melhor mesmo rezar para que essa guerra não aconteça.

*Ruben Bauer Naveira é ativista político. Autor do livro Uma Nova Utopia para o Brasil: Três guias para sairmos do caos (disponível em http://www.brasilutopia.com.br/).


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