Um equívoco infantil

Gustav Klimt, Morte e Vida, c.1911.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PRISCILA FIGUEIREDO*

A morte tinha roído, ou melhor, depurado, a alma desse parente até o miolo, até o seu fundo bom e gentil

Quando eu tinha uns seis, sete anos, por alguma contingência conhecia o sentido da palavra “refinado”, mas não o de “finado”. Então, quando nessa idade soube de sua existência, achei que ela significava a mesma coisa que a primeira, de modo que o feriado de Finados veio a ser para mim o “feriado de mortos finados”, ou “feriado de mortos refinados”, daqueles que tinham sido delicados em vida (muito mais tarde é que eu saberia que o primeiro adjetivo poderia também ser variação do segundo, mas isso certamente não acontecia no sintagma em questão).

E lembro que houve vezes em que, para mostrar o quanto estava consciente de que o substantivo decisivo tinha sido ocultado, pois vagamente devia pensar que isso se devesse a algum decoro, economia, ou à força do hábito, eu explicitava a estrutura toda: “Vamos viajar nesse feriado de mortos finados, mamãe?”. Ela parecia admirada, supondo talvez uma espécie de obstinação na clareza, que me fazia repetir com significantes diferentes, um com função pleonástica, a mesma ideia.

Ocorre que naquela época, quando se levavam mais a sério essa e outras datas, muitos eram os que viajavam para ir homenagear os familiares enterrados nas cidades de origem, ou então reservavam especialmente a manhã, metodicamente nublada e fria, ou garoenta de São Paulo, para essas visitas fúnebres. Era nítido como, na rua em que eu morava, quase todos estavam ocupados com isso no dia. O que me fazia supor um número inverossímil de defuntos com passado de boas maneiras, fineza, amabilidade e mesmo bondade, o maior refinamento entre todos.

Eu formava umas hipóteses: ah é porque, como dizem, “morreu, virou santo”, ou ninguém se lembra mais das grosserias que cometeram quando tinham energia. Ou porque, nessa condição, todos ficam inofensivos, portanto mais delicados. Passam por um refino. Eu sabia, por exemplo, que entre os túmulos percorridos havia o de um parente que tinha empesteado a vida de todos a seu redor, só lhes trazendo infelicidade e sentimento de derrota; no entanto sabia também que cometera atos de muita generosidade, especialmente com desconhecidos. “No fundo, era uma boa pessoa”, concluíam todo ano, depois de terem recordado, na volta para casa, uma fileira de maldades. Então meu pensamento ganhava uma nova nuance: a morte tinha roído, ou melhor, depurado, a alma desse parente até o miolo, até o seu fundo bom e gentil; por isso que o visitavam.

Acho que por uns dois anos, no mesmo período, eu ainda fazia cogitações dessa natureza, até que fui entrando na compreensão coletiva do sentido da data, que passou a ser tão-somente o dia dos que se finaram, dos que tiveram um fim, aquele mesmo que todos teríamos (era uma verdade apenas muito teórica para mim, mas antes eu a ignorava por completo); o dia dos mortos puramente substantivos, não qualificados nem selecionados, dos amenos aos ossos mais duros de roer em vida. Operava-se um nivelamento, e isso tirava certo encanto da coisa. Era estranho pensar que, qualquer que tivesse sido a natureza espiritual da pessoa, ela entrava numa vala geral chamada “finados”.

O desengano, no entanto, competia em mim com a concepção católica que hierarquiza as almas, cuja localização – se no inferno, no purgatório ou paraíso – indica o grau de sua virtude passada. Mas então por que peregrinar até os cemitérios se o que contava da pessoa não estava lá? Devia ser, uma hora eu ponderava e me aquietava, porque havia a promessa, bíblica – na qual as crianças viam mais motivo de terror que de alegria –, de que todos os sepultados se levantariam numa hora tremenda, e para que isso acontecesse era necessário zelar por aqueles restos, nem que fosse por milênios. Então seriam convocados e voltariam a ser carne, e a carne refeita puxaria a alma de volta para si. Isso no fim dos tempos, isto é, quando os tempos é que seriam os novos finados.

*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi). [https://amzn.to/3tZK60f]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Daniel Brazil Vanderlei Tenório Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Bernardo Pericás Leonardo Avritzer Sandra Bitencourt José Micaelson Lacerda Morais Ricardo Musse Tales Ab'Sáber Alexandre Aragão de Albuquerque José Luís Fiori Lucas Fiaschetti Estevez Henry Burnett Leonardo Boff Leda Maria Paulani Eugênio Bucci Carla Teixeira Afrânio Catani Samuel Kilsztajn Renato Dagnino João Carlos Salles Luciano Nascimento Tarso Genro Ronald Rocha Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Renato Martins Eleonora Albano Chico Alencar Flávio R. Kothe Jean Pierre Chauvin Fernando Nogueira da Costa Manuel Domingos Neto João Adolfo Hansen Eleutério F. S. Prado Marcelo Módolo André Márcio Neves Soares Ari Marcelo Solon Paulo Sérgio Pinheiro Celso Frederico José Costa Júnior Daniel Afonso da Silva Dênis de Moraes Andrew Korybko José Raimundo Trindade Ladislau Dowbor Julian Rodrigues Ricardo Abramovay Atilio A. Boron Chico Whitaker Alexandre de Freitas Barbosa Andrés del Río Bento Prado Jr. Matheus Silveira de Souza Mário Maestri Berenice Bento Gilberto Maringoni Everaldo de Oliveira Andrade João Feres Júnior Michael Löwy Rubens Pinto Lyra Luiz Roberto Alves Yuri Martins-Fontes Gerson Almeida Heraldo Campos Luis Felipe Miguel Michel Goulart da Silva Paulo Nogueira Batista Jr José Geraldo Couto Fábio Konder Comparato Tadeu Valadares Ricardo Antunes Kátia Gerab Baggio José Dirceu Eduardo Borges Ronald León Núñez Armando Boito Jean Marc Von Der Weid Airton Paschoa Marilena Chauí Anselm Jappe Priscila Figueiredo Liszt Vieira Luiz Marques André Singer Leonardo Sacramento Lincoln Secco Marcelo Guimarães Lima Gabriel Cohn Daniel Costa Valerio Arcary Lorenzo Vitral Mariarosaria Fabris Antonio Martins Rafael R. Ioris Luiz Werneck Vianna Bruno Fabricio Alcebino da Silva Valerio Arcary Luís Fernando Vitagliano Jorge Branco Salem Nasser Walnice Nogueira Galvão Thomas Piketty Henri Acselrad Francisco Pereira de Farias Milton Pinheiro Sergio Amadeu da Silveira Marilia Pacheco Fiorillo Francisco de Oliveira Barros Júnior Osvaldo Coggiola Rodrigo de Faria Annateresa Fabris Caio Bugiato Gilberto Lopes Alysson Leandro Mascaro Elias Jabbour Bernardo Ricupero Paulo Martins João Lanari Bo Slavoj Žižek Juarez Guimarães Marcus Ianoni Celso Favaretto Marjorie C. Marona Manchetômetro Vladimir Safatle Paulo Fernandes Silveira Eugênio Trivinho Ronaldo Tadeu de Souza João Paulo Ayub Fonseca Alexandre de Lima Castro Tranjan Maria Rita Kehl Claudio Katz Jorge Luiz Souto Maior José Machado Moita Neto Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Sette Whitaker Ferreira Marcos Aurélio da Silva Vinício Carrilho Martinez Denilson Cordeiro Flávio Aguiar Paulo Capel Narvai Marcos Silva Ricardo Fabbrini Fernão Pessoa Ramos Luiz Eduardo Soares Érico Andrade Francisco Fernandes Ladeira Carlos Tautz Antonino Infranca Michael Roberts Igor Felippe Santos Antônio Sales Rios Neto Remy José Fontana João Carlos Loebens Benicio Viero Schmidt Dennis Oliveira Bruno Machado Otaviano Helene Boaventura de Sousa Santos Eliziário Andrade

NOVAS PUBLICAÇÕES