Piso salarial da enfermagem

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Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR*

No Brasil, herói bom é herói morto

No período da pandemia – que ainda não terminou – não foram poucos os reconhecimentos em torno da essencialidade dos serviços prestados pelos profissionais da saúde. A população demonstrou explicitamente sua gratidão a estas pessoas com gestos e palavras. Inúmeras foram às vezes em que os profissionais da saúde se viram alvos de aplausos, sendo até tratados como heróis, isto porque, mesmo trabalhando nas condições mais desfavoráveis possíveis, submetendo-se a enormes riscos, conseguiam salvar milhões de vidas.

As trabalhadoras (pois são, na maioria, mulheres) da saúde, notadamente, da enfermagem, sempre disseram que agradeciam os aplausos, mas que mais do que aplausos queriam que seus direitos enquanto trabalhadoras fossem respeitados e, sobretudo, que seu piso salarial e o limite de 30 horas de trabalho na semana, há muito perseguidos, lhe fossem, enfim, assegurados (http://www.confetam.com.br/noticias/pl-da-enfermagem-mais-que-aplausos-trabalhadores-querem-direitos-093f/).

Depois de anos de luta e de sofrimentos, que se multiplicaram na pandemia, em 4 de agosto de 2022, foi publicada a Lei n. 14.434, que conferiu aos enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras um piso salarial.

Divulgou-se, amplamente, que o piso em questão seria de R$4.750,00; Mas este valor refere-se, unicamente, aos enfermeiros. Para os técnicos de enfermagem, o piso é de R$ 3.325,00 (70% do piso dos enfermeiros); para os auxiliares de enfermagem e parteiras, R$ 2.375,00 (50% do piso dos enfermeiros).

Trata-se, pois, de valores de salários bem aquém da relevância da função cumprida e nas condições em que é exercida. O salário-mínimo atual é de R$1.212,00 e sobre as condições de trabalho, todas as pessoas que precisaram ir a hospitais ou postos de saúde sabem do que se está falando.

De todo modo, o oportuno relato de Maria Helena Machado é bem útil para que a realidade não deixe tão rapidamente a nossa memória: “As pesquisas recentes realizadas pela Fiocruz, sobre as condições de trabalho e saúde mental dos trabalhadores(as) da saúde mostram um cenário complexo e preocupante. E a Enfermagem não ficou ilesa nesse contexto, ao contrário, foi atingida de forma brutal com milhares de contaminados e centenas que foram a óbitos por Covid-19 (Cofen, 2022), mais precisamente, 256 enfermeiros e 617 auxiliares/técnicos de enfermagem, segundo Machado et al (2022)”.

“Os dados de nossas recentes pesquisas na Fiocruz (2021-2022), sobre condições de trabalho e saúde mental dos trabalhadores (as) da saúde mostram um quadro em que: (i) ¼ dos trabalhadores de saúde apresenta comorbidades, sendo cinco as mais prevalentes: hipertensão, obesidade, doenças pulmonares, depressão e diabetes; (ii) mais de 70% apresentam com fortes sinais de esgotamento e cansaço por excesso e sobrecarga de trabalho; (iii) a maioria denuncia más condições de trabalho traduzidas em infraestruturas precárias e inadequadas, produzindo desconforto e problemas ergonômicos; (iv) biossegurança insuficiente; (v) salários baixos e insuficientes para seu sustento e de um domicílio- trabalho precário apontado pela OIT- Organização Internacional do Trabalho; (vi) multiplicidade de vínculos, quase sempre precários e temporários e muitos, na modalidade de bicos; (vii) sequelas físicas e psíquicas heranças da pandemia com enormes repercussões na vida diária desse contingente de mais de milhões de trabalhadoras e trabalhadores da saúde, no qual a enfermagem é hegemônica e essencial.” (“Profissão da Enfermagem: essencialidade x piso salarial”, disponível em: https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/53382).

Concretamente, o piso salarial em questão é uma forma mínima e apenas simbólica de reparar o impróprio tratamento conferido aos profissionais responsáveis pela realização de serviços essenciais à recuperação e preservação da saúde e da vida da população brasileira.

Não há argumento social, cultural e humano que se possa levantar contra o piso salarial em questão, a não ser o de que o valor ainda se mostra insuficiente para o pleno resgate da dignidade desses trabalhadores e dessas trabalhadoras. Muito menos há algum argumento jurídico que possa recusar a constitucionalidade e a pertinência da norma ou obstar a sua eficácia.

No entanto, atendendo ao pedido da Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços – CNSAÚDE, que congrega, sobretudo, entidades sindicais representativas de empresas privadas que exploram economicamente o trabalho na área da saúde, o Ministro Luís Roberto Barroso, resolveu “suspender” a aplicação da Lei 14.434/22.

Segundo os argumentos lançados na decisão, o piso salarial em questão, se aplicado, poderia: (a) gerar “impacto financeiro e orçamentário sobre Estados e Municípios e os riscos para sua solvabilidade (CF, art. 169, § 1º, I)”; (b) provocar “impacto sobre a empregabilidade no setor, tendo em vista as alegações plausíveis de demissões em massa trazidas aos autos (CF, art. 170, VIII)”; e (c) trazer “impacto sobre a prestação dos serviços de saúde, pelo alegado risco de fechamento de hospitais e de redução nos quadros de enfermeiros e técnicos (CF, art. 196)”.

Ou seja, para atender a demanda de empresas privadas, o Ministro utilizou argumentos pertinentes aos entes públicos, o que não se mostra pertinente também pelo aspecto de que tais avaliações dos impactos financeiros sobre estados e municípios foram realizadas durante o processo legislativo, que contou, inclusive, com a entidade de representação dos profissionais da saúde (os Conselhos Federal e Regionais de Enfermagem – COFEN/COREN – https://www.f5news.com.br/cotidiano/corense-se-posiciona-sobre-decisao-do-ministro-luis-roberto-barroso.html).

E quanto às entidades privadas, a decisão de suspensão apenas consignou que se estas empresas quisessem cumprir a lei estariam livres para tanto, mas não estariam obrigadas: “Naturalmente, as instituições privadas que tiverem condições de, desde logo, arcar com os ônus do piso constante da lei impugnada, não apenas não estão impedidas de fazê-lo, como são encorajadas a assim proceder. As circunstâncias constitucionais e fiscais aqui apontadas não significam que o valor não seja justo e que as categorias beneficiadas não mereçam a remuneração mínima”.

Os argumentos, como se vê, não são propriamente jurídicos, notadamente na parte que diz respeito às empresas privadas e, do ponto de vista econômico (o que não traz qualquer repercussão juridicamente relevante no caso) são meramente opinativos e ainda integrados da ameaça típica do setor econômico do “fechamento” de unidades, chegando até mesmo a incentivar a prática já declarada ilegal pelo próprio STF da dispensa em massa.

Diante de uma Constituição Federal que se fincou sobre a base da dignidade humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, além de ter erguido a direito fundamental o princípio da melhoria da condição social dos trabalhadores e trabalhadoras não se parece juridicamente razoável o argumento de que a preservação dos empregos só se garanta por meio de baixos salários e contratos precários, porque, afinal, em última análise, é isto que se diz quando a preservação dos empregos é o argumento utilizado para negar validade a uma lei (democrática e regularmente votada no Congresso Nacional) que conferiu um módico reajuste salarial a uma categoria de trabalhadores e trabalhadoras que exercem atividade considerada essencial.

Curiosamente, o STF em nenhum momento se viu instado a suspender a aplicação da Lei 13.467/17, que foi fruto de um processo legislativo viciado e que impôs inúmeros retrocessos sociais, humanos e econômicos à classe trabalhadora e que atingiu, sobretudo, os profissionais da saúde que, hoje, trabalham em regimes de sobrejornada, sem intervalo e com contratos precários, que incluem, inclusive, quarteirização.

Fato é que o aumento do sofrimento da classe trabalhadora parece não comover as instituições brasileiras, enquanto que o clamor do poder econômico contra uma maior partilha de seus lucros (https://einvestidor.estadao.com.br/investimentos/valor-acoes-empresas-saude-brasil) ecoa rápida e eficazmente.

Como dito por um amigo, a sorte dos escravizados e das escravizadas é que em 1888 não havia ADI, pois se existisse pode ser que a Lei Áurea fosse suspensa em razão dos seus impactos na economia do país.

Mas as(os) profissionais da saúde podem ficar tranquilos, pois quanto pior for a sua condição de vida, mais próximos estarão de ser oficialmente declarados heróis nacionais, pois, no Brasil, herói bom, é herói morto.

PS: Este texto foi escrito antes de encerrada o julgamento da ADI 7222, com a torcida de que o resultado final da votação desminta o seu conteúdo. E na esperança também de que se dê ouvidos à pertinente advertência lançada pelo Ministro Edson Fachin nas razões de seu voto divergente: “Por fim, tenho que a linha de precedentes recentes em relação à matéria trabalhista sugere que o risco da demora é, no presente caso, inverso. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, em matéria trabalhista, vem chancelando a redução dos espaços institucionais em que os trabalhadores tradicionalmente podiam ventilar suas insatisfações: o direito de greve de servidores públicos foi significativamente reduzido, a representação sindical foi severamente atingida pela redução do imposto sindical e o ônus para se recorrer à Justiça do Trabalho aumentou consideravelmente”.

“Nesse cenário, não chega a surpreender que a única via que tenha restado às categorias seja o recurso à representação política e que, na esteira do piso para os enfermeiros, outras categorias também planejem reivindicações semelhantes. A presente ação é paradigmática, porque pode acabar por fechar a única via que restou aos trabalhadores brasileiros para fazer valer suas demandas. Se nem quando uma maioria constitucional tem, aos olhos desta Suprema Corte, legitimidade para assegurar direitos fundamentais sociais, especialmente os trabalhistas, é sinal de que uma minoria foi por ele privilegiada”.

“Renovando as vênias de estilo, entendo que acolher a alegação de inconstitucionalidade, tal como formulada, parece atentar contra o sentido mais básico de legitimidade democrática”.

*Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores).

 

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