Capital e desigualdade

Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze), sem título (tempo_dinheiro), 1988.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PEDRO HENRIQUE MAURÍCIO ANICETO*

O aumento das desigualdades socioeconômicas nas últimas décadas representa uma das tendências estruturais mais preocupantes do início do século XXI

A legitimação das desigualdades em qualquer sociedade é um desafio constante que dá origem a uma miríade de discursos e ideologias divergentes. Conforme observado por Thomas Piketty em Capital e ideologia, este é um processo intelectual, institucional e político que molda as estruturas sociais e políticas

No cenário atual, prevalece a narrativa proprietarista, empreendedora e meritocrática como justificativa para o regime desigualitário hiper capitalista, acreditando-se que a desigualdade moderna é o resultado de escolhas individuais, igualdade de oportunidades e mérito pessoal. No entanto, essa narrativa, que ganhou destaque no século XIX e passou por uma reformulação global no final do século XX, está mostrando sinais de fragilidade.

Nas últimas décadas, um fenômeno global tem vindo a desafiar as narrativas que sustentam as desigualdades socioeconômicas. Desde os anos 1980-1990, as desigualdades têm aumentado em quase todas as regiões do mundo, atingindo níveis que dificultam a justificação em nome do interesse geral. A retórica meritocrática e empreendedora, que argumenta que a desigualdade moderna é o resultado de escolhas individuais e da igualdade de oportunidades, está cada vez mais em contradição com a realidade enfrentada pelas classes desfavorecidas, que frequentemente têm acesso limitado à educação e riqueza.

Além disso, a culpabilização dos menos privilegiados está se tornando mais proeminente, o que contrasta com os regimes desigualitários antigos que enfatizavam a complementaridade funcional entre grupos sociais. Essa desigualdade moderna também está associada a práticas discriminatórias e desigualdades estatutárias e étnico-religiosas, que raramente são mencionadas nas narrativas meritocráticas. Diante dessas contradições e da ausência de uma nova visão universalista e igualitária para enfrentar os desafios do século XXI, o risco de um ressurgimento do populismo xenófobo e nacionalista se torna uma possibilidade preocupante.

A essência de qualquer regime desigualitário reside na complexa interligação entre uma teoria da fronteira e uma teoria da propriedade. Essas duas questões cruciais desempenham papéis interdependentes na formação das sociedades e na justificação das desigualdades. A questão da fronteira requer uma explicação sobre quem pertence à comunidade política, em que território e sob quais instituições essa comunidade deve se organizar e como ela se relaciona com outras comunidades no contexto global.

A questão da propriedade envolve a definição das relações entre proprietários e não proprietários, abrangendo desde a propriedade de indivíduos, terras e empresas até recursos naturais, conhecimentos e ativos financeiros. Esses regimes de propriedade, juntamente com os sistemas educacionais e tributários, desempenham um papel central na estruturação das desigualdades sociais e em sua evolução ao longo da história.

Em sociedades antigas, como as escravocratas, as questões do regime político e do regime de propriedade estavam intimamente entrelaçadas, uma vez que alguns indivíduos possuíam outros e exerciam tanto o poder sobre as pessoas quanto sobre a terra. Nas sociedades ternárias, que eram divididas em três classes funcionais, as classes dominantes detinham poderes soberanos e propriedades, mantendo essa relação direta entre poder sobre indivíduos e propriedades.

Nas sociedades de proprietários que floresceram na Europa no século XIX, houve uma tentativa de separar estritamente o direito de propriedade do poder soberano, mas a relação entre regime político e regime de propriedade permaneceu intrincada. Os regimes censitários reservavam por muito tempo os direitos políticos aos proprietários, enquanto as regras constitucionais limitavam a capacidade de redefinir o regime de propriedade de maneira pacífica e legal.

Essas conexões estruturais entre regime político e regime de propriedade persistem nas sociedades modernas, incluindo as sociedades pós-coloniais e hipercapitalistas. É essencial reconhecer que a desigualdade contemporânea é profundamente influenciada pelo sistema de fronteiras, nacionalidades e direitos sociais e políticos, o que gera complexos conflitos ideológicos no século XXI. As clivagens étnico-religiosas e nacionais frequentemente dificultam a formação de coalizões políticas abrangentes para enfrentar o aumento das desigualdades.

O aumento das desigualdades socioeconômicas nas últimas décadas representa uma das tendências estruturais mais preocupantes do início do século XXI em nível global. Esse fenômeno desafia não apenas a estabilidade econômica, mas também a busca de soluções para uma série de outros desafios prementes, incluindo questões climáticas e migratórias. Reduzir as desigualdades e estabelecer um padrão de justiça aceitável tornou-se fundamental para enfrentar eficazmente esses desafios.

Uma análise simples, baseada na participação do décimo superior na renda total, revela um aumento notável nas desigualdades desde a década de 1980 em quase todas as regiões do mundo. Essa participação, que estava em torno de 25%-35% em 1980, agora varia entre 35%-55% em 2018, sugerindo que as desigualdades podem continuar a crescer. Além disso, o aumento das desigualdades tem afetado desproporcionalmente os 50% mais pobres, cuja participação na renda total diminuiu substancialmente. As disparidades de desigualdade variam significativamente entre as regiões, mesmo considerando níveis de desenvolvimento semelhantes.

Por exemplo, os Estados Unidos testemunharam um aumento mais rápido das desigualdades do que a Europa, e a Índia experimentou uma elevação mais acentuada do que a China. Além disso, algumas regiões, como a África Subsaariana, o Brasil e o Oriente Médio, já eram altamente desiguais em 2018, com o décimo superior detendo uma parcela ainda maior da renda total.

A complexa origem dessas desigualdades varia de heranças históricas a discriminações raciais e coloniais, com fatores como a concentração de riqueza petrolífera desempenhando um papel. No entanto, essas regiões têm em comum o fato de estarem situadas na fronteira das desigualdades contemporâneas, com a participação do décimo superior em torno de 55%-65% da renda total.

Em conclusão, as reflexões apresentadas a partir da obra Capital e ideologia, de Thomas Piketty, destacam a complexidade das questões relacionadas às desigualdades socioeconômicas e seu impacto global. A legitimação das desigualdades tem sido um desafio contínuo nas sociedades, com narrativas baseadas na meritocracia e no empreendedorismo em ascensão, justificando as disparidades de riqueza.

Em última análise, destaca-se a necessidade de uma reflexão profunda e uma ação coordenada em níveis global para abordar as crescentes desigualdades e construir uma sociedade mais justa e igualitária no século XXI. O ressurgimento do populismo xenófobo e nacionalista é um risco que deve ser evitado, e a promoção de narrativas alternativas e soluções eficazes se torna essencial para forjar um futuro mais equitativo.

*Pedro Henrique M. Aniceto é graduando em ciências econômicas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ricardo Musse Daniel Costa João Feres Júnior Elias Jabbour Airton Paschoa Marilia Pacheco Fiorillo João Paulo Ayub Fonseca Gabriel Cohn João Lanari Bo Maria Rita Kehl Walnice Nogueira Galvão João Carlos Loebens Érico Andrade João Carlos Salles Valerio Arcary Anselm Jappe Manchetômetro Kátia Gerab Baggio José Raimundo Trindade Marcos Silva Lorenzo Vitral Sergio Amadeu da Silveira Samuel Kilsztajn Tadeu Valadares Ricardo Antunes Francisco Fernandes Ladeira Celso Frederico Fernando Nogueira da Costa Marcelo Módolo Gilberto Lopes Eleutério F. S. Prado Osvaldo Coggiola Boaventura de Sousa Santos Renato Dagnino Antonio Martins Priscila Figueiredo Marilena Chauí Antonino Infranca Carlos Tautz Jean Pierre Chauvin Mário Maestri João Sette Whitaker Ferreira Ari Marcelo Solon Paulo Martins José Geraldo Couto Michael Löwy Armando Boito Salem Nasser Annateresa Fabris Eugênio Bucci Marcus Ianoni Afrânio Catani Luis Felipe Miguel Ladislau Dowbor Thomas Piketty Francisco Pereira de Farias Sandra Bitencourt Alexandre de Lima Castro Tranjan André Singer Fernão Pessoa Ramos Henri Acselrad José Luís Fiori Luiz Bernardo Pericás Henry Burnett Lucas Fiaschetti Estevez Eliziário Andrade Antônio Sales Rios Neto Lincoln Secco Leonardo Boff Jorge Branco Matheus Silveira de Souza Slavoj Žižek José Micaelson Lacerda Morais Andrew Korybko Tarso Genro Alexandre Aragão de Albuquerque Yuri Martins-Fontes Mariarosaria Fabris Andrés del Río Luiz Roberto Alves Luís Fernando Vitagliano Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Nogueira Batista Jr Michel Goulart da Silva Atilio A. Boron Ronald Rocha Luiz Marques Otaviano Helene Carla Teixeira Benicio Viero Schmidt Rafael R. Ioris Luiz Werneck Vianna Luiz Eduardo Soares Daniel Afonso da Silva Michael Roberts Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bernardo Ricupero Rubens Pinto Lyra Milton Pinheiro Chico Alencar Leonardo Avritzer Vanderlei Tenório Luciano Nascimento Tales Ab'Sáber Liszt Vieira Heraldo Campos José Costa Júnior Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Rodrigo de Faria Eugênio Trivinho Jean Marc Von Der Weid Flávio Aguiar Paulo Capel Narvai Flávio R. Kothe Alysson Leandro Mascaro José Machado Moita Neto Valerio Arcary Vinício Carrilho Martinez Marcos Aurélio da Silva Fábio Konder Comparato Paulo Sérgio Pinheiro Daniel Brazil Dênis de Moraes Luiz Carlos Bresser-Pereira João Adolfo Hansen Manuel Domingos Neto Caio Bugiato Bento Prado Jr. André Márcio Neves Soares Dennis Oliveira Marcelo Guimarães Lima Berenice Bento Marjorie C. Marona José Dirceu Gerson Almeida Leonardo Sacramento Luiz Renato Martins Bruno Machado Eleonora Albano Ricardo Fabbrini Chico Whitaker Francisco de Oliveira Barros Júnior Bruno Fabricio Alcebino da Silva Vladimir Safatle Jorge Luiz Souto Maior Gilberto Maringoni Denilson Cordeiro Claudio Katz Paulo Fernandes Silveira Eduardo Borges Celso Favaretto Igor Felippe Santos Alexandre de Freitas Barbosa Remy José Fontana Ronald León Núñez Ricardo Abramovay Ronaldo Tadeu de Souza Julian Rodrigues Juarez Guimarães Leda Maria Paulani

NOVAS PUBLICAÇÕES