Por MARILIA PACHECO FIORILLO*
Passaram a perna nele, e adivinha quem foi?
Entrementes, o Diabo acordou de uma siesta – levam séculos suas pestanas –, espreguiçou-se e matutou: “Está na hora de pegar de novo no batente, fazer uma visitinha ao mundo e continuar minha obra, espalhando o máximo de abominações que puder”.
Fazia tempo que não passeava pela Terra. (Foi antes da pandemia da SarsCov 2, então não praguejem pois ele não esteve envolvido).
Vaidoso como lhe compete, estava certo de que bastaria aterrissar em alguma cidade, cochichar tentações no ouvido de alguém e pronto: novas hostes e novos guardiões o seguiriam em vilanias, dando alento à interminável luta cósmica do mal contra o bem. Ele confiava no fulgor e ribombar de antanho. Muquirana como sempre foi, encheu de ouro só metade da bolsa, a outra metade, de moedas falsas, criptocoisas. E preguiçoso como ele só, bocejou, não planejou nada, limitando-se a botar debaixo do braço um livro que narrava seus feitos passados, de uma chamada Torá, para nele se safar. Caso seus vetustos artifícios não funcionassem, sempre poderia disfarçar sua voz num podcast qualquer, sobre Aleppo, Kabul, Myanmar ou o Yemen e desafiar seu íntimo Antagonista, um tal Deus que ficaria na berlinda, sem conseguir rebater.
Por onde andariam moabitas, cananeus, fariseus e filisteus? ele se perguntava. E os descendentes do bom Jó?
Que Diabo desatualizado. É o que dá dormir demais. O Demo estava na era analógica, não tinha zap nem face nem insta. Um ancião conservador.
Ainda insistia no rame-rame de Jó. Aposta dura tinha sido aquela, ele e seu tradicional Antagonista disputando palmo a palmo até onde o coitado aguentaria. “Observaste meu servo Jó?” o Antagonista tinha lhe dito, priscas eras, de pura zombaria, “porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal”. Desafiara: “Vamos ver quem pode mais, eu ou você? Fique à vontade, diabinho de segunda, aguado e ignorado, simulacro de Lúcifer, aquele sim um dissidente de primeira, pois tinha princípios subversivos e escrúpulos ferozes e morais. Você não passa de um fracassado, só tem ganância e cara feia.
O Diabo ficou contrariado com a gabolice do Outro, na imemorial ocasião. Sabia que Antagonista poderia matar os filhos do perplexo Jó, dizimar seus bois, ovelhas e camelos, apavorá-lo, devastá-lo, desesperá-lo, e o infeliz ainda continuaria fiel a Ele. Mas se reanimou com os planos de sua segunda vinda. “Eu era jovem e impulsivo, estava despreparado, não conhecia os ardis que conheço hoje”, pensou, autocomplacente. “Depois de milênios me aperfeiçoando e após essa soneca reparadora, me aguardem.”
Desorientado como todo dorminhoco, o obsoleto diabo pretendia desembarcar na Palestina, lugar de seu mais célebre combate, e onde velhos conhecidos seus – aliados do Outro – continuavam o serviço. Mas acabou caindo a milhas de distância.
Na África? Serra Leoa, onde os soldados estavam cortando as mãos dos camponeses para impedi-los de plantar e alimentar os rebeldes parecia-lhe mais apetecível que Ruanda, meio desanimada depois do massacre. Mas se até o velho Antagonista havia desistido do continente africano inteiro, não seria ele a se abalar.
Talvez uma boa opção fosse um campo de refugiados. Mas os malquistos eram tantos, de tantas nacionalidades – curdos, afegãos, sírios, congoleses, rohingya, lista interminável – que dava desânimo escolher. Que tal entre mulheres paquistanesas, jordanianas ou nigerianas queimadas por seus maridos porque conversavam com o vizinho? Ou a saudosa Damasco, da revelação de Saulo, o que tivesse sobrado dela? A Líbia era quente demais. Rússia e seus envenenadores não era mau. A Sérvia sempre prometia, mas o Paquistão e Bielorrúsia estavam mais trepidantes. Que tal a China, de oportunidades milenares. Ou Vigário Geral? Jardim Angela? Itaquera? Rocinha, Rio das Ostras?
A Terra pululava de oportunidades.
O diabo pode ter inúmeros defeitos, mas a presciência não é um deles. Pressente intuitivamente o como, quando e onde. Não hesita jamais, como o velho Antagonista, cujo hábito de escrever direito por linhas tortas revela muita indecisão, e tem dado no que deu.
Guiado por malévolo, porém preciso sexto sentido, o diabo, com o planeta inteiro à disposição, foi cair num antro aparentemente esdrúxulo, mas ideal para seus intentos. Num shopping center.
Estranhou, de início. Primeiro porque havia séculos não descia para fazer das suas, e tudo – o luxo das instalações, os trejeitos das pessoas – era novidade. Depois porque estava meio fora de forma, e não sabia bem como recomeçar. Espiou. E descobriu!
“É aqui, neste Templo novo em folha, com uns vendilhões que mal nos dirigem a palavra, que lançarei meu apelo à discórdia entre os homens”.
“É aqui, em meio a esses almofadinhas magricelos que encontrarei as legiões ensandecidas prontas a me seguir”.
“É daqui, destes abismos com esteiras rolantes, que inaugurarei meu governo do Mundo”.
Mas por que não havia aterrissado em uma de suas tradicionais paragens? “Não vejo nada a que me apegar, nem fome e doença, nem escravidão, nem sujeira. Menos ainda roubo ou assassinato.” Tudo lhe parecia muito mixuruca.
Irritou-se, mas logo se recompôs.
Por sorte – na verdade por outro motivo, porque o diabo não consegue viver sem aduladores – ele tinha trazido consigo um estagiário. Para ajudá-lo em trabalhinhos menores, como atrair uma vítima para que pulasse no abismo, como havia feito o Antagonista com os porquinhos endemoniados. O estagiário também poderia providenciar pequenos incêndios enquanto ele se ocupava de labaredas maiores. Ou distraí-lo com os inúmeros estupros de gangues contra mulheres na Índia, se ele ficasse entediado – pobre diabo antiquado, não conhecia o Pornohub. Constantino, esse era o nome do estagiário, apesar de treinado nas artes da insídia, calúnia, intriga, ódio, inveja, difamação e bajulação, estava terminantemente proibido de mentir para o chefe, melhor dizendo, passar-lhe fake news. Sua função era servir-lhe como informante fidedigno, delator esmerado, encarregado de dirimir dúvidas e atualizar os fatos, para o quê o assistente dispunha de um dispositivo que dava engulhos a seu chefe: um notebook de última geração, plugado até o final dos tempos a um servidor que jamais saía do ar.
Passado o mau humor inicial, o diabo matutou. “Será que o Antagonista me aprontou de novo, e me atirou num canto do Paraíso, onde pagarei a pena de um tédio mortal? Aqui só vejo conforto, riqueza e ostentação. Essa gente não tem nada de desesperada, não vai cair na minha lábia”. Voltou o mau-humor e ela ia soltar fogo das ventas – arruinando completamente seu disfarce de corretor da Bolsa de Mercadorias e Futuros – quando uma linda mulher, cheirosíssima, parou perto. Retraiu as ventas e aspirou fundo. Não era incenso nem mirra, nem lavanda nem alfazema, nada que ele conhecesse de suas andanças por Sidon ou Tiro. Mas era diabolicamente bom. Aproximou-se da linda mulher quando outra cortou à sua frente – era menos linda, mas seu cheiro, ainda mais inebriante. Aguçou as ventas, farejou ao redor e então percebeu que todos, no tal Templo, cheiravam deliciosamente. Dalila e Salomé não chegavam aos pés.
— Constantino, nossa primeira providência será acabar com este perfume celestial. Esse bando amolecido por aromas tão aprazíveis nunca vai topar entrar em nossas fileiras. Consulte aí sua máquina para saber o meio mais rápido de atraí-los e destruí-los.
O estagiário digitou ‘perfume’ e uns poucos sites apareceram – a rede deles era criteriosa, só selecionava o relevante.
— Chefe, aqui está escrito que “11 pessoas morrem de fome por minuto na Terra”, atualmente, mas não se preocupe não, porque bem mais está a caminho, Oitocentos milhões têm subnutrição crônica, já são mortos-vivos, valeu? E mais ou menos três bilhões… isso dá um terço da humanidade, como cresceu o mundo… têm anemia aguda… e não têm água potável… chefe, quer um copinho d’água? Outra coisa pra beber, um licorzinho, não está cansado de ficar de pé? Quer sentar nas minhas costas? (Constantino não resistia a um puxa-saquismo) …deixa ver, quatro bilhões e meio de pessoas… o que dá dois terços dos habitantes atuais aqui da Terra… nunca beberam água potável na vida… que será que eles bebem, chefe? E 1% da população tem uma riqueza equivalente aos outros 99%.
— Constantino, você pensa que sou cretino? – interrompeu o diabo. – Pára já com boa notícia. O que é que essas cifras têm a ver com a minha pergunta?
— Chefinho, é que pelos dados que eu achei, tudo bem, meio desatualizados, precisava de uns 13 bilhões de dólares por ano para terminar com os problemas de comida e saúde dessa gente toda. Exatamente, olha a coincidência, a mesma cifra anual que se gasta aqui e aqui (mostrou no visor do notebook os Estados Unidos e a Europa), apenas num ano, para comprar esses cheiros gostosos em garrafinhas, esses perfumes. O dinheiro dos cheiros dava para liquidar boa parte da fome.
— Ora, ora, quem diria – o diabo se animou. – Nessa gente não se mexe, então. São uns palermas, mas não atrapalham. Até ajudam. Vou nomeá-los nossos assessores. Vamos procurar coisa melhor.
Tantas eras as tentações nas vitrines – a luxúria do vestir e a gula do degustar – que o diabo e seu assecla não sabiam o que olhar primeiro, e, pior ainda, estavam entre os seus seguidores, nenhuma vítima à vista. Foi quando um moleque passou correndo e quase atropelou a dupla. Irado, o demo ia lançando uma maldição quando seu sequaz o interrompeu.
— Chefe, olha que beleza as sandálias do fariseuzinho.
O diabo fechou a boca e reconsiderou. É, pareciam mais umas botas romanas, e bem confortáveis. Como havia outras idênticas na vitrine defronte, entrou e pediu para experimentar.
— Que marca de tênis o senhor prefere? Esse vendilhão lhe soava mais negociável, desmanchava-se em salamaleques.
— Qualquer uma – respondeu o diabo, cofiando sua barbicha.
Ia saindo sem pagar, não fosse Constantino, que tirou dinheiro da bolsa, piscou para o vendedor, e assim evitou um incidente de proporções cósmicas. O diabo estava fora de si. Eufórico, sorria para seus pés, dava passadas largas, depois parava, pulava no mesmo lugar, girava num pé só, derrapava, agachava- se, fazia flexões no piso térreo do shopping.
— Chefe, todo mundo está olhando, é melhor a gente disfarçar.
O diabo retomou sua compostura e mentiu:
— Só estava testando, seu sabujo idiota.
Estava, sim, profundamente encantado. Que calçado magistral, com ele poderia atravessar a Palestina, a Samaria e a Decápolis num dia só, sem parada, sem trégua. Seria como ter exércitos alados. Que arma infalível para suas hostes nefandas, com ela os seus sequazes pisariam rápido em qualquer canto do planeta, sem cansaço, sem bolhas nos dedões, sem dores na coluna ou inchaço no joelho. “Como perdi tempo estudando os manuais da Santíssima Inquisição, afinal tudo que está lá eu já sabia de cor pois eu mesmo tinha inventado, mas isso, isso, ISSO é coisa de gênio!” Olhava enternecido para seus tênis.
— Chefe, não é por nada não, pelo visto todo mundo aqui tem um igual.
O comentário do capanga devolveu-lhe a razão. Baixou o queixo – o diabo vive de cabeça erguida –, deu uma olhada rasante e confirmou. Ah, o Antagonista tinha de novo tomado a dianteira. Quem sabe havia monopolizado a invenção e com ela guarnecido os pés de seus devotos. Que lástima! O que poderia ter sido uma arma infernal na conquista de impérios estava sendo usado para outros propósitos, sabe-se lá quais. A ponta-de-lança de seu domínio tinha sido usurpada para dar conforto aos crédulos e crentes pés humanos.
— Constantino, precisamos acabar já-já com as oficinas que fazem isso. De mais a mais, pé macio é coisa de mulher, essas insidiosas sandálias acabariam enlanguescendo e acovardando minhas legiões. Olha aí na máquina (o note) onde é que se fabrica, Para a gente arruinar o negócio. Depois salgamos a terra.
“Relatório da ONG Filhos da Terra, maio de 2020, p. 197
Condições de trabalho na Unidade de Produção de Tênis da marca Ike, Saigon.
Nome: Tran Quoc Idade: 12 anos
Descrição: trabalho escravo, resgatado em dezembro de 2019, atualmente no centro de reabilitação de Copenhague.
Biografia: Tran Quoc nasceu em My Tho, no delta do Mekong.
Seu pai não conseguia sustentar os sete filhos e quando Tran tinha seis anos um contratador de Saigon lhe propôs levar o menino para trabalhar numa fábrica de tênis, prometendo-lhe um futuro brilhante. Desde o primeiro dia ficou claro que se tratava de trabalho escravo. Das quatro da manhã às onze da noite Tran cortava cadarços, sem pausa. Em troca, recebia duas porções diárias de trigo fervido e sal. Nenhum remédio lhe era dispensado quando ficava doente, e maus-tratos físicos eram constantes. Até hoje Tran apresenta cicatrizes e tem dificuldades para andar devido a um ferimento não tratado na perna esquerda. Tran relatou que jamais dizia a seus empregadores que estava doente, pois temia ter o mesmo destino de outros companheiros seus, que haviam reclamado, tomado remédios e morrido horas depois. Seus corpos haviam sido atirados numa vala comum. Tran nunca teve permissão para voltar para casa, nem nos funerais da mãe. Seu pai havia tentado visitá-lo uma vez, mas só tinha conseguido permissão para vê-lo por cinco minutos, e depois o menino, como punição, tinha sido espancado por três horas. Tran conseguiu fugir no ano retrasado, mas após dez dias mendigando acabou voltando para os antigos empregadores, antes de ser resgatado.”
Constantino tinha mais boas notícias:
— Aqui diz que tem mais ou menos uns duzentos e cinquenta milhões de garotos como esse tal de Tran, nesse tipo de empreguinho. Mas vai melhorar, chefe, todo ano mais de setecentas mil crianças são negociadas no tráfico de trabalho escravo. E estou desconfiado de que outro tanto é recrutado para prostituição infantil. É, chefinho, estou desconfiado de que temos concorrentes. Bom, morre criança a dar com pau, nos últimos anos um bocado foi sequestrado das vilas e recrutado como soldado, principalmente aqui (mostrou a África no visor), uns dois milhões de crianças morrem em guerras, uns seis milhões de garotos são mutilados. Deixa ver… uma coisa mais simplezinha… morre mais ou menos uma criança a cada três segundos, de fome, chefinho. È isso aí, as cifras são confiáveis. Um garoto a menos a cada três segundos, e a gente nem tem que se esforçar.
O diabo, antes furibundo, estava agora meio desanimado. Não que a história lhe desagradasse. Até lhe trazia boas lembranças… daquela inspeção numa fábrica em Manchester há uns séculos, só crianças também, pele e osso. E as Cruzadas, então!, pilhas de meninos muçulmanos estripados na ponta da espada cristã, os cadáveres empilhados formavam montanhas. E as fogueiras da Santa Inquisição, e sua afinidade eletiva com as cinzas e fumaça saídas séculos depois dos fornos crematórios da Polonia, por exemplo, parece que foi ontem, que engenhosa solução final…
O diabo devaneava, mas um arrepio de realismo fê-lo lembrar que essas iniciativas, ao fim e ao cabo, não tinham dado muito certo. O Reich durou 12 anos, em vez dos mil. O islamismo se alastrou (e isso não podia ser coisa do Antagonista). “Mas esse lance das fábricas de tênis é profissional, outra coisa. Escravidão e morte, aqui, têm tudo para prosperar”, animou-se. “Ninguém protesta, ninguém comenta, só uns gatos pingados, ninguém parece sequer notar”. Era tão divinamente executado que o diabo desconfiou.
Suspeita é outro de seus atributos natos: “Será que algum dos meus me passou a perna? Haverá dissidências em minha prole? Quem, dos meus, se atrevería?” Não, não parecia. O lance era tão bem bolado que parecia mais com terremoto, seca, tsunami, inundação, coisas que se aceitam como naturais. Coisas como o livre-arbítrio, criadas pelo Antagonista.
— Constantino, deixa esses cretinos com suas sandálias. Temos mais com que nos ocupar.
O diabo se sentia novamente ludibriado, mas não dava o braço a torcer.
— Nosso engano foi que até agora nos ocupamos de frivolidades, vaidades, odores, ornamentos. Venialidades. Que é que há, estamos nos aburguesando?
O Maligno acompanhava as publicações da Congregação da Doutrina da Fé, na esperança de ser relembrado, e em nenhuma delas havia encontrado menções ás cifras que Constantino lhe mostrava.
— Isso aí, chefinho, vamos pras cabeças.
— Nosso business sempre foi outro. Armageddon. Apocalipse. Praga e a peste.
Recordou-se de umas notícias que lhe tinham trazido, acordando-o de supetão no meio da última soneca, para as quais não deu bola, e voltou a dormir. Dos feitos de suas hostes japonesas na China, nos anos trinta e quarenta do último século. A fiel Unidade 731, do coronel Ishii Shiro, colega do peito. Grande espírito científico, também: Shiro havia contaminado cidades chinesas inteiras com o vibrião do cólera e as plantações de Hunan com peste bubônica, mas o melhor tinha sido quando havia infectado três mil prisioneiros – os que não tinha sido usados no teste de sobrevivência ao congelamento – com febre tifoide e depois mandado de volta para casa, sem avisar nada. Que bela epidemia surpresa. Melhor ainda: quando a guerra acabou promoveram Shiro. Deram-lhe o cargo de presidente da Associação Médica japonesa. O braço direito de Shiro, Masaki Kitano, outro bom camarada diabolante, virou presidente da maior companhia farmacêutica do Japão. O segredo do sucesso é assegurar continuidade.
— Peste me parece um bom caminho. Onde é que se acha, por aqui?
Constantino, o ajudante fiel, viu um letreiro, Farmácia: medicamentos com descontos. Veio-lhe à mente seu autor de cabeceira, um certo Epiphanius de Salamis, colega do século IV, autor de um best-seller imbatível nos reinos ínferos intitulado Panarium, ou Baú de medicamentos. Epiphanius havia passado a vida caçando heréticos. Dedo-duro nato. De delação em delação, teve o que merecia: foi canonizado.
Medicamento é o contrário de peste, raciocinou o estagiário, é aqui que devemos atacar e destruir tudo.
— Chefe, esta biboca aí. Lá dentro eles vendem poções para curar doenças. Vamos detonar.
— Vamos o quê, seu verme abominável! Cretino incontinente! Desde quando tem NÓS? Toma tento, desgraçado, quem manda aqui sou eu, você não pia.
Constantino, como todo candidato ambicioso por uma promoção, tinha sido educado para crer e obedecer, não para expor suas opiniões. Mas amargurou-se um tantinho, pois achava que estava na hora de subir no ranking.
— Perdão, chefinho, pode me dar a penitência.
— Que penitência, seu imbecil, vê aí na máquina quem faz esse Panarium moderno que cura tudo, daí a gente manda um vagalhão, depois um tufão, depois uns gafanhotos, só de farra, e arrasa.
— Chefe, tá dando um problema. Só aparece um arquivo, “Laboratórios: top secret”, e precisa da senha. O senhor sabe, esse tipo de acesso eu não tenho.
— Taí meu cartão pix-cripta-capta-tudo, cretino. Copia o número.
Constantino obedeceu no ato. Os arquivos diabolicamente vazados eram intrigantes.
“Laboratório Axxis Mundi, Genève, junho de 2018: INFO AD.
Relatório confidencial de pesquisas do subsolo 42, não consta da planta do edifício. Subsolo 32 incluso. Centro de Desenvolvimento de Novas Epidemias a serem disseminadas em caso de segurança nacional (*) ou de sinergia imprescindível à continuidade de produção de aspirinas. Antídotos estão sendo testados para a patente Axxis Mundi, infográficos, testes confidenciais sem duplo cego, confirmada publicação em algumas revistas científicas, marketing pronto e detalhado, logística de distribuição e propaganda impecável. Anexo:
(1) Pesquisas em embriões para inoculação de varíola, cepa nova. Tempo de produção do novo medicamento/antídoto AxM, quatro anos; custo incluído, lobbies razoáveis, barateamento com distribuição gratuita á população africana. Retorno no primeiro ano, 3 bilhões de dólares. Alvo: genérico. Cobaias em teste.
(2) Pesquisas em embriões para inoculação de tuberculose tipo D, cepa extraída de congênere. Fácil disseminação, alvo: Europa Central e América Latina. Mortalidade nível K. Tempo de produção do novo medicamento/antídoto AxM, sete anos; a demora se deve ao público-alvo. Retorno no primeiro ano após aprovação, 7 bilhões de dólares. Pesquisa completada, testes in loco em curso.
(3) Pesquisas em embriões para inoculação de enfermidades advindas de consumo de transgênicos, produção inputloutput AxM, alcance Beta 2. Mortalidade nível Kl; cepa sintética. Tempo de produção do novo medicamento/antídoto AxM, três anos; custo incluso. Retorno no primeiro ano, 650 milhões de dólares. Alvo: África. DESCONTINUAR, alvo inconsistente.
(4) Pesquisas em embriões para inoculação de gripe “Daisyday”, cepa nova, produzida no subsolo 4. Tempo de produção do novo medicamento/antídoto AxM, cinco anos e meio; custo incluso, mais despesas de experimentos com populações nativas. Mortalidade Y3, letalidade segura. Alvo: China. Coparticipação com laboratórios estatais chineses. Retorno no primeiro ano, 24 bilhões de dólares. PRIORIDADE MÁXIMA. Acionar.
O diabo estava pasmo. Pasmo é pouco, sofria sua primeira depressão em sua longa vida. Pego no pulo. Enganado. Traído. Alguém, ele desconfiava quem, algum bacana Antagonista, com ficha limpa, já havia providenciado tudo.
Quanto desperdício de energia com Bestas fantasiadas bufando, fumegando labaredas e devorando entranhas humanas. Bastava uma gotinha na água, uma só gotinha virótica pingada por um funcionário da AxM num reservatório de qualquer cidade e o caos estaria instalado. Ou uma borrifada delas nas plantações. Uma só gotinha era o fármaco perfeito: envenenava e curava. E, para piorar, a Axxis era um conglomerado, não se limitava a inventar doenças e suas curas mágicas, mas também controlava frotas aéreas, mercado imobiliário e derivativos e hedges no mercado financeiro.
Pobre diabo.
Que anticlímax.
Como é que lhe passavam a perna assim? Enganavam o Ilusionista? Adeus à sua vetusta reputação, de fiel depositário do mal.
Para sua decepção, a hecatombe não viria.
O mundo não ia acabar, apenas continuaria o mesmo, por toda eternidade, girando no seu eixo. Alternando o gemido de um miserável inoculado pela Axxis e o suspiro de um felizardo tratado nas caríssimas tendas de oxigênio da Axxis.
Nada de Final dos Tempos.
Criação e Queda, percebeu o pobre Maligno, eram uma só e mesma coisa.
Tudo mentira! Adeus à pompa do Apocalipse, como haviam lhe prometido há eras. Ficou inclusive com nostalgia da perspectiva de uma derrota histórica — um Juízo desfavorável ou cordeiros dormindo abraçados com lobos.
Pobre diabo.
Sentiu-se enjoado, um inútil. A cabeça girava. As pernas não o sustentavam. As mãos e pés de cabra tremiam. Chamou Constantino e falou com o fio de voz que lhe restava.
— Vamos embora, cara. Vou me aposentar. Já não há o que fazer por aqui, alguém já vingou antes de nós.
*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP).