Chile, alegria ya víene

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARILIA PACHECO FIORILLO*

Estamos tão desacostumados com lindas notícias que quase precisamos nos reprogramar para metabolizar a vitória do bem

Tive o privilégio, em 1988, de fazer a cobertura jornalística do plebiscito sobre a permanência ou não do ditador Pinochet no Chile, publicada na revista Isto é de então. A crônica do cotidiano dessa reportagem-batalha é uma história à parte para contar outra vez. Basta dizer que nós, jornalistas do mundo todo, fomos recebidos inicialmente a pão de ló pela ditadura que reservou uma ampla e sofisticada sala de imprensa no melhor hotel da capital, e dava passe-livre a quem usava crachá.

Claro que os apagões e bombas de lacrimógeno eram diários, constantes. Os ambulantes em Santiago ofereciam com sua sapiência ancestral (aquela idéia de que culturas que comerciam abominam confrontos que só dão prejuízo) anunciavam em voz alta “linternas para los apagones!” e“limones para lacrimógenos”, calmos e diretos! Os mais prudentes de nós estocamos essa artilharia brancaleônica, até que o resultado saísse. O autoengano e a megalomania de Pinochet só tinham rival em sua crueldade, e ele e a junta nos adulavam. Mas na vida como ela é, os comícios do No eram supervisionados por tanques. Dava medo, mas íamos, pois maior era a gana de ver uma sanguinolenta tirania se esboroar.

O No levou. De lavada. Foi magnífica a campanha na TV, tão bem retratada e verossimilhante no filme com Gabriel Garcia Bernal (e sua briga interna na oposição para convencer que uma publicidade calcada no chamado à felicidade, e em balés, cavaleiros pampeiros, humor, cantoria, seria mais eficaz que uma campanha justamente ressentida de acerto de contas).

Muita gente, em Santiago, manifestava encabulada o seu desprezo a Pinochet acionando o para-brisas sem que chovesse, o gesto do não na vidraça do carro. Padres e freiras (a Igreja chilena não era a argentina…) se sentavam nas praças e ruas, numa resistência pacífica recebida a jatos de gás. Horas antes do resultado, passeando pela periferia, presenciei a cena mais comovente de todas minhas reportagens: num ônibus quase vazio, uma senhora de idade, ao ver meu crachá no pescoço, encostou a mão na janela e fez não, várias vezes, com o dedo. Frágil, sozinha, idosa, vulnerável, vítima. Mãe (avó) Coragem.

Isso foi antes do resultado. Quando o No ganhou, de lavada, e não tinha jeito de ser fraudado; nós, jornalistas e observadores internacionais, um minuto atrás intocáveis, apanhamos para valer. E como apanhamos! Então nos abrigamos no roof do hotel antes hospitaleiro, e a cena era tragicômica: parecia um PS de Cruz Vermelha, muitos de nós de braço quebrado, hematomas, muleta e esparadrapo a dar com pau. Lembro do discurso veemente, e aplaudido, do enviado sênior da BBC. Enquanto isso, nas ruas, a população saia de casa, se avolumava epulava em uníssono (é, os chilenos tem essa manha de pular sincronizados) cantando “Chi, chi, chi, lê, lê, lê, que se vaya Pinochet”.

Amarcord, faço eu, com a escusa de falar em primeira pessoa, pois a vitória de Gabriel Boric nas eleições de ontem está longe de ser apenas a vitória da esquerda contra a extrema-direita. É um susto e júbilo. É mais do que parece. É, mesmo que só agora, uma vitória do planeta inteiro.

Soube dela pelo noticiário internacional, pois a mídia convencional brasileira mal tocou no assunto, ocupada com Temer e acadêmicos longilíneos. Soube dela após ter assistido, com pesar a angústia, uma filmagem exclusiva das atrocidades que os militares de Myanmar estão cometendo em vilarejos ao norte, torturando a esmo camponeses durante o dia inteiro e matando dezenas de pessoas, com requintes de crueldade cuja abominação só se compara á fala do porta-voz desse décimo círculo do Inferno (que Dante esqueceu), General Zaw Min Tun. Ele não negou a carnificina, e até a recomendou (filmado). No vídeo, os gritos da netinha pedindo clemência enquanto torturam e assassinam seu avô, que não havia fugido, pois achou que seria poupado jáque mal podia caminhar, são insuportáveis. Embora não sejam exceção: mais uma das centenas e milhares de desvarios, teratologias com que nos anestesiamos todos os dias.

Mesmo sendo eu resiliente por dever de ofício, pois trato do tema direitos humanos em uma coluna de rádio, e acompanho diligentemente Myanmar, Yemen, Siria, Bielorrussia e todo canto dessa transmutação fácil, fácil, de homens em monstros mais horrendos que os de Goya, achei que não aguentaria mais, e mergulharia na acídia, aquele pecado vituperado por Tomás de Aquino.

O intrigante, porém, foi eu tive a reação contrária. Fiquei mais chocada e desnorteada com a notícia seguinte. Atarantada, mesmo, com a eleição de Gariel Boric. Meu corpo e mente estavam tão habituados à barbárie nossa de cada dia que demorou um tantinho para metabolizar a civilização. Estou, estamos tão desacostumados com lindas notícias que quase precisamos nos reprogramar para metabolizar a vitória do bem. Assim, maniqueísta, se preferirem.

Que Boric vai enfrentar dificuldades, ponto pacífico. Que ele representa uma nova esquerda, livre dos chavões cripto-stalinistas que prosperam partout, idem. Que ele é jovem, de outra geração, e isso pode ser tanto um empecilho como uma experiencia inédita, de outra democracia e outra Constituição e outro modo de fazer política que tanto precisamos, idem.

Mas por enquanto quero apenas saborear o sentido recalcado da celebração, do contentamento, da esperança. Por enquanto, sei que a vitória de Boric é um fato de ressonâncias não apenas latino-americanas, mas mundiais. Por tudo que há de excêntrico. Por demonstrar que, assim como a história não acabou, como foi moda há tempos atrás, o novo normal pode morrer de morte natural logo.

Obrigada, Chile.

A alegria já veio.

*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). Autora, entre outros livros, de O Deus exilado: breve história de uma heresia (Civilização Brasileira).

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Sergio Amadeu da Silveira Antônio Sales Rios Neto Tadeu Valadares Luiz Eduardo Soares Walnice Nogueira Galvão Paulo Nogueira Batista Jr Chico Alencar Daniel Brazil Vanderlei Tenório Érico Andrade Andrew Korybko Ricardo Musse Marcos Aurélio da Silva João Adolfo Hansen Marcos Silva Afrânio Catani Celso Frederico Eduardo Borges José Micaelson Lacerda Morais Bernardo Ricupero Eugênio Bucci Marilena Chauí Gilberto Maringoni Paulo Capel Narvai Kátia Gerab Baggio Daniel Afonso da Silva Alexandre Aragão de Albuquerque Rafael R. Ioris Jean Marc Von Der Weid João Paulo Ayub Fonseca Eleonora Albano Sandra Bitencourt João Lanari Bo Marcus Ianoni Jorge Branco Ari Marcelo Solon Denilson Cordeiro João Carlos Loebens Annateresa Fabris Mariarosaria Fabris Airton Paschoa José Geraldo Couto Antonio Martins Henri Acselrad Benicio Viero Schmidt Dênis de Moraes Paulo Sérgio Pinheiro Vinício Carrilho Martinez Manchetômetro Valerio Arcary Luiz Werneck Vianna Luciano Nascimento Lorenzo Vitral Ronald León Núñez Fernando Nogueira da Costa Priscila Figueiredo Roberto Noritomi João Carlos Salles Thomas Piketty Yuri Martins-Fontes Antonino Infranca Plínio de Arruda Sampaio Jr. André Márcio Neves Soares Otaviano Helene Rubens Pinto Lyra Luiz Bernardo Pericás Luiz Roberto Alves Marcelo Módolo Leonardo Boff Mário Maestri Manuel Domingos Neto Marjorie C. Marona Eugênio Trivinho Tales Ab'Sáber José Costa Júnior Francisco de Oliveira Barros Júnior Leonardo Sacramento Julian Rodrigues Vladimir Safatle Daniel Costa Henry Burnett Remy José Fontana Anselm Jappe Lucas Fiaschetti Estevez Igor Felippe Santos Anderson Alves Esteves Lincoln Secco Francisco Pereira de Farias Eleutério F. S. Prado Boaventura de Sousa Santos Atilio A. Boron Marcelo Guimarães Lima Juarez Guimarães Jean Pierre Chauvin Osvaldo Coggiola Matheus Silveira de Souza Salem Nasser José Raimundo Trindade Luiz Renato Martins Marilia Pacheco Fiorillo Everaldo de Oliveira Andrade Luís Fernando Vitagliano Jorge Luiz Souto Maior Eliziário Andrade Maria Rita Kehl Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ricardo Abramovay Michael Roberts André Singer José Machado Moita Neto Bento Prado Jr. Milton Pinheiro Bruno Machado Slavoj Žižek Flávio R. Kothe Caio Bugiato Fábio Konder Comparato Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Marques Gerson Almeida Flávio Aguiar Alysson Leandro Mascaro Liszt Vieira Carlos Tautz João Sette Whitaker Ferreira Francisco Fernandes Ladeira João Feres Júnior Leonardo Avritzer Leda Maria Paulani Luiz Carlos Bresser-Pereira Roberto Bueno Ronald Rocha José Dirceu Ladislau Dowbor Tarso Genro Ricardo Antunes Alexandre de Freitas Barbosa Samuel Kilsztajn Armando Boito Fernão Pessoa Ramos José Luís Fiori Chico Whitaker Paulo Fernandes Silveira Valerio Arcary Dennis Oliveira Berenice Bento Renato Dagnino Claudio Katz Ricardo Fabbrini Celso Favaretto Rodrigo de Faria Gabriel Cohn Luis Felipe Miguel Elias Jabbour Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Martins Carla Teixeira Michael Löwy Heraldo Campos Gilberto Lopes

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada