Por THIAGO TURIBIO*
O PT enfrenta um dilema entre a estratégia populista e uma verdadeira transformação estrutural
1.
Há pouco tempo, em artigo postado no site A Terra é Redonda, argumentei que a esquerda hegemônica, cada vez mais institucionalizada, desaprendeu a língua da revolta e rifou o ódio de classe inteiro ao outro lado. A extrema direita se alimentou dele. Hoje, ela é a força política mais capaz de mobilizar as forças populares na defesa de suas pautas reacionárias e excludentes.
A recente disputa acesa entre o Congresso e o Partido dos Trabalhadores em torno do decreto editado pelo governo que aumentou o IOF prenuncia uma mudança no jogo. O sinal foi dado: o bloco político dominante na Câmara e no Senado não vai aprovar mais nenhuma pauta de interesse do governo até as eleições.
Acuado, o PT se lançou à luta aberta. Vídeos produzidos por inteligência artificial dramatizando o conflito entre ricos e pobres tomaram as redes. Num deles, assalariados carregam enormes sacos sobre as costas, nos quais se lê “impostos”. Em contraste, ricos em suas gravatas trazem comodamente à mão pequenas sacolas. O vídeo termina anunciando a taxação BBB (bilionários, bancos e bets), cujo objetivo é financiar a isenção do imposto de renda daqueles que ganham até cinco mil: “imposto é necessário, mas justiça também é”.
Noutro vídeo, convivas conversam numa mesma mesa no “Boteco do Brasa”. Um homem do povo questiona o engravatado: “Você consumiu champagne, caviar, lagosta e vai pagar menos que a gente, que só ficou na brejinha e no torresminho?”.
Eis, então, configurado o eixo populista. De acordo com teóricos como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, não se trata de ideologia ou regime específico. O populismo é uma forma: o povo contra a elite, nós contra eles. Ele articula demandas difusas não atendidas por aqueles a quem se atribui o poder e por meio delas constrói discursivamente a figura do povo. Por isso, aceita tudo. Não é de direita nem de esquerda. Bolsonaro, sabemos, tem o seu povo: cidadãos de bem, em geral brancos e heterossexuais, que pagam impostos e não devem nada ao Estado — ao menos assim a extrema direita pretende construí-lo.
Por outro lado, há quem afirme que o populismo pode ser a única chance da esquerda. E não apenas no Brasil. Nancy Fraser, por exemplo, propõe o que chama de populismo progressista de esquerda, o único capaz de mobilizar extensivamente as classes trabalhadoras estadunidenses, internamente clivadas por conflitos de raça e gênero, tão amplamente atiçados pela extrema direita trumpista.
Na mesma direção, Chantal Mouffe defende que a esquerda precisa reivindicar seu próprio populismo. Nele, a democracia e seus valores igualitaristas se oporiam aos limites formais do liberalismo e da oligarquia, que por toda parte controla efetivamente o Estado.
2.
É cedo. Mas a estratégia do PT parece dar razão a essas pensadoras. Nos últimos dias, o engajamento das esquerdas nas redes aumentou de forma consistente. Hugo Motta, presidente da Câmara, acusou o golpe. Satirizado como “Hugo Nem se Importa”, ele tem sido um dos principais objetos das críticas feitas por militantes de esquerda, que agora replicam seus próprios vídeos de Inteligência artificial. Em resposta, o presidente da Câmara critica o PT por querer inventar a polarização social.
No Brasil de Hugo Motta, a sociedade não está polarizada. Não há hierarquias e todos compartilham as mesmas condições materiais. Já o Jornal Nacional convocou a tropa de especialistas de sempre, numa longa matéria, para defender o Congresso e abominar o “aumento de impostos”.
O PT acionou o STF questionando a constitucionalidade da derrubada do IOF, já que a competência legal para fixar a taxa é do Executivo. O tribunal, na figura de Alexandre de Moraes, entrou em cena para acalmar os ânimos. O ministro suspendeu as decisões e convocou os chefes dos poderes a uma reunião a ser realizada no próximo dia 15, cujo fim é encontrar solução consensual para o imbróglio. De toda forma, mais um indício do acerto da estratégia.
No entanto, talvez por estar satisfeito com o resultado da batalha até aqui, em evento em Duque de Caxias, Lula elogiou o Congresso: “eu sou muito agradecido à relação que eu tenho com o Congresso Nacional, até agora, nestes dois anos e meio, o Congresso aprovou 99% das coisas que a gente mandou”. Isso nos sugere a pergunta: a atual campanha explicita um populismo de ocasião para costurar acordos de cúpula ou sinaliza uma consistente guinada à esquerda?
No artigo a que me referi no começo do texto, concluo que a esquerda hegemônica poderia recuperar uma dicção de classe ao encampar pautas como o fim da escala 6×1, a taxação de grandes fortunas e a isenção do imposto de renda das classes trabalhadoras. Todas elas entraram na ordem do dia. Apontava, porém, uma condição: a defesa dessas medidas deveria ir além de gesto eleitoral na hora do desespero. O objetivo deve ser reconstruir as pontes que conectam a esquerda com a tradição dos oprimidos.
Assim, caso a atual campanha seja apenas a antecipação de slogans com o fim de garantir a isenção do imposto de renda como capital para uma futura reeleição, andaremos em círculo. Afinal, há toda uma montanha a escalar: as contrarreformas de Temer e Bolsonaro (trabalhista, previdenciária, do Ensino Médio) permanecem vigentes e inquestionáveis.
O teto de gastos é relíquia sagrada diante da qual o governo se mantém de joelhos. Mesmo com uma eventual isenção do Imposto de Renda, o imposto sobre consumo continuará sendo o principal pilar do nosso regressivo sistema tributário. Uma autêntica guinada à esquerda deve enfrentar estes e outros nós estruturais.
A estrada que levou a extrema direita até aqui também foi pavimentada por defecções, promessas abandonadas, radicalismos performáticos. Dilma Rousseff, em 2014, fez uma campanha popular à esquerda e, tão logo eleita, convocou Joaquim Levy para desfilar seu rosário de cortes. O golpe que a derrubou não foi reação a uma radicalização à esquerda. Ao contrário. Ao se eleger com uma pauta popular e governar com o programa derrotado, Dilma perdeu a base que poderia resistir em seu nome. Foi como chutar madeira podre.
Por isso, mais que uma queda de braço pontual com o Congresso, o que está em jogo hoje é a capacidade da esquerda de recuperar uma gramática que a permita voltar a disputar corações e mentes. O horizonte é de longo prazo. Convocar o signo do povo para então abandoná-lo em nome da velha governabilidade pode fazer a vitória de momento passar em seu contrário, fortalecendo ainda mais a extrema direita.
A história, sabemos, não é mestra da vida. O futuro não repete o passado. Mas nem por isso devemos repetir os mesmos erros esperando que dessa vez as coisas sejam diferentes.
*Thiago Turibio é professor do Departamento de História do Colégio Pedro II.
Referências
FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013. MOUFFE, Chantal. Por u
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