“Por favor, da próxima vez façam uma nota de repúdio”

Imagem: Grupo de Ação
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Por VLADIMIR SAFATLE*

Resposta ao artigo de Leonardo Avritzer

Foi com espanto que recebi o artigo de Leonardo Avritzer [“Bastilha e Borba Gato”] a respeito de meu texto em defesa da ação contra a estátua de Borba Gato, feita pelo coletivo Revolução Periférica. Digo “espanto” porque creio ser significativo um artigo que, diante de arbitrariedades flagrantes cometidas contra lideranças populares envolvidas na ação, julga melhor se colocar na posição de quem questiona “se a utilização da violência como método é a linguagem correta da disputa política”.

Assim, Avritzer achou por bem escrever um artigo no qual nenhuma menção à prisão arbitrária de um entregador de aplicativos e sua mulher é feita, nenhuma expressão de solidariedade e indignação é mostrada. Antes, há apenas um julgamento, em larga medida caricato, a respeito da recusa abstrata à “violência como método”. Creio que isso diz muito.

Poderíamos começar por perguntar: qual violência é objeto de crítica de seu artigo? A violência do Estado brasileiro ao prender manifestantes que atearam fogo em volta de uma estátua que celebra a violência escravagista e colonial? A violência de ter que conviver com uma estátua que representa um bandeirante armado, ou seja, armado contra ameríndios e pretos escravizados? A violência de ver celebrado um caçador de homens e mulheres? Não. O que lhe assusta é o “método” utilizado por quem ateia fogo em um símbolo de violência armada que ocupa o espaço público.

Afinal, talvez fosse mais adequado uma petição, uma nota de repúdio, ou algo cuja eficácia, no Brasil e no mundo, sempre se demonstrou nula. No entanto, seria o fato de começar por lembrar que isso que Avritzer chama de “violência” contra uma estátua que celebra a história colonial e racista brasileira foi a única ação capaz de abrir uma discussão real a respeito de política de memória imposta a nós pelo poder oligárquico paulista. Abertura essa que manifestantes pagaram com sua prisão e perseguição. A ação foi estrategicamente bem-sucedida, conseguiu o que se propôs e não conseguiria isso se agisse de outro modo.

Nesse sentido, é sugestivo que nos últimos meses vimos estátuas serem derrubadas no Chile, na Colômbia, nos EUA, na Inglaterra por motivos semelhantes e, em nenhum desses casos, vimos representantes do campo progressista se julgarem no direito de dar lições aos populares a respeito de “se aquela era a linguagem correta da disputa política”. Quando ameríndios colombianos derrubaram a estátua de Sebastián de Belalcázar em uma ação muito mais “violenta” do que essa feita contra a estátua de Borba Gato, nenhum cientista político do campo progressista resolveu utilizar citações de Judith Butler e Hannah Arendt para deslegitimar ações políticas dessa natureza. Fenômenos estranhos como esse só ocorrem no Brasil. Da mesma forma, ninguém envolvido nessas ações foi preso, a não ser no Brasil. Talvez haja uma relação entre os dois fatos.

Para mim, é sintomático que, ao citar um trecho de meu artigo onde digo que: “destruir tais estátuas, renomear rodovias, parar de celebrar figuras históricas que representam apenas a violência brutal da colonização contra ameríndios e pretos escravizados é o primeiro gesto de construção de um país que não aceitará mais ser espaço gerido por um Estado predador” Avritzer ache por bem falar de sua recusa à “forma violência”, forma essa que seria expressão da “não política”.

Mas se nos perguntarmos sobre, afinal, o que é concretamente a “forma violência” que lhe incomoda, veremos que não é outra que simplesmente “destruir estátuas, renomear rodovias e parar de celebrar figuras históricas coloniais” pois essa era a única da qual era questão em meu artigo.

Isso é só expressão de um problema elementar de teoria política. Pois Avritzer prefere agir como se não soubesse que a democracia admite sim situações de dissociação entre justiça e direito instituído. A história das lutas sociais por ampliação de direitos foi feita por ações que, do ponto de vista do direito instituído, eram compreendidas como “violentas” e “criminosas”. Operárias e operários nos anos vinte apelaram ao crime de fazer greve para lutar por direitos que nunca seriam conquistados sem “violência”, já que greve era então uma ação criminosa. Situação essa que só se modificou devido a força da mobilização popular.

Só para ficar em um exemplo recente, em 6 de janeiro de 2014, os trabalhadores e trabalhadoras da filial francesa da indústria Goodyear sequestraram o diretor de produção e o diretor de recursos humanos durante mais de um dia, como prática de imposição de negociação. Ou seja, eles os prenderam na própria fábrica até a que fossem ouvidos. A lógica, que se demonstrou eficaz, lembrava que essa era uma forma politicamente legítima, e historicamente bastante utilizada, de atuar contra um poder que tudo fará para ignorar as demandas populares. Essa dramatização da urgência da injustiça não é, em absoluto, “não política”, e não foi por acaso que ninguém foi preso ou julgado por ela.

Por fim, só gostaria de insistir em duas inadequações nas afirmações de Avritzer. Não creio em absoluto que Judith Butler compreenda uma ação de violência simbólica contra uma estátua colonial, sem nenhuma possibilidade de dano contra pessoas, feita em um lugar onde não há transeunte algum, como uma forma não-política de violência. Nem ações desse escopo estão em seu horizonte de defesa da não-violência. Ou seja, o apoio teórico que Avritzer procura é simplesmente incorreto.

Por outro lado, ele termina seu texto lembrando da pretensa “incapacidade de as revoluções baseadas na violência construírem formas democráticas depois do fim dos antigos regimes”. Esse é um topos clássico do pensamento conservador. No entanto, isso pressupõe acreditar que a independência norte-americana (só para ficar em um exemplo caro a Arendt) tenha sido feita com flores ou como se processos de libertação nacional tenham sido frutos de um acordo de cavalheiros.

Podemos ainda perguntar se Avritzer acha que a realidade produzida pela Revolução Haitiana era “menos democrática” do que o antigo regime escravista e assassino. Ou seja, o diagnóstico é falho, além de pressupor erradamente que os descaminhos dos processos revolucionários sejam produzidos, necessariamente, pelo uso da violência contra a ordem anterior. Como se não bastasse, podemos sempre questionar se conhecemos até agora alguma forma política efetivamente democrática ou se seria mais correto criticar as estruturas autoritárias naturalizadas nos dispositivos legais de nossas democracias liberais antes de criticar processos revolucionários com suas dificuldades imanentes.

De toda forma, não poderia deixar de terminar sem lembrar que as colocações de Hannah Arendt sobre processos revolucionários são, a meu ver, historicamente equivocadas e indefensáveis, e muito me admira que ela seja usada de forma tão desproblematizada no contexto brasileiro. Apenas para ficar em um ponto, segundo Arendt, o problema com a Revolução Francesa era que: “A piedade, tomada como fonte da virtude, mostrou que possuía uma capacidade para a crueldade maior do que a própria crueldade: “Par pitié, par amour pour l’humanité, soyez inhumain”: essas palavras, colhidas quase ao acaso numa petição de uma das seções da Comuna de Paris à Convenção Nacional, não são gratuitas nem exageradas; são a autêntica linguagem da piedade (…) Desde os tempos da Revolução Francesa, foi por causa deste caráter ilimitado dos sentimentos dos revolucionários que eles se tornaram tão curiosamente insensíveis à realidade em geral e à realidade das pessoas em particular, que eles não tinham nenhum escrúpulo a sacrificar a seus ‘princípios’, ao curso da história ou à causa da revolução enquanto tal (…) Em termos políticos, pode-se dizer que o mal da virtude de Robespierre consistia em não aceitar nenhum limite” (ARENDT, Hannah; Sobre a revolução, p. 128).

Sua crítica é clara na denúncia dos efeitos pretensamente nefastos do desejo pretensamente abstrato de transformação social. O amor pelo que pode ser terminaria sempre por matar o que é. Pois um processo político que ignora a irredutibilidade dos indivíduos e seus sistemas particulares de interesses só poderia terminar na insensibilidade aniquiladora em relação ao existente.

No entanto, seria interessante começar por se perguntar o que “insensibilidade à realidade das pessoas em particular” pode, de fato, significar nesse contexto. Pois talvez não fosse vão lembrar como o diagnóstico de “insensibilidade” muda dependendo da perspectiva que ocupamos. Pois por que falar em “insensibilidade” se apenas os jacobinos eram sensíveis à escravidão, pois foram eles que a aboliram? Por que continuar falando em insensibilidade se só os jacobinos eram sensíveis à indigência, já que foram eles que registraram os indigentes fornecendo a todos uma renda vinda da confiscação dos bens dos “traidores da pátria”? Apenas eles organizaram cuidados médicos para os pobres à domicílio.

Poderíamos continuar de forma extensiva esses exemplos a fim de problematizar o que deveríamos, de fato, entender por “insensibilidade à realidade das pessoas” nesse debate. Poderíamos mesmo desconfiar que o verdadeiro desconforto talvez venha do fato da violência revolucionária estar, ao menos nesse caso, dirigida preferencialmente à nobreza, ao clero e à aristocracia, e não aos alvos tradicionais dos poderes de sempre. Pois essa violência não é simples destruição, nem violência estatal tendo em vista a preservação do Estado. Ela é ação direta da soberania popular contra dinâmicas de restauração da ordem anterior. Problemático ou não, consequente ou não, é nesse horizonte que o problema deveria ser colocado. Só que Avritzer prefere discutir se, da próxima fez, não seria melhor fazermos uma nota de repúdio.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos – Lacan, política e emancipação (Autêntica).

 

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