Por que esperançar?

Imagem: Robin Schreiner
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Por ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES*

Esperançar é não desistir jamais, não deixar apodrecer nossa capacidade de integridade e de ir à luta em busca de uma vida melhor

É fato que vivemos um dos piores momentos da história, desde que o animal humano se tornou hegemônico entre todos os seres vivos. É igualmente fato que essa piora na condição civilizatória da humanidade está imbricada com a deterioração sem precedentes das potencialidades naturais do planeta terra. Por último, mas não menos importante, é verdadeiro que a espoliação do homem por seu semelhante, bem como a indiferença da nossa espécie em relação a outras tem favorecido a sensação de catástrofe que nos inquieta. Cabe então perguntar: por que esperançar? Vou primeiro buscar montar um quadro realista, ainda que breve, sobre as afirmações acima, para depois tecer minhas considerações sobre a necessidade vital de manter a resiliência e a fé em dias melhores.

Vamos começar destacando quatro indicadores climáticos negativos sem precedentes, de acordo com a reportagem da BBC Brasil:[1] dia mais quente já registrado; mês de junho mais quente; ondas extremas de calor marinho; e gelo marinho da Antártida em baixa recorde. Desde que os pesquisadores começaram a monitorar os fenômenos do aquecimento global, as mudanças não eram tantas nem tão rápidas.

De fato, as anormalidades climáticas verificadas nesse ano de 2023 jamais haviam sido detectadas em períodos anteriores. Nesse sentido, se o dia 6 de julho foi o dia mais quente já registrado pelos cientistas, com uma temperatura global média de 17,08ºC – superando o recorde de 2016, igual a 17ºC; se a média de temperatura global do último mês de junho foi 1,47ºC maior que a média do mês registrada antes do período pré-industrial; se a média global de temperatura oceânica quebrou recordes nos últimos três meses e o planeta está próximo de ultrapassar o recorde de 2016 de maior temperatura da superfície marinha já registrada; e se a área coberta pelo gelo marinho na Antártida está no nível mais baixo já registrado, é bem provável que a Terra esteja entrando em um momento de total desconhecimento quanto ao seu futuro.

Por outro lado, as informações que chegam até nós sobre o desenrolar da guerra entre a Rússia e a Ucrânia só reforçam nossas piores expectativas quanto ao futuro próximo. Com efeito, a recente notícia de que a Rússia saiu do acordo firmado em meados do ano passado, que permitia à Ucrânia exportar seus grãos para todo o mundo, especialmente para os países mais necessitados da África e do Oriente Médio, aponta para o agravamento das condições de vida, já precárias, de quem nada tem a ver com o referido conflito.[2] Projeta-se que esses países sofram uma nova onda de fome, que atingirá a maior parcela das suas populações, caso o acordo mediado pela ONU e Turquia não seja retomado num curto período de tempo. A julgar pelas ações bélicas adotadas pela Rússia recentemente, com bombardeios reiterados à infraestrutura portuária da Ucrânia e destruição de milhares de toneladas de grãos já prontos para exportação,[3] é possível prever uma catástrofe humanitária, se nada for feito rapidamente.

Cumulativamente a essa possível catástrofe humanitária, existe o espectro da não-sustentabilidade do planeta se o nível de consumo da população mundial continuar a crescer nos próximos anos ou mesmo se ele se mantiver igual ao nível atual. É óbvio que sabemos que esse consumo desmedido ocorre de forma mais intensa nos países mais desenvolvidos. Isso, contudo, é irrelevante para o planeta. O que importa de fato é a média de consumo per capita que a nossa geração está a promover em escala global.

Esta média de consumo “como se não houvesse amanhã”, de acordo com especialistas, a exemplo do economista Marcelo Medeiros, professor da Universidade de Columbia, em Nova York, não se sustenta por mais uma geração.[4] Para ele, a solução é curta e grossa: é preciso reduzir o consumo das camadas sociais mais abastadas, bem como das empresas de todos os seguimentos empresariais, com menção desonrosa para a indústria petrolífera, sob pena da extinção em massa, e não apenas do ser humano.

Nessa toada, a utilização da Inteligência artificial (AI) poderia ser uma boa alternativa para o suplantar das desigualdades sociais, ou pelo menos para a sua mitigação, sendo a fonte mítica de libertação do animal humano das mazelas do seu cotidiano. Claro que isso jamais ocorrerá sob as luzes iluministas do capitalismo. Nem mesmo no socialismo de Estado, que vimos florescer no século passado, isso seria possível. Realmente, a tecnologia transformou quase todas as tarefas difíceis para o homem pré-industrial em tarefas mais fáceis e com produtividade crescente desde então.

As benesses tecnológicas estão impregnadas no nosso dia a dia, como o nosso fluxo sanguíneo, para quem pode pagar por elas. Senão vejamos: quem abre mão hoje de ter um carro, se pode pagar por um? E um carro com ar-condicionado? Melhor, não é? Quem abre mão de um telefone celular último modelo, uma batedeira, uma máquina de lavar? Alguém pensa em deixar de assistir televisão? Difícil, caro leitor. E sempre que buscamos produtos mais inovadores estamos ceifando postos de trabalhos, para não mencionar as longas jornadas de trabalho dos trabalhadores que ainda restam no chão das fábricas ultratecnológicas, que, invariavelmente, resultam em mortes. São mais de setecentas mil mortes por ano, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).[5]

Apesar de tudo isso, reafirmo minha convicção de que é preciso esperançar. Não é esperar que dias melhores virão, como já disse o mestre Paulo Freire. Esperançar é não desistir jamais, não deixar apodrecer nossa capacidade de integridade e de ir à luta em busca de uma vida melhor. É a capacidade de apreender e reagir ao que nos parece insolúvel, sem saída. Nesse ponto, acredito que é fundamental recuperar os grandes debates públicos de um passado não tão distante assim, como o 1º Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre/RS, em 2001.

Nele, mais de 20 mil pessoas, de 117 países, debateram uma infinidade de temas em conferências, seminários e oficinas, entre outras atividades culturais e plenárias deliberativas. O Brasil sediará a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30), em novembro de 2025, em Belém (PA). Existe oportunidade mais apropriada para se discutir ações reais, práticas e de custo acessível que essa? Eu sei que já houve outras “COPs” e nada foi feito. Mas é preciso esperançar.

Da mesma forma, no âmbito nacional, é imprescindível que resgatemos a exortação da cidadania, entendida aqui como o ápice de qualquer sociedade democrática, especialmente quanto aos direitos sociais. Já passou da hora de construirmos uma nação menos desigual, menos preconceituosa e mais inclusiva. Não se trata mais de derrubar o dragão da inflação ou o monstro da fome abusiva, que voltou a assolar esse país em apenas 6 anos, após o impeachment de Dilma Rousseff. É preciso mais! A volta de Lula ao poder traz uma esperança extra, mas não podemos nos acomodar só com isso. Sem dúvida que o país irá melhorar nos próximos quatros anos.

Mas reconstruir o país deixado aos “cacarecos” pelas hordas bolsonaristas requer muito mais. Requer participação popular em todas as instâncias de poder, sejam elas federais, estaduais e até municipais. Se aprendemos alguma coisa com a história da democracia, desde a sua experiência primeira com os gregos, é que sem o povo unido não existe transformação civilizadora. Esperançar é muito mais que esperar. Esperançar é ter a fé no seu semelhante recompensada.

*André Márcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).

Notas


[1] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl5e1vwywjzo

[2] https://cultura.uol.com.br/noticias/60150_russia-sai-oficialmente-do-acordo-de-graos-do-mar-negro-com-a-ucrania.html;

[3] https://www.terra.com.br/noticias/russia-bombardeia-ucrania-apos-deixar-acordo-de-graos,895f6b352dafd2924504e10ffc9e5702o6bkbmrd.html;

[4] https://noticias.uol.com.br/colunas/jose-roberto-de-toledo/2023/06/24/consumo-no-nivel-atual-e-garantia-de-que-nao-havera-amanha-diz-economista.htm;

[5] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57154909;


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