Por MARTIN LUTHER KING*
Leia um trecho do livro recém-lançado, coletânea de textos do autor comentando a sua prisão em 1963.
Brancos e negros unidos
Após oito dias de encarceiramento, Ralph Abernathy e eu aceitamos a fiança para sairmos da cadeia por dois propósitos. Era necessário que eu recuperasse a comunicação com os oficiais do SCLC e com os nossos advogados a fim de mapear a estratégia para os casos de desacato que viriam em breve nos tribunais do distrito. Além disso, decidi colocar em operação uma nova fase da nossa campanha, na qual acreditava que aceleraria nossa vitória.
Liguei para minha equipe e repeti a convicção que vinha expressando desde o início da campanha. Se desejávamos ter sucesso, deveríamos envolver os estudantes da comunidade. Nas cruzadas de ação direta recentes, são os jovens quem têm eletrizado o movimento. Contudo, em Birmingham, das quatrocentas ou quinhentas pessoas que se submeteram à prisão, dois terços eram adultos.
Na época, consideramos isso uma coisa boa, pois uma campanha realmente eficaz incorpora uma seção transversal da comunidade. Mas agora era a hora de recrutar os jovens em maior número. Mesmo percebendo que envolver adolescentes e estudantes do ensino médio nos traria uma grande quantidade de críticas pesadas, achamos que precisávamos dessa nova dimensão dramática.
Nosso povo estava se manifestando diariamente e indo para a cadeia em grande quantidade, mas ainda estávamos batendo a cabeça contra a parede de tijolos da determinação teimosa das autoridades da cidade de manter o status quo. Nossa luta, se vencida, beneficiaria pessoas de todas as idades. Mas, acima de tudo, fomos inspirados com o desejo de dar aos nossos jovens um verdadeiro senso de sua própria participação na liberdade e na justiça. Nós acreditamos que eles teriam a coragem de responder ao nosso chamado.
James Bevel, Andy Young, Bernard Lee e Dorothy Cotton começaram visitando as faculdades e escolas de ensino médio da cidade. Eles convidaram os estudantes a comparecerem, depois das aulas, a reuniões nas igrejas. A novidade se espalhou rapidamente e a resposta dos jovens de Birmingham excedeu nossos sonhos mais apaixonados. Esses jovens participaram de reuniões de massa e sessões de treinamento em grupos de cinquenta e de cem. Ouviram com avidez quando conversamos sobre trazer liberdade para Birmingham, não em algum tempo distante, mas naquele momento.
Nós lhes ensinamos sobre a filosofia da não violência. Nós os desafiamos a trazer sua exuberância e sua criatividade juvenil para a dedicação disciplinada ao movimento. Nós os encontramos ansiosos para pertencer e famintos por participar de um esforço social significativo. Olhando para trás, é claro que a introdução das crianças de Birmingham na campanha foi um dos movimentos mais sábios que fizemos. Isso trouxe um novo impacto à cruzada e o ímpeto que precisávamos para vencer a luta.
Imediatamente, é claro, ergueu-se um grito de protesto. Embora a atitude da imprensa nacional tenha mudado consideravelmente até o final de abril, de modo que os principais meios de comunicação estavam nos apoiando de maneira simpática, ainda assim muitos lamentavam o fato de “usarmos” nossos filhos dessa maneira. Onde esses escritores estiveram, nos perguntamos, durante os séculos em que nosso sistema social segregado estava fazendo mal uso e abusando de crianças negras? Onde eles tinham estado com suas palavras protetoras quando, ao longo dos anos, crianças negras nasceram em guetos, dando seu primeiro fôlego de vida em uma atmosfera social em que o ar fresco da liberdade era empurrado para fora pelo fedor da discriminação?
As próprias crianças tinham a resposta para as simpatias equivocadas da imprensa. Uma das respostas mais emocionantes veio de uma criança que não devia ter mais de oito anos e que caminhava com a mãe
em um dia de manifestação. Um policial zombeteiro inclinou-se para ela e disse com impaciência:
— O que você quer?
A criança olhou sem medo em seus olhos e lhe deu a resposta:
— Liberdade.
Ela não poderia nem pronunciar a palavra direito, mas nenhuma trombeta de Gabriel poderia ter soado uma nota mais verdadeira.
Até mesmo as crianças jovens demais para marchar pediram e ganharam um lugar em nossas fileiras. Uma vez, quando enviamos uma chamada por voluntários, seis pequenos jovens responderam. Andy Young lhes disse que não tinham idade para ir para a cadeia, mas que poderiam ir para a biblioteca. “Vocês não serão presos lá, mas poderão aprender alguma coisa”, ele disse. Então, essas seis crianças pequenas marcharam para o prédio do distrito branco onde, até duas semanas antes, eles teriam sido expulsos na entrada. Tímidos, mas obstinados, foram até o cômodo das crianças, se sentaram, e logo se perderam em seus livros. À sua maneira, eles deram um golpe pela liberdade.
As crianças entenderam os riscos pelos quais estavam lutando. Penso em um adolescente, cuja devoção do pai ao movimento azedou quando soube que o filho se comprometera a se tornar um manifestante. O pai proibiu o filho de participar.
— Papai — o menino disse —, não quero desobedecer ao senhor, mas fiz o meu juramento. Se tentar me manter em casa, vou fugir. Se o senhor pensa que mereço ser castigado por isso, simplesmente terei que aceitar. Pois, veja bem, não estou fazendo isso só porque quero ser livre. Também estou fazendo isso porque quero liberdade para o senhor e para a mamãe, e quero que isso aconteça antes que vocês morram.
Aquele pai pensou novamente e deu a benção ao filho.
O movimento foi abençoado pelo fogo e empolgação trazidos por jovens como esses. E quando os jovens de Birmingham se juntaram à marcha em números, aconteceu uma coisa histórica. Pela primeira vez no movimento pelos direitos civis, conseguimos pôr em prática o princípio de Gandhi: “Encham as cadeias”.
Jim Bevel teve a inspiração de marcar um dia “D”, quando os estudantes iriam para a cadeia em números históricos. Quando esse dia chegou, jovens convergiram em ondas para a Igreja Batista da Rua 16a. Ao todo, no dia 2 de maio, o dia “D”, mais de mil jovens fizeram a manifestação e foram para a cadeia. Em uma escola, o diretor deu ordens para trancar os portões a fim de impedir a saída dos alunos. Os jovens subiram pelos portões e correram em direção à liberdade. O superintendente adjunto das escolas os havia ameaçado com expulsão e ainda assim eles vieram, dia após dia. No auge da campanha, segundo estimativas conservadoras, havia 2.500 manifestantes presos de uma só vez, e uma grande proporção deles eram jovens.
Por mais que esses adolescentes estivessem sérios no que estavam fazendo, eles tinham aquele humor maravilhoso que arma os desarmados diante do perigo. Sob seus líderes, eles se deliciaram em confundir a polícia. Um pequeno grupo que servia como isca se reunia em uma saída da igreja, atraindo os policiais em carros e motos. Antes que os policiais soubessem o que estava acontecendo, outros grupos apareciam de outras saídas e se moviam, de dois em dois, em direção ao nosso objetivo na seção central.
Muitos chegavam aos seus destinos antes que a polícia pudesse confrontá-los e prendê-los. Eles cantavam enquanto marchavam e enquanto eram empurrados para as vans policiais. A polícia ficou sem vans e teve que nos espremer em carros do xerife e em ônibus escolares que se tornaram de serviço.
Observando aqueles jovens em Birmingham, não pude deixar de lembrar um episódio em Montgomery durante o boicote dos ônibus. Alguém perguntou a uma senhora idosa por que ela estava envolvida em nossa luta. Ela respondeu: “Estou fazendo isso por meus filhos e por meus netos”. Sete anos depois, os filhos e os netos estavam fazendo isso por si mesmos.
*Martin Luther King (1929-1968), pastor protestante e ativista político, foi a principal liderança do movimento pelos direitos humanos nos EUA nas décadas de 1950 e 1960.
Referência
Martin Luther King. Por que não podemos esperar. Tradução: Sarah Pereira. São Paulo, Faro Editorial, 2020.