Jerusalém e Kiev

Imagem: Oleksandr
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Por BERNARD HORSTMANN*

Existe apenas um país no mundo que pode garantir a paz na Ucrânia e a segurança de suas fronteiras. E esse país é a Rússia

Uma questão importante para a Ucrânia desde que se tornou um Estado independente era quem ou o que poderia garantir sua segurança. Nos primeiros anos após 1991, o governo ucraniano acreditou que poderia se proteger. O país havia herdado algumas armas nucleares soviéticas e tentou torná-las operacionais. Mas não conseguiu contornar as travas de segurança que os engenheiros russos haviam integrado às ogivas nucleares.

De outra parte, os Estados Unidos também pressionaram para que se livrasse daqueles dispositivos, uma vez que a Ucrânia à época já era prolífica na venda de suas armas soviéticas para atores obscuros os mais variados em todo o mundo. A Ucrânia, junto com a Bielorrússia e o Cazaquistão, foi pressionada a ingressar no Tratado de Não-Proliferação Nuclear.

Em troca obteve, em 1994, uma débil promessa de não interferência, por meio do Memorando de Budapeste Sobre Garantias de Segurança: “Os memorandos, assinados no Patria Hall, no Centro de Convenções de Budapeste, com a presença do embaixador dos Estados Unidos, Donald M. Blinken, entre outros, proibiam a Federação Russa, o Reino Unido e os Estados Unidos de ameaçar ou usar força militar ou coerção econômica contra a Ucrânia, Bielorrússia e Cazaquistão, ‘exceto em legítima defesa ou em outra forma prescrita pela Carta das Nações Unidas’. Como resultado de outros acordos e do Memorando, entre 1993 e 1996, a Bielorrússia, o Cazaquistão e a Ucrânia desistiram de suas armas nucleares”.

Valem aqui duas notas colaterais sobre o trecho acima: (i) o embaixador Donald M. Blinken é o pai do atual Secretário de Estado Anthony Blinken; (ii) formalmente, a Rússia não quebrou o Memorando de Budapeste na sua atual campanha militar contra a Ucrânia: primeiro ela reconheceu as Repúblicas de Lugansk e Donietsk como Estados independentes, firmou com elas acordos de segurança e, só então, passou a participar abertamente das ações militares que já estavam em andamento no território ucraniano desde 2014, sob abrigo do artigo 51(legítima defesa comum) da Carta das Nações Unidas. Os juristas poderão debater essa situação por anos, mas o caso não é diferente do argumento que a OTAN usou para justificar a violenta dissolução da Iugoslávia.

Depois que o Memorando de Budapeste foi assinado, as armas nucleares soviéticas que a Ucrânia e as outras duas nações do tratado ainda possuíam foram enviadas para a Rússia.

Em meados da primeira década deste século, a Rússia tinha, em boa medida, se recuperado dos choques que se seguiram ao desmembramento da União Soviética. Enquanto isso, a Ucrânia naufragara ainda mais. A população diminuíra drasticamente, suas indústrias quebraram e a corrupção generalizada devorava o que havia restado das riquezas do país. Seu próprio exército, teoricamente ainda bem armado, não era mais capaz de defender o território, o que por então não era ruim, já que ninguém se interessava realmente em ameaçá-lo.

No entanto, a OTAN, quebrando as promessas que fizera à Rússia, expandiu-se em direção às fronteiras ucranianas. Novamente em Budapeste, mas agora em 2008, os Estados Unidos aproveitaram uma cúpula da OTAN para pressionar os outros países da aliança a oferecer à Ucrânia um Plano de Ação para Adesão. Não se fixou, entretanto, uma data para a realização dessa promessa.

Em 2013, a União Europeia pressionou a Ucrânia a assinar um acordo de livre comércio com ela. A Rússia, que era o maior parceiro comercial da Ucrânia, fez uma contraproposta financeiramente mais interessante e politicamente menos restritiva. O presidente ucraniano Victor Yanukovych rejeitou então o acordo da União Europeia. Os Estados Unidos, juntamente com o serviço secreto alemão BND, tinham laços de longa data com os grupos de extrema direita da Ucrânia ocidental; herdeiros da antiga cooperação local com as forças militares de ocupação da Alemanha nazista. A CIA reativou esses grupos e instigou uma violenta revolução colorida em Kiev em 2014.

O golpe de Estado que se produziu levou a uma guerra civil, pois a grande maioria dos russos étnicos na Ucrânia oriental rejeitou o novo regime, instalado por uma minoria política do outro extremo do país. Assim, mesmo que aqueles primeiros tenham perdido o controle sobre a maioria de seus territórios tradicionais, logo derrotariam o que restava do exército ucraniano. E o fizeram duas vezes consecutivas.

Desde 2015 o conflito permanecia apenas latente. Firmaram-se os acordos de Minsk, pelos quais a Ucrânia deveria se federalizar, mas o novo regime impediu de fato sua implementação. Enquanto isso, Estados Unidos e Grã-Bretanha usaram esse tempo para restaurar e reaparelhar o exército ucraniano.

Em 2021, a Ucrânia estava pronta para atacar as Repúblicas Populares de Lugansk e Donietsk. A Rússia mobilizou seu exército e alertou que se via obrigada a interferir em tais planos. O ataque ucraniano, já então iminente, foi cancelado. No início de 2022, no entanto, os Estados Unidos deram luz verde ao regime ucraniano para operar tal como havia planejado. A Rússia se antecipou, e a guerra atual começou.[1]

Os planos dos Estados Unidos por trás da guerra supunham que as sanções econômicas ocidentais pré-coordenadas que se seguiriam arruinassem a Rússia, que esse país se tornasse um pária no mundo e que uma derrota militar do exército russo conduzisse a uma mudança de regime em Moscou. O regime ucraniano, por sua vez, esperava que, após vencer a guerra contra seus separatistas internos, se tornasse imediatamente membro da OTAN. Completamente irrealistas, ambas as expectativas se viram frustradas.

A Ucrânia está agora muito obviamente sendo derrotada. Em breve poderia vir a assinar uma capitulação, como primeiro passo para um cessar-fogo com a Rússia. A questão, no entanto, é: quem ou o que poderia servir de garante para tal espécie de acordo?

A adesão à OTAN já não é uma opção. Em 11 de julho, a cúpula do Conselho do Atlântico Norte em Vilnius declarou que a Ucrânia não teria que seguir o Plano de Ação de Adesão formal. Mas então o Conselho substituiu as condições formais desse Plano por uma formulação muito mais vaga: “Estaremos em posição de convidar a Ucrânia a aderir à Aliança quando os aliados concordarem e as condições forem cumpridas”. O secretário-geral da OTAN foi ainda mais explícito: “a menos que a Ucrânia ganhe esta guerra, não há nenhuma adesão a ser discutida”. Na prática, não haverá adesão à OTAN nem garantias de segurança da OTAN para a Ucrânia, nem agora nem nunca.

Uma garantia de segurança total direta, de Washington a Kiev, também é impossível. Ela tornaria muito grande a probabilidade de uma guerra direta entre os Estados Unidos e a Rússia, que logo se transformaria em conflito nuclear. Os Estados Unidos parecem não querer arriscar isso.

Assim, durante os preparativos para a cúpula de Vilnius, quando ficou claro que os aliados não aceitariam a adesão da Ucrânia, o presidente norte-americano Joe Biden esboçou uma alternativa: “os Estados Unidos estão dispostos a oferecer a Kiev uma espécie de acordo de segurança nos moldes do atualmente oferecido a Israel, em vez da adesão à OTAN – disse o presidente Joe Biden à CNN em uma entrevista no dia 7 de julho. ‘Não acho que [ela] esteja pronta para ingressar na OTAN’, disse Joe Biden sobre a Ucrânia. ‘Não acho que haja unanimidade na OTAN sobre trazer ou não a Ucrânia para a sua família agora, no meio de uma guerra. E uma das coisas que sugeri é que os Estados Unidos estariam prontos para fornecer, enquanto o processo segue em andamento (e isso vai demorar um pouco) segurança como a que oferecemos a Israel: fornecer o armamento de que precisam e a capacidade de se defenderem’ – disse Joe Biden, acrescentando: ‘Se houver um acordo, se houver um cessar-fogo, se houver um acordo de paz’”.

Isso, porém, é ainda mais irrealista do que ser membro da OTAN. Como argumentou convincentemente Geoffrey Aronson na revista National Interest: “A pertinência do modelo israelense sugerido por Biden para a segurança da Ucrânia está profundamente comprometida, seja em termos conceituais, seja em termos práticos. (…) Operacionalmente, o modelo israelense não é aplicável para a situação em que a Ucrânia se encontra e dificilmente seria um bom modelo sobre o qual se possa construir a desejada relação de segurança entre os Estados Unidos, a OTAN e a Ucrânia. Em termos conceituais, não há muito mais que uma comparação superficial entre Jerusalém e Kiev para que um conceito como esse possa ser viável”.

“(…) Os vínculos de segurança entre Estados Unidos e Israel nasceram de três fundamentos: (a) a extensão da Guerra Fria ao Oriente Médio; (b) a esmagadora vitória de Israel em junho de 1967; e (c) o desenvolvimento sub-reptício por Israel de armamento nuclear a partir da década de 1950. É quase impossível que a Ucrânia seja capaz de sair de sua guerra com a Rússia com o tipo de vitória total que forneceu a base para os laços entre Estados Unidos e Israel após junho de 1967”.

“(…) Assim, pode muito bem haver aqueles na Ucrânia (mas esperamos que não em Washington) que vejam o modelo de Israel como sugestivo: o de criar a alternativa de uma dotação nuclear ambígua associada à manutenção do fornecimento de armas convencionais por parte de Washington. (…) Mas ainda aqui a realidade se intromete. A barganha norte-americana com Israel visa explicitamente assegurar a superioridade de Israel em armas convencionais contra qualquer associação de inimigos árabes/iranianos. Com essa finalidade, o orçamento fiscal de 2020 dos Estados Unidos destinou a Israel 146 bilhões de dólares em financiamento militar, econômico e de defesa antimísseis (em 2018 foram 236 bilhões de dólares)”.

“(…) No primeiro ano da guerra atual, a Ucrânia recebeu 77 bilhões de dólares de Washington, correspondente à metade da assistência militar, econômica e humanitária despendida. Na melhor das hipóteses, o apoio militar norte-americano no nível atual proporcionou a Kiev um impasse militar. A Ucrânia, fora (o mais provável) ou dentro da OTAN, nunca desfrutará de uma vantagem militar consistente sobre Moscou, ao estilo israelense, nem será capaz de comandar a agenda estratégica ou de segurança na região, como Israel faz no Oriente Médio”.

O poder militar russo torna qualquer tentativa de garantia de segurança para a Ucrânia, pretensamente análoga à oferecida a Israel, algo excessivamente caro para os Estados Unidos e, portanto, simplesmente impossível.

Existe apenas um país no mundo que pode garantir a paz na Ucrânia e a segurança de suas fronteiras. E esse país é a Rússia. Qualquer garantia que este último país possa oferecer será evidentemente condicionada. Ou a Ucrânia aceita isso ou nunca estará a salvo da interferência externa. Esse é simplesmente um fato da vida, com o qual a Ucrânia teve e terá que conviver.

*Bernhard Horstmann é editor da mídia independente norte-americana Moon of Alabama.

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente em Moon of Alabama.

Nota do Tradutor


[1] Hoje, tem-se por consagrada, entre os analistas geopolíticos, a interpretação de que o interesse da OTAN (em especial dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha) no avanço militar do regime de Kiev incidia sobre o controle militar do Mar Negro (e o subsequente bloqueio do programa econômico/geopolítico chinês “Cinturão e Estrada” ‒ ou Belt and Road Iniciative ‒ BRI), por meio do domínio territorial da Crimeia, com o desalojamento da base militar russa de Sebastopol.

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