Sociedade perversa

Imagem_Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por João Sette Whitaker*

A sociedade brasileira, ou melhor, sua classe média e alta, é perversa. Se sente à salvo porque vê o fenômeno (covid-19) se dirigir para as periferias pobres, para as quais ela na verdade nunca ligou muito

O site UOL estampou esta semana: “Bairros com favelas e cortiços concentram mais mortes por covid-19 em SP”. Segundo a reportagem, “Sapopemba, na zona leste, registrou 101 óbitos, dez vezes mais do que o verificado em bairros centrais”. As mortes caem nos bairros ricos, mas crescem na periferia, muito rapidamente. Em comentada “live” nesta semana, Átila Lamarino previu um cenário catastrófico. O que vai acontecer quando a epidemia chegar de vez nas regiões mais pobres e densas país afora? Aliás, como se vê em Manaus, Belém, nas periferias do Rio e de São Paulo, já está chegando.

Escrevi dois ou três textos sobre isso, nos últimos dois meses (por exemplo ‘A sombra do Apocalipse projeta-se nas cidades“, no site Outras Palavras, em 20/03), e não fui o único. Na verdade, todos os urbanistas minimamente engajados na luta pelo direito a cidade alertaram: a tragédia iria explodir quando chegasse nas periferias pobres e densas.

É impressionante como a notícia agora confirma a previsão, justo quando, nos bairros ricos, se vê a população menos tensa e começando a sair nas ruas. Como se estivesse acabando.

Na Riviera São Lourenço, diz o UOL, um tal de “advogado e empresário Fernando Vieira” fez hoje uma festa de aniversário reunindo dezenas de carrões de luxo na sua porta, com som alto de o mesmo tanto de convidados. Todos devem estar bem, fiquem tranquilos. No máximo, bêbados de uísque 24 anos.

A sociedade brasileira, ou melhor, sua classe média e alta, é perversa. Se sente à salvo porque vê o fenômeno se dirigir para as periferias pobres, para as quais ela na verdade nunca ligou muito.

A quarentena, fácil de fazer para essa população, é na verdade um ato de solidariedade para com todos, sobretudo os mais pobres. Se tivesse sido adotada radicalmente desde o início pelos moradores do centro expandido, pelos que chegaram de suas viagens internacionais, o Covid se alastraria de forma mais lenta, e tardaria a chegar nesses bairros, talvez o suficiente para achatar mesmo a curva.

Mas essa solidariedade de cima para baixo na nossa pirâmide social não é nossa característica. Se a pandemia começa a fazer vítimas na “distante” Brasilândia, já se tornou parte do normal. É como ver as taxas de homicídios policiais contra jovens pobres e negros nas periferias, e como assistir desabamentos na TV. É como ver uma barragem quebrar na distante Mariana.

Tivesse havido mil avisos, não adiantaria. O sujeito vai correr na Av. Sumaré, porque sabe que – para ele – é seguro. Entender que o ato de se isolar é um ato para proteger os outros mais do que a si mesmo é pedir algo que não está no DNA de uma sociedade patrimonialista,onde quem tem pode tudo, por definição.

Para piorar, como escrevi também, o efeito Bolsonaro sobre muita gente mais simples que acredita religiosamente no seu discurso boçal – ele é o mito – fez também sua parte nesse alastramento descontrolado. Como acontece desde o voto de cabresto, uma parte da população mais pobre, com pouco acesso à informação, judiada pela vida sem privilégios que este Brasil lhe deu, cai nas manipulações políticas mais vis.

Agora, é torcer para que a batalha intensa dos profissionais de saúde dos hospitais públicos, as mobilizações incríveis das associações de bairros e ONGs populares nos bairros da periferia (fazendo flashmobs e divulgando podcasts de conscientização, distribuindo água, máscaras e alimentos, promovendo acolhimento solidário de idosos, etc.), que se substitui ao sempre ausente Estado nessas regiões, surta algum efeito.

Senão, a pandemia vai ceifar em cheio muita, mas muita gente, sempre os mais pobres, na maioria. E os mais ricos, se faltar vagas em hospitais. Nisso, o coronavírus até tenta ser democrático.

E o palhaço lá em Brasília continua lá. Sem impeachment, pelo jeito ainda não haveria razão para isso? Que saudades de uma mísera pedaladinha fiscal, que ninguém entendeu muito o que era. Mas aqueles que naquela época clamavam pela gravidade do “crime” e fechavam os olhos para o “viva Ustra” em nome do afastamento presidencial, hoje “temem que um terceiro impeachment em poucas décadas seja fatal para a nossa jovem democracia”. Ah tá bom. Em 2016, ninguém pensou nisso.

Fique em casa. Ainda. Não por você. Pelos outros.

*João Sette Whitaker é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP).

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES