Regras para radicais

Samirah Baco, Homem Azul, 2015
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Por SAUL ALINSKY*

Prólogo do autor ao livro recém-editado

A força revolucionária tem hoje dois alvos, tanto em termos morais quanto em termos materiais. Seus jovens protagonistas em alguns momentos fazem lembrar os cristãos antigos idealistas, mas que urgem a violência e gritam “Queimem o sistema!”. Eles não se iludem com o sistema, mas estão cheios de ilusões a respeito de como mudar nosso mundo. Foi sobre esse ponto que escrevi este livro. As palavras saíram em desespero, em parte porque o que elas fazem e farão é que vai conferir sentido ao que eu e os radicais de minha geração fizemos da vida.

Eles agora são a vanguarda, e eles tiveram de começar quase do zero. Poucos de nós sobrevivemos ao holocausto de Joe McCarthy do início da década de 1950 e, desses, houve uma quantidade ainda menor cujo entendimento e cujas noções evoluíram para além do materialismo dialético do marxismo ortodoxo. Meus camaradas radicais, de quem se esperava uma passagem de bastão da experiência e das ideias para uma nova geração, simplesmente não estavam mais presentes. Quando os jovens olharam para a sociedade que os cercava, tudo era, de acordo com eles, “materialista, decadente, burguês em seus valores, arruinado e violento”. É de admirar que nos tenham rejeitado in toto?

A geração de hoje está desesperadamente tentando dar algum sentido à vida, e isso fora deste mundo. A maior parte dela é produto da classe média. Eles rejeitaram seu pano de fundo materialista, a meta de ter um emprego que pague bem, um lar suburbano, um automóvel, ser membro do country club, viajar de primeira classe, ter status, seguridade e tudo o que significava sucesso para seus pais e suas mães. Eles tiveram isso. Eles viram como isso levou seus pais e suas mães aos tranquilizantes, ao álcool, a casamentos longevos ou divórcios, pressão alta, úlceras, frustração e desilusão com “a boa vida”.

Eles viram a idiotia quase inacreditável de nossa liderança política – no passado, os líderes políticos, dos prefeitos à Casa Branca, passando pelos governadores, eram considerados com respeito e quase com reverência; hoje, são vistos com desprezo. Agora esse negativismo se estende a todas as instituições, da polícia e dos tribunais ao “sistema” mesmo. Vivemos em um mundo de meios de comunicação de massas que diariamente expõem a hipocrisia inata à sociedade, suas contradições e o fracasso manifesto de quase todas as facetas de nossa vida social e política. Os jovens viram sua democracia participativa “ativista” se converter em sua antítese – bombas e assassinatos niilistas. As panaceias políticas do passado, como as revoluções na Rússia e na China, se transformaram na mesma coisa velha, mas com um nome diferente. A busca da liberdade parece não seguir nenhuma rota nem ter qualquer destino.

A juventude é inundada por uma enxurrada de informações e fatos tão avassaladores que faz o mundo parecer uma balbúrdia completa, levando-a a rodar freneticamente em busca daquilo que o ser humano sempre procurou desde o início dos tempos, a saber, um modo de vida que tenha algum significado ou faça algum sentido. Um modo de vida significa certo grau de ordem, em que as coisas têm alguma relação entre si e podem se encaixar como peças em um sistema que, no mínimo, forneça algumas pistas sobre o que é a vida.

Os humanos sempre tiveram anseios e buscaram orientação fundando religiões, inventando filosofias políticas, criando sistemas científicos como o de Newton ou formulando ideologias de vários tipos. Isso é o que está por trás do clichê “ter tudo sob controle” – apesar da percepção de que todos os valores e os fatores são relativos, fluidos e mutantes e de que será possível “ter tudo sob controle” apenas relativamente. Os elementos mudarão e se moverão juntos exatamente como o padrão mutante em um caleidoscópio giratório.

No passado, o “mundo”, fosse em termos físicos, fosse em termos intelectuais, era muito menor, mais simples e mais ordenado. Ele inspirava credibilidade. Hoje tudo é complexo demais, a ponto de se mostrar incompreensível. Que sentido faz os humanos colocarem o pé na Lua enquanto outros humanos esperam na fila da assistência social ou estão no Vietnã matando e morrendo por uma ditadura corrupta em nome da liberdade? Estes são dias em que o ser humano põe a mão no sublime enquanto está afundado até a cintura no pântano da loucura.

O establishment é, de muitas maneiras, tão suicida quanto alguns da extrema esquerda, só que ele é infinitamente mais destrutivo que a extrema esquerda jamais poderá ser. O resultado da falta de esperança e do desespero é a morbidez. Há uma sensação de morte pairando sobre a nação.

A geração atual encara tudo isso e diz: “Não quero despender minha vida do mesmo modo que minha família e seus amigos fizeram. Quero fazer alguma coisa, criar, ser eu mesmo, ‘cuidar do meu lance’, viver. A geração mais velha não entende e, o que é pior, não quer entender. Eu não quero ser meramente um conjunto de dados para alimentar um computador ou uma estatística numa pesquisa de opinião pública, apenas um votante portando cartão de crédito”. Para os jovens, o mundo parece louco e em processo de degradação.

Do outro lado, encontra-se a geração mais velha, cujos membros não estão menos confusos. Se eles não fazem tanto alarde ou não são tão conscientes, talvez isso se deva ao fato de que podem escapar para um passado em que o mundo era mais simples. Eles ainda podem se agarrar a valores antigos na esperança simplória de que, de um jeito ou de outro, tudo vai dar certo. De que a geração mais jovem acabará “se endireitando” com o passar do tempo. Incapazes de ir às vias de fato com o mundo como ele é, eles se retiram de qualquer confronto com a geração mais jovem com o clichê provocador: “Quando você for mais velho, vai entender”.

Qual seria sua reação se algum jovem lhe respondesse “Quando você for mais jovem, o que jamais vai acontecer, você entenderá, ou seja, é claro que você nunca vai entender”? Os da geração mais velha que alegam querer entender dizem: “Quando eu falo com minhas crianças ou com os amigos delas, eu lhes digo: Olha, acredito que aquilo que você tem para me contar é importante e eu respeito isso. Você me chama de quadrado e diz que ‘eu não estou nem aí’ ou que ‘eu não sei das coisas’, ou ‘eu não sei qual é a parada’ e o resto das expressões que você usa. Bem, concordo. Então, que tal você me explicar? O que você quer? O que você tem em mente quando diz ‘cuidar do meu lance’? Mas, afinal, qual é seu lance? Você diz que quer um mundo melhor. De que jeito? E não me diga que é um mundo de paz e amor e todo esse discurso, porque gente é gente, como você vai descobrir quando ficar mais velho – sinto muito, não quis dizer nada sobre ‘quando você ficar mais velho’. Eu realmente respeito o que você tem a dizer. Agora, por que não me responde? Você sabe o que quer? Você sabe do que está falando? Por que não podemos estar juntos?”.

E é isso que chamamos de lacuna geracional, choque de gerações.

O que a presente geração quer é o que todas as gerações sempre quiseram – um sentido, um senso para aquilo que o mundo e a vida são, uma chance de batalhar por algum tipo de ordem.

Se os jovens fossem escrever hoje nossa Declaração de Independência, eles começariam assim: “Quando, no curso dos acontecimentos inumanos…”, e sua lista de demandas particulares iria do Vietnã a nossos guetos negros, chicanos e porto-riquenhos, aos trabalhadores migrantes, aos apalaches, ao ódio, à ignorância, à doença e à fome no mundo. Essa lista de demandas particulares enfatizaria a absurdidade dos negócios humanos e o desamparo e o vazio, a temível solidão que decorre de não saber se nossa vida tem algum sentido.

Quando eles falam de valores, estão perguntando por uma razão. Eles estão procurando uma resposta, pelo menos temporária, para a maior pergunta humana: “Por que estou aqui?”.

Os jovens reagem a seu mundo caótico de diferentes maneiras. Alguns entram em pânico e fogem, raciocinando que o sistema de qualquer modo vai entrar em colapso devido à própria podridão e corrupção e, por isso, eles caem fora, tornam-se hippies ou yippies, usam drogas, tentam viver em comunas, fazem qualquer coisa para escapar.

Outros partiram para confrontos sem sentido e sem perspectiva para poder reforçar sua racionalização, dizer “Bem, nós tentamos e fizemos a nossa parte” e, então, cair fora também. Outros, cheios de culpa e sem saber a quem recorrer, enlouqueceram. Estes foram os vaticinadores e similares: eles tomaram a saída grandiosa, o suicídio. A esses nada tenho a dizer ou dar, a não ser pena – e, em alguns casos, desprezo, como por aqueles que deixaram seus companheiros mortos para trás e foram para a Argélia ou outros lugares.

O que quero com este livro não é dar conselhos arrogantes não solicitados. É articular a experiência e a recomendação a respeito das quais tantos jovens me perguntaram durante sessões noturnas em centenas de campi nos Estados Unidos. É destinado aos jovens radicais que estão comprometidos com a luta, comprometidos com a vida.

Lembrem-se de que estamos falando de revolução, não de revelação; você pode errar o alvo tanto atirando mais para cima quanto mais para baixo dele. Em primeiro lugar, não há para a revolução mais regras do que há para o amor ou para a felicidade, mas há, sim, regras para radicais que querem mudar seu mundo; há certos conceitos centrais de ação na política humana que agem independentemente do cenário ou da época.

Conhecê-los é fundamental para um ataque pragmático ao sistema. Essas regras fazem a diferença entre ser um radical realista e ser um radical retórico que usa bordões e slogans velhos e surrados, que chama policiais de “porcos fardados”, de “racistas fascistas brancos” ou de “filhos da puta” e, assim, assume um estereótipo, ao qual os demais reagem dizendo “Ó, esse é um daqueles” e prontamente o ignoram.

Essa falta de entendimento de muitos ativistas jovens para a arte da comunicação tem sido desastrosa. Até a compreensão mais elementar da ideia fundamental de que a pessoa tem de se comunicar no âmbito da experiência de seus ouvintes e respeitar plenamente os valores dos demais teria impedido ataques à bandeira dos Estados Unidos. O organizador responsável estaria ciente de que quem traiu a bandeira foi o establishment, ao passo que a bandeira em si continua sendo o símbolo glorioso das esperanças e das aspirações dos Estados Unidos da América e teria transmitido essa mensagem a seus ouvintes.

Em outro nível de comunicação, o humor é essencial, porque por meio dele aceita-se muita coisa que seria rejeitada se fosse apresentada em tom sério. Esta é uma geração triste e solitária. Ela ri muito pouco, e isso também é trágico.

Para o autêntico radical, tratar “de sua vida” é tratar da questão social para e com as pessoas. Num mundo em que tudo está tão inter-relacionado que nos sentimos incapazes de saber em que ou como nos apoiar e agir, o derrotismo se instala; durante anos houve pessoas que acharam a sociedade muito acachapante e se recolheram, concentrando-se em “cuidar da própria vida”. Geralmente internamos essas pessoas em manicômios e as diagnosticamos como esquizofrênicas. Se o radical autêntico descobre que ter cabelo comprido suscita barreiras psicológicas à comunicação e à organização, ele corta o cabelo.

Se eu estivesse organizando algo em uma comunidade judaica ortodoxa, eu não entraria lá comendo um sanduíche de presunto, a não ser que eu quisesse ser rejeitado e, assim, ter uma desculpa para cair fora. Meu “assunto”, se eu quiser organizar algo, é comunicação sólida com as pessoas na comunidade. Faltando comunicação, eu estou, na realidade, em silêncio; no curso da história, silêncio tem sido encarado como assentimento – nesse caso, assentimento ao sistema.

Como organizador, parto do ponto em que o mundo se encontra e de como ele é, não de como eu gostaria que ele fosse. Aceitar o mundo como ele é de forma nenhuma atenua nosso desejo de mudá-lo para o que achamos que ele deve ser – é necessário começar de onde o mundo está se formos mudá-lo para aquilo que achamos que ele deve ser. Isso significa operar dentro do sistema.

Há outra razão para operar dentro do sistema. Dostoiévski disse que dar um passo novo é o que as pessoas mais temem. Qualquer mudança revolucionária deve ser precedida de uma atitude aquiescente, afirmativa, não contestadora rumo à mudança por parte da massa de nosso povo. As pessoas precisam se sentir frustradas, derrotadas, perdidas, tão sem futuro no sistema dominante a ponto de terem vontade de deixar para trás o passado e arriscar a sorte no futuro.

Essa aceitação é a reforma essencial a toda e qualquer revolução. Introduzir essa reforma exige que o organizador opere dentro do sistema não só entre a classe média, mas também entre os 40% das famílias estadunidenses – mais de 70 milhões de pessoas – cuja renda anual se situa entre 5 mil e 10 mil dólares. Elas não podem ser dispensadas com a etiqueta de blue collar [colarinho azul] ou hard hat [capacete][i]. Elas não continuarão a ser relativamente aquiescentes e pouco contestadoras. Se falharmos em nos comunicar com elas, se não as encorajarmos a fazer alianças conosco, elas se moverão para a direita. Talvez façam isso de qualquer maneira, mas não deixemos que aconteça por padrão.

Nossa juventude está impaciente com as preliminares que são essenciais à ação com propósito. A organização efetiva é frustrada pelo desejo de mudança instantânea e dramática, ou, como formulei em outro contexto, a demanda é por revelação mais que por revolução. É o tipo de coisa que vemos na escrita de peças teatrais; o primeiro ato introduz os personagens e o enredo; no segundo ato, enredo e personagens são desenvolvidos à medida que a peça procura manter a atenção da plateia.

No ato final, o bem e o mal chegam ao confronto e à resolução dramáticos. A geração atual quer partir direto para o terceiro ato, pulando os dois primeiros; nesse caso, não há peça, somente confronto em função do confronto – uma fulguração súbita e o retorno à escuridão. Construir uma organização forte leva tempo. É entediante, mas é como se joga o jogo – se você quiser jogar e não apenas berrar “morte ao império”.

Qual é a alternativa a operar “dentro” do sistema? Um monte de lixo retórico referente a “queimem o sistema!”, o yippie berrando “faça você!” ou “cuide da sua vida”. O que mais? Bombas? Franco-atiradores? Silêncio quando policiais são assassinados e gritos de “morte aos pés de porco fascistas” quando outras pessoas são assassinadas? Atacar e perturbar a polícia? Suicídio em público? “O poder vem do cano de uma arma!” é uma palavra de ordem absurda quando o outro lado tem todas as armas.

Lênin foi um pragmático; quando voltou do exílio para o que era então Petrogrado, ele disse que os bolcheviques defendiam a obtenção do poder por meio do voto, mas reconsiderariam depois de conseguirem armas! Declarações militantes? Declamar citações de Mao, Castro e Che Guevara, que são tão pertinentes à nossa sociedade de alta tecnologia, computadorizada, cibernética, detentora de armas nucleares e meios de comunicação de massa quanto uma diligência na pista do aeroporto Kennedy?

Em nome do pragmatismo radical, não esqueçamos que, em nosso sistema com todas as suas repressões, ainda podemos falar em voz alta e denunciar a administração, atacar suas políticas, trabalhar para construir uma base política de oposição. É verdade que há intimidação por parte do governo, no entanto também há essa liberdade relativa para lutar.

Posso atacar o governo, tentar organizar algo para mudá-lo. Isso é mais do que eu posso fazer em Moscou, Pequim ou Havana. Lembrem-se da reação da Guarda Vermelha à “Revolução Cultural” e do destino dos estudantes universitários chineses. Alguns dos episódios violentos de explosão de bombas ou um tiroteio no tribunal que vivenciamos por aqui teriam resultado em um expurgo amplo e execuções em massa na Rússia, na China ou em Cuba. Vamos manter as coisas em perspectiva.

Nós começamos com o sistema porque não há outro lugar para começar, a não ser a insanidade política. É sumamente importante que nós, os que queremos a mudança revolucionária, entendamos que revolução tem de ser precedida de reforma. Supor que uma revolução política possa sobreviver sem a base de apoio de uma reforma popular é pedir o impossível em termos de política.

Nós, humanos, não gostamos de deixar abruptamente a segurança da experiência familiar; precisamos de uma ponte pela qual seja possível cruzar de nossa experiência para um novo caminho. O organizador revolucionário precisa abalar os padrões dominantes de sua vida, agitar, criar desencantamento e descontentamento com os valores correntes, visando a produzir, se não uma paixão pela mudança, pelo menos um clima aquiescente, afirmativo, não contestador.

“A revolução se efetivou antes de a guerra começar”, escreveu John Adams[ii]. “A revolução estava no coração e na mente do povo. […] Essa mudança radical nos princípios, nas opiniões, nos sentimentos e nas emoções do povo foi a real revolução estadunidense.” A revolução sem reforma prévia entraria em colapso ou se tornaria uma tirania totalitária.

Reforma quer dizer que massas da população atingiram o ponto de desilusão com modos e valores passados. Elas não sabem o que funcionará, mas já sabem que o sistema dominante é autodestrutivo, frustrante e irremediável. Elas não agirão em favor de mudanças, mas não se oporão resolutamente a quem agir a favor. O tempo estará, então, maduro para a revolução. Aqueles que, por alguma combinação de razões, encorajarem o oposto de uma reforma virão a ser, sem querer, aliados da extrema direita política.

Parcelas da extrema esquerda foram tão longe no circuito político que já não se diferenciam mais da extrema direita. Isso me traz à memória os dias em que “humanitaristas” desculparam as ações de Hitler, que era novo no cenário mundial, em razão de alguma rejeição paternal e algum trauma de infância que teria sofrido. Quando lidamos com pessoas que defendem o assassinato do senador Robert Kennedy, ou o homicídio da atriz Sharon Tate, ou o sequestro e as mortes no tribunal do Centro Cívico de Marin, ou o atentado à bomba e as mortes na Universidade de Wisconsin como “atos revolucionários”, estamos tratando de gente que meramente esconde sua psicose atrás de uma máscara política.

As massas da população se retiram horrorizadas e dizem: “Nossa maneira de fazer as coisas é ruim e estávamos dispostos a permitir que mudasse, mas certamente não para essa loucura homicida – não importa quanto as coisas estão ruins agora, porque elas estão melhores do que isso”. Diante disso, começam a recuar. Retornam à aceitação de uma futura repressão maciça em nome da “lei e da ordem”.

Em meio ao uso de gás e violência pela polícia de Chicago e pela guarda nacional durante a Convenção Democrática de 1968, muitos estudantes me perguntaram: “Você ainda acredita que devemos tentar operar dentro do sistema?”.

Eram estudantes que tinham estado com Eugene McCarthy em New Hampshire e o tinham seguido por todo o país. Alguns tinham estado com Robert Kennedy quando ele foi morto em Los Angeles. Muitas das lágrimas derramadas em Chicago não o foram em virtude do gás lacrimogênio. “Senhor Alinsky, lutamos em uma primária após a outra, e o povo votou não a respeito do Vietnã. Mas veja só aquela convenção. Eles não dão a mínima para a votação. Veja a polícia e o exército de vocês. Você ainda quer que operemos dentro do sistema?”

Doeu em mim quando vi o Exército estadunidense com as baionetas em riste avançando contra rapazes e moças do próprio país. Mas a resposta que dei aos jovens radicais pareceu ser a única realista. “Façam uma destas três coisas: primeira, procurem um muro de lamentações e tenham pena de vocês mesmos. Segunda, enlouqueçam e comecem a explodir bombas – mas isso só vai fazer as pessoas irem para a direita. Terceira, aprendam uma lição. Vão para casa, organizem-se, aumentem seu poder e, na próxima convenção, sejam vocês os delegados”.

Lembrem-se: quando vocês organizam o povo em torno de uma causa comum, como a questão da poluição, um povo organizado está em movimento. A partir daí é só mais um passo curto e natural até a questão da poluição chegar à política, chegar ao Pentágono. Não basta eleger seus candidatos. Vocês precisam continuar pressionando. Os radicais deveriam ter em mente a resposta de Franklin D. Roosevelt a uma delegação reformista: “Ok, vocês me convenceram. Agora vão lá fora e me pressionem!”. A ação advém de manter a temperatura alta. Nenhum político consegue segurar a batata nas mãos se vocês a esquentarem o bastante.

No que se refere ao Vietnã, eu gostaria de ver nossa nação ser a primeira na história da humanidade a dizer publicamente: “Estávamos errados! O que fizemos foi horrível. Entramos lá e continuamos entrando cada vez mais fundo e, a cada passo, inventamos novas razões para ficar. Pagamos parte do preço com a morte de 44 mil estadunidenses. Não há nada que possamos fazer para compensar o povo da Indochina – ou o nosso povo –, mas tentaremos.

Acreditamos que o mundo atingiu a maioridade e que já não é mais sinal de fraqueza abandonar o orgulho e a vaidade infantis e admitir que estávamos errados”. Tal admissão abalaria os conceitos de política externa de todas as nações e abriria a porta a uma nova ordem internacional. Esta é nossa alternativa ao Vietnã – tudo o mais é a velha colcha de retalhos improvisada. Se isso acontecesse, o Vietnã de alguma maneira teria valido a pena.

Uma palavra final sobre nosso sistema. O ideal democrático se origina das ideias de liberdade, igualdade, a regra da maioria mediante eleições livres, proteção dos direitos das minorias e liberdade de optar por múltiplas lealdades em termos de religião, economia e política, em vez da lealdade total ao Estado. O espírito da democracia é a ideia da importância e dignidade do indivíduo e da fé no tipo de mundo em que o indivíduo pode realizar ao máximo seu potencial.

Grandes perigos sempre andam de mãos dadas com grandes oportunidades. A possibilidade da destruição sempre está implícita no ato de criação. Consequentemente, o maior inimigo da liberdade individual é o próprio indivíduo.

Desde o início, tanto a fraqueza quanto a força do ideal democrático têm sido o povo. O povo não tem como ser livre se não estiver disposto a sacrificar alguns de seus interesses para garantir a liberdade de outros. O preço da democracia é a busca contínua do bem comum por todos os integrantes do povo. Há 135 anos, Tocqueville[iii] emitiu uma séria advertência no sentido de que, a não ser que cidadãos individuais estivessem regularmente implicados na ação de governar a si mesmos, o autogoverno sairia de cena. A participação cidadã é o espírito e a força que animam uma sociedade baseada no voluntarismo.

Não estamos nos referindo aqui a pessoas que professam a fé democrática, mas anseiam pela segurança tenebrosa da dependência em que podem ser poupadas do ônus de tomar decisões. Relutando em crescer ou sendo incapazes disso, elas querem permanecer crianças e ser cuidadas pelos outros. As que são capazes deveriam ser encorajadas a crescer; quanto às outras, a culpa não reside no sistema, mas nelas mesmas.

Aqui estamos desesperadamente preocupados com a grande massa de nosso povo que, frustrado pela falta de interesse ou oportunidade, ou ambas, não participa das intermináveis responsabilidades da cidadania e se resigna a uma vida determinada por outros. Perder sua “identidade” como cidadão da democracia é um passo na direção de perder sua identidade como ser humano. As pessoas reagem a essa frustração não agindo de modo nenhum. Seu afastamento das funções diárias rotineiras da cidadania é um desgosto com a democracia.

A situação é grave quando uma pessoa renuncia a sua cidadania ou quando um residente de uma grande cidade, mesmo que deseje dar a mão, perde os meios de participar. Esse cidadão continua afundado na apatia, no anonimato e na despersonalização. O resultado é que ele vem a depender da autoridade pública, e um estado de esclerose cívica se instala.

De tempos em tempos, houve inimigos externos diante de nossos portões; sempre houve o inimigo interno, a inércia oculta e malévola que prenuncia uma destruição mais certa de nossa vida e nosso futuro que qualquer ogiva nuclear. Não pode haver tragédia mais tenebrosa nem mais devastadora que a morte da fé que o ser humano tem em si mesmo e em seu poder de direcionar seu futuro.

Saúdo a presente geração. Apeguem-se a uma das partes mais preciosas da juventude, o riso – não o percam, como muitos parecem ter feito; vocês vão precisar dele. Juntos podemos encontrar parte daquilo que estamos procurando: riso, beleza, amor e a oportunidade de criar.

*Saul Alinsky (1909-1972) foi escritor e ativista político. Autor, entre outros livros, de John L. Lewis: an unauthorized biography (Must Have Books).

Referência


Saul Alinsky. Regras para radicais: guia prático para a luta social. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2024, 240 págs. [https://amzn.to/4dSS8ZZ]

Notas


[i] Na gíria estadunidense, as duas expressões designam pessoas de posições reacionárias ou conservadoras. (N. T.)

[ii] Ver carta disponível neste link.

[iii] “Não se deve esquecer que é especialmente perigoso escravizar pessoas nas pequenas questões da vida. De minha parte, eu estaria inclinado a pensar que a liberdade é menos necessária nas coisas grandes que nas pequenas, caso seja possível se assegurar destas sem possuir aquelas. A sujeição em pequenas questões irrompe a cada dia e é sentida por toda a comunidade indiscriminadamente. Não leva as pessoas à resistência, mas as perturba a cada passo, até que sejam levadas a renunciar ao exercício de sua vontade. Assim, seu espírito é gradualmente vergado, e seu caráter, debilitado; ao passo que a obediência exigida em algumas ocasiões importantes, mas raras, apenas requer servidão em certos intervalos e lança o ônus dela sobre poucas pessoas. É inútil convocar um povo que se tornou tão dependente do poder central para escolher de tempos em tempos os representantes desse poder; este raro e breve exercício de sua livre escolha, por mais importante que seja, não o impedirá de perder gradualmente as faculdades de pensar, sentir e agir por si próprios, caindo, assim, gradualmente abaixo do nível da humanidade.” Alexis de Tocqueville, Democracy in America (Londres, Saunders and Otley, 1835) [ed. bras.: Democracia na América. Trad. Julia da Rosa Simões, São Paulo, Edipro, 2019].


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