Por LISZT VIEIRA*
“Não é hora de buscar culpados”, afirmou o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, numa confissão indireta de culpa
“Elimine a causa e o efeito cessa”
(Miguel de Cervantes).
As fortes tempestades que abalaram o Rio Grande do Sul com grandes inundações provocaram uma inédita catástrofe ambiental. Centenas de desaparecidos e mortos, destruição de indústria, comércio, plantações, falta de água potável, de luz, de alimentos, destruição de estradas isolando municípios, um verdadeiro caos que tomou de surpresa as autoridades gaúchas, que ignoraram as advertências dos cientistas e ecologistas sobre a crise climática e os eventos climáticos extremos.
“Não é hora de buscar culpados”, afirmou o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, numa confissão indireta de culpa. Ele cortou ou alterou 480 pontos da legislação ambiental do estado do Rio Grande do Sul em 2019. Quando a natureza reage com inundações, está mais do que na hora de buscar os culpados da violação das leis ambientais de proteção ao meio ambiente. Segundo a AGAPAN (Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Ambiente Natural), o novo Código Ambiental do Rio Grande do Sul representa um retrocesso de 40 anos. Mas a grande mídia em geral só mostra as consequências e ignora as causas.
Segundo o ex-Diretor do DEP e do DMAE, em Porto Alegre (Departamento de Esgoto e Água), Carlos Atilio Todeschini, a Prefeitura não fez a manutenção do sistema de drenagem e proteção contra cheias (diques, comportas, casas de bomba, muros de contenção). Duas comportas não resistiram à pressão da água e foram a pique. Estavam com estrutura enferrujada, corroída. Não fizeram manutenção preventiva.
Para quem não sabe, o atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, é bolsonarista e negacionista da crise climática. A Prefeitura de Porto Alegre não investiu um centavo sequer em prevenção a enchentes em 2023. A situação ocorre mesmo com o departamento que cuida da área tendo lucro de R$ 428,9 milhões em caixa. Procurada, a assessoria do prefeito não se manifestou (UOL, 7/5/2024).
O Rio Grande do Sul é um dos Estados mais ricos do Brasil, agora está de pires na mão pedindo auxílio. O agronegócio recebe privilégios do governo, sonega impostos, desmata e destrói o meio ambiente e, na hora da tragédia, desaparece. Os senadores e deputados bolsonaristas do Rio Grande do Sul, que sempre negaram a crise climática, somem e se escondem. Mas a grande mídia, em geral, não diz isso. Explica a tragédia no Rio Grande do Sul como catástrofe natural. Não aponta os responsáveis.
Falta de planejamento e manutenção vai de mãos dadas com a especulação imobiliária, o agronegócio, a pecuária, mineração, indústrias poluidoras, enfim, todas as atividades econômicas destruidoras do meio ambiente natural, deixando a população desprotegida em caso dos previsíveis e ignorados eventos climáticos extremos.
A direita sempre foi negacionista da crise climática e da degradação ambiental por interesse. E um segmento da esquerda dita desenvolvimentista considerava o meio ambiente como entrave ao desenvolvimento. Só anos mais tarde é que a noção de desenvolvimento sustentável abriu caminho e ganhou respeitabilidade no mundo político, com exceção dos neoliberais e da extrema direita.
Décadas atrás, os ambientalistas eram chamados pela grande imprensa de “alfacinhas” e pelos políticos, de direita e de esquerda, de “viados”. Isso mudou quando os cientistas, reunidos no IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), vinculado à ONU, passaram a produzir relatórios, baseados em sérias pesquisas, alertando sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas.
A mídia passou a divulgar essas advertências científicas, mas em geral continuou apoiando e protegendo os políticos conservadores negacionistas. Desta vez, a catástrofe no Rio Grande do Sul foi tão escandalosa, que alguns veículos da imprensa não se limitaram aos efeitos e mostraram as causas, pelo menos em parte.
Um exemplo foi a denúncia do jornalista André Trigueiro, especializado em meio ambiente, responsabilizando o deputado gaúcho Lucas Redecker, relator do projeto, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, autorizando o desmatamento de 48 milhões de hectares de “campos nativos” (área equivalente à soma dos Estados do Rio Grande do Sul e Paraná). A crise climática não é obra do acaso.
De acordo com a jornalista Malu Gaspar, em sua coluna no jornal O Globo, “a equipe da coluna consultou os programas de governo submetidos pelo governador Eduardo Leite (PSDB) e pelo prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições de 2022 e 2020, respectivamente, e constatou que a prevenção a desastres e a possibilidade de eventos climáticos extremos não foi mencionada nenhuma vez nos documentos”.
Segundo o Secretário do Observatório do Clima, Marcio Astrini, a tragédia é responsabilidade também dos parlamentares que desmontam as leis ambientais. Existem três tipos de resposta possíveis diante da crise climática: a mitigação das causas, a adaptação em preparação para as consequências e a redução de danos diante das tragédias. O problema é que as ações tomadas por autoridades federais, estaduais e municipais tendem a se concentrar apenas nesse terceiro estágio de resposta. “O pessoal só age quando já está no nível da desgraça”, diz Marcio Astrini.
“Todo ano o governo do Rio Grande do Sul fica extremamente espantado que as chuvas são intensas. O governo do Rio de Janeiro fica super surpreso quando acontece em Petrópolis. É uma surpresa em São Sebastião (SP), no norte de Minas Gerais, em Recife, no sul da Bahia”. Mas, acrescenta ele, “há nove anos consecutivos as médias de temperatura do planeta são as mais quentes já registradas. Não tem mais surpresa. A gente precisa se preparar para isso”.
Para ele, a culpa é também do Congresso, onde “a maioria conservadora tem aprovado diversos projetos considerados nocivos para o meio ambiente. Nunca tivemos um Congresso tão dedicado a desmontar”. Eventos extremos como este – cada vez mais comuns por conta das mudanças climáticas – não podem mais ser tratados como “imprevistos”. “Deputados trabalham para destruir a legislação ambiental do Brasil. Neste momento estão querendo acabar com a Lei de Licenciamento Ambiental, com a reserva legal na Amazônia, e com as reservas indígenas”.
O climatologista Carlos Nobre, Coordenador Geral do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC/INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), afirmou: “O que acontece no Rio Grande do Sul não é uma tragédia natural. É consequência da ação humana, da irresponsabilidade, do descaso com o Meio Ambiente. Em nosso planeta, nunca aconteceu nada como o que acontece no Rio Grande do Sul neste mês de maio. Estou falando em um período de 125 mil anos. O que está acontecendo no Rio Grande do Sul nunca ocorreu em nossa história. Os órgãos públicos podiam ter tomado medidas preventivas, porque sabíamos desde o ano passado que isso poderia ocorrer”.
Segundo ele, enchentes como as que atingiram o Rio Grande do Sul são resultado direto do aquecimento global. Calamidades como a do Rio Grande do Sul serão cada vez mais frequentes no Brasil (UOL, 7/5/2024).
Outra voz autorizada é a do Prof. Dr. Rualdo Menegat, do IG-UFRGS. Ele denuncia que houve um apagão na infraestrutura do Estado do Rio Grande do Sul, privatizada pelo atual governo estadual e gerenciada de forma incompetente. A drenagem natural e os ciclos hídricos foram destroçados pelas políticas de uso intensivo do solo. Segundo ele, “flexibilizaram leis para aumentar áreas de plantio de soja, desmontaram planos diretores para ampliar a especulação imobiliária em zona ribeirinhas, para implantar minas de carvão e para favorecer a especulação imobiliária”. Ele ressalta que a Universidade é a esperança possível para desenvolver uma inteligência social que encoraje a sociedade a enfrentar a emergência climática-ambiental do século XXI.
Mas, no plano político, muitas vezes o meio ambiente preservado tem sido visto, pela direita – e também para certos segmentos da esquerda desenvolvimentista – como um entrave ao desenvolvimento. Um bom exemplo é o artigo publicado em 22 de agosto, no Jornal do Comércio, sob o título de “O gargalo do licenciamento ambiental”, por um deputado do Partido Republicano, que atualmente preside a Comissão de Economia da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Ele acusa o licenciamento ambiental de causar prejuízos à economia do Estado e insinua que os defensores do meio ambiente pertenceriam a um segmento que quer manter a sociedade na idade da pedra. Os princípios do desenvolvimento sustentável são ignorados ou rejeitados.
É de se esperar que a direita no Rio Grande do Sul leve a sério a crise climática e as denúncias de desmatamento, e pare de achar que tudo isso é invenção dos ambientalistas. Eventos extremos como este não podem mais ser tratados como “imprevistos”. Os especialistas da questão climática já previram que calamidades como a que atinge o Rio Grande do Sul serão cada vez mais frequentes no país. No ano passado, o sexto relatório do IPCC já previa um cenário de chuvas, secas, ondas de calor e incêndios mais intensos e frequentes em todo o mundo, e o Brasil, como vemos, não é exceção.
“Para a ciência, isso não é nenhuma novidade”, afirma o físico Paulo Artaxo, membro do IPCC e pesquisador da USP. “Há mais de 20 anos, todos os modelos climáticos mostram que, com o aumento da temperatura global, vai aumentar a quantidade de chuvas e secas muito intensas, ou seja, o clima vai ficar mais extremo. O relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas que fizemos há oito anos já previa chuvas mais extremas no Sul e secas na Amazônia” (Folha de S. Paulo, 7/4/2024).
Assim, A tragédia no Rio Grande do Sul não é consequência do acaso ou do imprevisto da natureza. É uma tragédia anunciada e com dupla negação. Os governos conservadores negam o papel do Estado, reduzido ao Estado mínimo previsto na cartilha do neoliberalismo, e negam também a crise climática e os eventos climáticos extremos anunciados e previstos pelos cientistas e ecologistas do Brasil e de todo o mundo.
Há uma grande campanha nacional para doações individuais aos desabrigados no Rio Grande do Sul. Mas os partidos políticos recebem bilhões do fundo eleitoral. Por que não podem fazer doações? Por que o Congresso não taxa os bilionários para obter recursos extraordinários para a Defesa Civil no Rio Grande do Sul?
Enquanto o Rio Grande do Sul enfrenta o maior desastre ecológico já registrado no Brasil, seus deputados e senadores negacionistas, todos bolsonaristas, apoiam no Congresso a extinção do licenciamento ambiental, das reservas indígenas e a redução da reserva legal na Amazônia. No Rio Grande do Sul, a ficha caiu, mas no Congresso a boiada continua passando.
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]
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