Samba e carnaval

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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

O samba, em seu percurso para a hegemonia, iria dominar o Carnaval, que, até 1917, era dançado e desfilado ao som de outros gêneros

O advento do samba

A indústria cultural e a sociedade de massas ganham um poderoso impulso graças às transformações de toda ordem, mas sobretudo tecnológicas e sociais, que, deflagradas pelo impacto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), conhecem uma aceleração sem precedentes nos anos de paz subsequentes.

É num clima de fermentação cultural popular que se gestam os gêneros musicais que viriam a identificar várias nacionalidades ao longo do século xx: o jazz norte-americano, o samba brasileiro, o tango argentino-uruguaio e assim por diante. Todos eles nascem em metrópoles portuárias e até em suas zonas portuárias. Assemelham-se na capacidade de fusionar influências díspares e perfis étnicos até então isentos de contato, ou mesmo conflitantes.

Nada mais distante que as danças de salão dos senhores de escravos e as festividades africanas, ou a música cubana e as bandas militares tocando nos coretos das praças. No entanto, os portos são cadinhos: marinheiros e mercadores trazem de fora a toada nova, o ritmo inédito, a coreografia nunca experimentada. Amalgamados aos modelos nativos nos bares e bordéis do cais do porto, resultarão numa outra forma estética, que nem é mais a de fora nem bem a de dentro, mas um precipitado que fica no fundo desse cadinho. São comumente híbridas ou sincréticas.

Os elementos em jogo no húmus desses gêneros de música popular nacional são invariavelmente os mesmos. Um grande porto, lugar de polinização de músicas diferentes e de diferentes origens. O processo de modernização em curso, acarretando alterações no panorama da cidade e nos costumes. Uma cultura popular urbana poderosa em formação, servida por uma indústria de entretenimento incipiente e informal, sequiosa de material para atender a uma forma de sociabilidade básica como a dança.

Veículos tecnológicos novos, no caso o disco, o fonógrafo e o rádio, este não por acaso batizado de broadcast, que ampliava seu alcance e os divulgava. Uma mescla de classe, ou um desnivelamento[i], que se dá quando uma criação expande seu âmbito de atuação para além da classe que a originou, resultava em que um tipo de arte provindo das fímbrias da sociedade (marginais, prostitutas, rufiões, nos casos mais flagrantes ex-escravos) fosse absorvido ou apropriado pelos grupos dominantes, garantindo-lhe um horizonte virtualmente igualitário, ou idealmente democrático.

No Brasil, Mário de Andrade observou que Ernesto Nazareth abominava que suas composições fossem chamadas de maxixes, com que se assemelhavam, devido à péssima reputação dessa dança de salão. Mas o compositor exigia que as chamassem de tangos, com que nem sequer se assemelhavam: “Andei imaginando que isso era susceptibilidade de quem ignora que o próprio tango se originou nas farras do porto montevideano entre a marinhagem changueira e as brancaranas, mulatas e abunas, moças de profissão”.[ii]

É desse modo que nascem, entre inúmeros outros e em diferentes quadrantes, o jazz – o mais importante de todos – em Nova Orleans, o samba no Rio de Janeiro, o fado em Lisboa, o tango em Montevidéu e em Buenos Aires, e o rebétiko no Pireu, porto de Atenas. O primeiro samba gravado e o primeiro disco de jazz partilham até o mesmo ano: 1917.

Tudo se passa como se o novo gênero – canção popular definidora de uma identidade cultural nacional –, ao invés de continuar evoluindo para se perder no anonimato fragmentário e elusivo das práticas folclóricas, fosse imediatamente estabilizado no disco, assim se tornando uma mercadoria que dinamizaria extraordinariamente o nascente mercado.

Seria estendido ao novo gênero o conceito de autoria, desconhecido do folclore. Sua função social também seria adaptada às necessidades de uma sociabilidade urbana, desenvolvida numa grande cidade e, portanto, concomitante a uma cultura de massas. No caso do Brasil, com notáveis mediações cunhadas, como adiante se verá, pela presença de um enorme contingente de ex-escravos acorrendo à então capital do país, Rio de Janeiro, e impondo aos poucos seus costumes, seus folguedos, sua música.

O samba, em seu percurso para a hegemonia, iria dominar o Carnaval, que, até 1917, quando já era a festa máxima do Rio de Janeiro, era dançado e desfilado ao som de outros gêneros, fossem valsas, choros ou dobrados. Doravante, tão perfeita fusão de samba e Carnaval mal deixa lugar para que se imagine o que seria um Carnaval sem samba.

E, sem samba, como poderia haver escolas de samba?

 

What’s in a name?

As sedes das escolas de samba do Rio de Janeiro ficam ou nos morros centrais ou nos subúrbios proletários. Cada bairro tem sua própria escola de samba, e essa identificação é a tal ponto importante que, como regra geral, o topônimo costuma figurar no nome da escola, cada uma demarcando o seu território: Estação Primeira de Mangueira; Beija-Flor de Nilópolis; Caprichosos de Pilares; Cartolinhas de Caxias; Acadêmicos do Engenho da Rainha; União da Ilha do Governador; Mocidade Independente de Padre Miguel; Acadêmicos do Salgueiro; Portela, que se situa na estrada de mesmo nome; Império Serrano, situada no Morro da Serrinha, em Madureira; Imperatriz Leopoldinense (aqui, estrada de ferro suburbana, assim denominada em homenagem à consorte do imperador Pedro I). Esta última encontra-se à beira da linha desse nome, porém no bairro de Ramos, pois substituiu o antigo bloco Recreio de Ramos.

Criam-se assim surpreendentes arranjos verbais que são parte integrante de seu encanto. Como também são obrigadas por uma portaria policial de 1935[iii] a colocar à frente o rótulo de Grêmio Recreativo, acabam ficando com o suntuoso onomástico de, por exemplo, Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, sendo Mangueira o morro onde fica a favela, enquanto “estação primeira” alude à estação da Estrada de Ferro Central do Brasil. Ou então Grêmio Recreativo Escola de Samba Educativa Império da Tijuca. Tornam-se, assim, elemento importante das identidades suburbanas, em luta para se afirmar na indiferenciação da metrópole que dissolve as individualidades, sendo incomparáveis na arregimentação do orgulho local, ou seja, do bairrismo.

Os títulos maliciosos e desafiadores, que antes predominavam, foram gradativamente abandonados em função da tentativa, afinal bem-sucedida, de adquirir respeitabilidade, de perder a pecha de marginalidade e crime que se aferrava à população mestiça. Basta observar que os onomásticos primitivos, como Deixa Falar (a primeira escola de samba, que aglutinou vários blocos antes independentes e acabou não vingando), Vai Como Pode (que se tornaria uma das superescolas, a Portela), Primeiro Nós – bloco que foi um dos precursores da Império Serrano –, Para o Ano Sai Melhor, Vizinha Faladeira, Quem Fala de Nós Come Mosca, vieram na maioria dos casos a ser trocados ou suplantados. Mesmo a veneranda Mangueira, a mais antiga das hoje existentes e bastião da tradição, saiu do bloco dos Arengueiros.

A anedota corrente a respeito da origem do título da Em Cima da Hora é ilustrativa dos vários itinerários percorridos, por vezes totalmente aleatórios, antes que se tome uma decisão a respeito. Após ruidosa e interminável querela para a escolha do nome, um dos fundadores, tendo que trabalhar bem cedo, vendo que já soavam as três horas da madrugada e nada de acordo à vista, avisou que estava em cima da hora. Eureca! Foi um verdadeiro batismo, e por isso o emblema da escola tornou-se um relógio cujos ponteiros marcam um 3 e um 12.[iv]

Quando essas associações passaram a se chamar oficialmente escolas de samba, em 1935, ano em que o desfile foi encampado pela prefeitura do Rio, o novo rótulo passou a encarnar certas aspirações. A malícia e o desafio são descartados em favor de algo circunspecto e organizatório: a nova categoria agora inventada (escola) é toda uma plataforma. Para obliterar a memória dos blocos e cordões de desordeiros, que costumavam transformar a folia em pancadaria, nada mais adequado que a inocência do termo, que trazia uma conotação pedagógica. Na formulação de sambistas calejados, comentando as razões da aquisição do novo título: “Com isso julgavam-se salvas as aparências”.[v]

Mas dessa atitude provocadora restam vestígios nos cognomes dos sambistas mais renomados. Ora constitui o instrumento em que são peritos a caracterizá-los: Paulinho da Viola, famoso compositor portelense; Nelson Cavaquinho, não menos famoso compositor mangueirense; Mano Décio da Viola, também da Império Serrano. Ora constitui a marca étnica: Sebastião Molequinho, Neguinho da Beija-Flor, Manuel Macaco, Sagui, Meia-noite, Doce de Leite, Manuel Mulatinho. Mais tarde surgiriam outros, sobretudo cantores, como Black-Out, Chocolate, Noite Ilustrada, Jamelão – do nome de uma frutinha roxa –, um brilhante profissional de provecta idade que se tornou uma verdadeira instituição, pois há várias décadas vem sendo o “puxador” anual do desfile da Mangueira, cantando o samba-enredo na avenida. Ora constitui a sátira que escarnece da cor da pele mediante um antônimo, caso de Alvaiade e de Brancura – este, destacando-se por usar exclusivamente engomadíssimos ternos de linho 120, deslumbrantes de alvura, o que fazia um belo contraste com sua tez retinta.

Ora constituem alusões à aparência ou ao comportamento, em geral malandros: Manuel Bambambã (do quimbundo mbamba-mbamba, que significa valentão, bom de briga), que fechava a retaguarda de sua escola, a Portela, evitando que ela fosse atacada por trás ao atravessar territórios de outras escolas,[vi] Pingo, Buruca Calça Larga, Carlos Cachaça (ilustríssimo compositor mangueirense), Boquinha, Jurandir Doidinho, Antenor Gargalhada, Casadinho, Geraldo Babão, Cartola, autor de sambas incomparáveis. Ou aos laços com determinado subúrbio, caso de Martinho da Vila, um dos maiores compositores – que começou na Aprendizes de Boca do Mato, próxima da Serra dos Pretos Forros, subúrbio carioca onde ele e os outros componentes da escola moravam –, e de Carlinhos Maracanã, português e bicheiro, que foi presidente da Portela por 23 anos.

Por que João da Gente ganhou o apelido de Gogó de Ouro? Por ser um grande repentista e “tirar versos” para a segunda parte do samba da escola, à época em que só a primeira parte era composta de antemão, sendo a segunda livre e improvisada no momento. Já é mais discutível porque Zeca Taboca passou a ser denominado Brinco. Numa homenagem a Noel Rosa, o maior de todos os compositores de música popular, batizou-se Noel Rosa de Oliveira, reputado autor de sambas-enredo. E ainda, entre outros, o grande Pixinguinha, um gênio musical enquanto compositor e virtuose dos sete instrumentos, Furunga, Cadeado, Baiaco, o Bide (Alcebíades Barcelos, do Estácio de Sá e da Deixa Falar, operário de fábrica de sapatos, introdutor do tamborim e inventor do surdo, compositor e ritmista extraordinário, requisitado para gravações durante décadas), Hugo Mocorongo, Mestre Fuleiro, Vinte-e-Oito, Sete, Pituca, Mário Upa, Bicho Novo, Gemeu, Carlinhos Bem-Te-Vi, Espírito-do-Mal, Amor (nome de guerra de Getúlio Marinho), Brilhozinho, Caboré.

Encerram o catálogo dois dos maiores e legendários fregueses da roda de samba da casa da Tia Ciata e, como tal, membros do coletivo que compôs aquele que leva o muito disputado galardão de ser o primeiro samba gravado, Pelo telefone. Portadores de lindos nomes: João da Baiana e Heitor dos Prazeres – e o deste último, por incrível que pareça, é nome civil e não cognome.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).

Trechos do livro Walnice Nogueira Galvão. Ao som do samba – uma leitura do carnaval carioca. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2009.

Notas


[i] Para a noção de “desnivelamento”, ver o debate entre Mário de Andrade e Roger Bastide, especialmente “A modinha e Lalo” e “O desnivelamento da modinha”, em Andrade, Mário de, Música, doce música. São Paulo, Martins, 1963; e Mello e Souza, Gilda de, O tupi e o alaúde, São Paulo, Duas Cidades, 1979.

[ii] Andrade, op. cit., p. 125.

[iii] Jório, Amaury e Araújo, Hiram. Escolas de samba em desfile – Vida, paixão e sorte. Rio de Janeiro, Poligráfica, 1969, p. 28.

[iv] Araújo, Hiram (org.). Memória do Carnaval. Rio de Janeiro, Riotur, 1991, p. 261.

[v] Jório e Araújo, op. cit., p. 141.

[vi] Conforme testemunho do sambista Candeia, em Cabral, Sérgio, As escolas de samba do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Lumiar, 1996.

 

 

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