Dia das mães

Henry Moore OM, CH, Mãe e filho com fundo de onda II, 1976
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ MACHADO MOITA NETO*

O presentear como ato de liberdade

Aproxima-se a temporada de mensagens doces e açucaradas apresentando a generalidade de uma construção cultural e social da maternidade que se mantém graças ao forte apelo comercial da data. Nessas mensagens, a idealidade do ser mãe é evocada para garantir um compromisso ético com o desembolso de recursos para comprar um presente. As mensagens doces trazem um sabor associado à dose de açúcar que é capaz de seduzir mais do que as mensagens açucaradas. Há, portanto, diferença de qualidade entre essas mensagens comerciais; porém, o resultado líquido de ambas é o mesmo: despertar a obrigação de consumo.

Talvez, Burrhus Frederic Skinner identificasse esse papel das peças publicitárias como parte do condicionamento operante. A recordação da alegria de uma mãe, pelo presente recebido no ano anterior, aumenta a probabilidade de ser dado um novo presente nesse ano. A crítica ao filho ingrato, que não presenteou a mãe, feita por irmãos, parentes e amigos, diminui a possibilidade de resistência a essa data comercial no ano seguinte. Portanto, o papel das peças publicitárias é de reforço através do estímulo que conduza a uma resposta mais satisfatória. Resistir a essa data comercial é uma resposta ineficiente. Essa é a base da lei do efeito de Thorndike. Resultado: mães são presenteadas nesse dia com produtos ou serviços ofertados pelos filhos ou por seus representantes.

Parece que essa consequência prática mina qualquer liberdade de insurgência contra a determinação ético comercial relativa ao dia das mães. De fato, a visão ingênua e idealista de liberdade pode ser abalada pelo constrangimento de ter sanção (punição) ao fazer uma escolha divergente do fluxo principal que move os interesses dominantes. Contudo, esse não é o único constrangimento à liberdade.

Alguém que queira presentear a mãe, indo dentro do fluxo, pode ter um obstáculo econômico intransponível, mesmo que as “suaves” prestações dilua no tempo o valor do bem a ser adquirido, há uma imposição de bom senso que não se pode presentear uma mãe com prestações divididas em mais de 12 vezes para não comprometer o presente do ano seguinte.

A lembrança, a oração, a saudade pelas mães falecidas têm apenas o componente imaterial que cada presente físico também carrega. Assim, quem tem a mãe falecida não mais se coloca em qualquer dilema ético comercial do presente. Também, se colocam fora desse dilema aqueles cuja mãe foge completa e decisivamente de qualquer aproximação tênue com os modelos de mãe dos comerciais.

No cristianismo (Novo testamento) temos uma história didática conhecida como o “O óbolo da viúva” e o acontecimento envolvendo um casal “Ananias e Safira” com significados completamente distintos, embora ambos podem dizer alguma coisa sobre os valores imateriais associados a qualquer presente ou doação.

Dando ou não presentes no Dia das Mães, cada filho fez uma escolha que a sua liberdade condicionada pelas circunstâncias ou pela condição econômica permitiu diante dos apelos comerciais. A liberdade, nessa situação, e em todas as outras da vida, é parte das batalhas que escolhemos travar ou delas fugir. É claro que existem condições existenciais, políticas, econômicas, sanitárias, ambientais, sociais, culturais que vão moldando ou modulando decisões dentro do pequeno espaço de liberdade que cada um possui considerando a realidade mundo em que vive.

Há um turbilhão de sentimentos que acompanham a liberdade possível de cada homem antes, durante ou após decisões mais complexas do que a aquisição de presente para o dia das mães. Esses envolvem a angústia, desamparo e desespero dentro de uma situação espaço-temporal e sociocultural dada. A liberdade é um dado da vida humana que foge das determinações fisiológicas e nos distingue dos animais. Entretanto, é também uma palavra desgastada com pouca utilidade prática e mal compreendida.

Há um excelente episódio de podcast que trata da liberdade segundo Ortega y Gasset, Merleau Ponty, Sartre e Charles Taylor. Contudo, creio ainda que a frase pinçada da música “Dom de iludir” pode melhor explicar a decisão de ocupar ou não o terreno pantanoso da liberdade: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

*José Machado Moita Neto é professor aposentado da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pesquisador da UFDPar.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Hans Kelsen e o eros platônicoplatão 16/10/2024 Por ARI MARCELO SOLON & LEONARDO PASSINATO E SILVA: Para Kelsen, a doutrina política platônica está calcada na homossexualidade do filósofo, circunstância que explicaria uma tendência totalitária do projeto filosófico platônico
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • Genocídio sem hesitaçãoemaranhado 17/10/2024 Por ARUNDHATI ROY: Discurso de aceitação do prêmio PEN Pinter 2024, proferido na noite de 10 de outubro de 2024
  • A longa marcha da esquerda brasileiravermelho 371 19/10/2024 Por VALERIO ARCARY: Nos dois extremos estão avaliações de que ou a esquerda “morreu”, ou que ela permanece “intacta”, mas ambos, paradoxalmente, subestimam, por razões diferentes, o perigo bolsonarista
  • Van Gogh, o pintor que amava as letrasfig1samuel 12/10/2024 Por SAMUEL KILSZTAJN: Van Gogh costumava descrever literalmente seus quadros em detalhes, abusando de adjetivar as cores, tanto antes de pintá-los como depois de prontos
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • Forma-livreLuizito 2 20/10/2024 Por LUIZ RENATO MARTINS: O modo brasileiro de abstração ou mal-estar na história
  • Influencer na Universidade públicapexels-mccutcheon-1212407 21/10/2024 Por JOHN KENNEDY FERREIRA: Considerações sobre a performance na Universidade Federal do Maranhão.
  • O prêmio Nobel de economiapratos 16/10/2024 Por MICHAEL ROBERTS: É preciso dizer que as teorias que avançam para a “recuperação do atraso” são vagas e, como tais, pouco convincentes
  • A tragédia sem farsaestátua 17/10/2024 Por BARUC CARVALHO MARTINS: Breves comentários sobre a derrota da esquerda na eleição municipal

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES