Por FLÁVIO GABRIEL CAPINZAIKI OTTONICAR*
Quando enunciados tautológicos vêm de pessoas com uma certa reputação, transmitem a sensação de se tratar de uma trapaça intelectual
Samy Dana, economista e comentarista de rádio, chamou a atenção da internet ao postar em uma rede social uma explicação da utilidade da nova cédula de R$ 200,00 anunciada pelo governo essa semana. O motivo do comentário ter se transformado em deboche está no fato de que, tomada isoladamente, a publicação não acrescenta nenhum novo dado ou conhecimento apesar de todo o palavreado.
Se tomada em conjunto com outras postagens que Dana publicou, é possível compreender que o economista dizia que, a despeito da popularização de cartões e outras modalidades digitais, como os aplicativos de pagamento online, muitas pessoas ainda utilizam cédulas de papel para realizar transações. Por isso, a disponibilidade de uma nota de R$ 200,00 serviria para diminuir a quantidade de cédulas de papel que essas pessoas têm de carregar consigo.
Entretanto, fora desse contexto, a frase motivou uma grande zombaria na rede. Antes de comentar a razão disso, reproduzo abaixo as palavras que geraram a chacota:
“Se precisa pagar uma conta de duzentos reais, hoje precisa de duas notas de cem, quatro de cinquenta, dez de vinte, vinte de dez, quarenta de cinco ou até cem notas de dois reais entre outras combinações Com uma única nota de duzentos, poderá substituir todas essas operações”
O motivo do deboche é óbvio: a frase possui um tom instrutivo e carrega um certo ar de “autoridade” ou de “especialista no assunto explica”; afinal foi dita por um professor de ensino superior, com doutorado, etc. Essa postura explicativa é realçada pelo “hoje é assim que funciona…amanhã poderá ser de outro jeito”. No entanto, apesar da pompa, a oração não acrescenta absolutamente nada a ninguém. Isso porque o que Dana faz é nada mais do que aquilo que fazíamos nas aulas de matemática no ensino fundamental e que aprendi (mais ou menos!) sob vários nomes: “fatoração”; “decomposição em números primos”; “máximo divisor comum”, etc. Afirmar que uma nota de 200 pode ser decomposta em duas de cem; quatro de cinquenta; dez de vinte e assim por diante, significa apenas dizer que 200 é divisível por 100, que dá 2; por 50, que dá 4, por 20, que dá 10, e assim por diante. O motivo do deboche, então, se dá pela pressuposta “autoridade” que explica aquilo que qualquer um sabe.
Essa situação me fez lembrar imediatamente de um dos conceitos mais conhecidos do filósofo Immanuel Kant (1724 – 1804). Trata-se do “juízo analítico”, exposto pelo filósofo na sua famosa Crítica da Razão Pura (1781).
Kant apresentou na obra mencionada três tipos de juízos: analíticos, sintéticos a priori e sintéticos a posteriori. De maneira grosseira e resumida, os juízos analíticos são os que se expressam por mera análise, sem que se acrescente nenhuma nova informação. Os juízos sintéticos, pelo contrário, acrescentam uma informação nova ao enunciado. Se eles forem a priori, essa nova informação é alcançada antes da experiência sensível, se forem a posteriori, são alcançados depois da experiência sensível.
Assim, por exemplo, se afirmo, que “a água é úmida” não faço mais do que decompor ou retirar uma ideia que já estava contida na outra. Esse é o juízo analítico. No entanto, para ter certeza de que a água está fria ou quente preciso tocá-la ou experimentá-la. Nesse caso trata-se do juízo sintético a posteriori. Por fim, posso saber que a água alcança o ponto de ebulição quando atinge a temperatura de cerca de 100°C sem precisar fazer a experiência com toda a água do mundo. Esse é o juízo sintético a propri, a cereja do bolo da Crítica da Razão Pura.
Juízos analíticos, quando desenvolvidos da maneira feita por Samy Dana, tornam-se argumentos “tautológicos”. A tautologia é a repetição, com fins retóricos, do mesmo enunciado, porém com diferentes palavras. Assim, posso afirmar, por exemplo, que há cadáveres no cemitério, porém todos os cadáveres estão mortos e ainda por cima nenhum dos mortos está vivo. No final das contas nenhuma informação importante foi acrescentada.
Enquanto no âmbito da lógica e da retórica os juízos analíticos se aproximam da tautologia, na linguística, ele dá as mãos a certos tipos de pleonasmos e redundâncias. Assim ocorre quando, por exemplo, digo “metades iguais”; “vereador do município”; “erário público”.
Todas essas situações são corriqueiras e estão presentes na nossa forma de pensar e falar cotidianamente. Em tempos de exposição em redes sociais, não é de se admirar que cada vez mais peguemos “deslizes” dos especialistas. Afinal, a qualquer momento um professor Pasquale pode escorregar e fazer uma postagem com algum desvio da norma culta. Situações como esta “bombam” em função das visualizações e compartilhamentos. Entretanto, não desqualificam completamente quem as pronuncia, ou quem as posta. Vale, é claro, para dar algumas risadas, fazer alguns memes e perceber que qualquer um está sujeito a escorregarno raciocínio.
O ponto é que, quando enunciados tautológicos vêm de pessoas com uma certa reputação, transmitem a sensação de se tratar de uma trapaça intelectual. Quando muito se fala sem falar nada e quando nos damos conta de que o argumento simplesmente não se desenvolve e não progride, apesar do palavrório, ficamos com a sensação de que estamos diante de uma “artimanha enganosa”. Talvez tenha faltado ao Dana seguir os velhos conselhos bíblicos segundo os quais “no muito falar não falta transgressão” (Prov. 10:19) e que “ao orar, não useis de vãs repetições, como os gentios, que pensam que por muito falarem serão ouvidos” (Mt. 6:7).
A postagem de Samy Dana, entretanto, foi pelo menos útil no sentido de fornecer mais um exemplo do juízo analítico de Kant. Se eu ainda fosse professor, certamente essa seria uma bela maneira de exemplificar o conceito kantiano de juízo analítico. Foi só por isso que eu quis “compartilhar com outras pessoas que não eu mesmo”essas considerações sobre o ocorrido.
*Flávio Gabriel Capinzaiki Ottonicar é doutorando em filosofia na UFSCar.