Sangue no rastro da Lava Jato

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Por JOÃO QUARTIM DE MORAES*

O que se instalou em Curitiba foi um grupo de esquadrão da morte, totalmente fora dos parâmetros legais.

Em abril de 2019, um dos procuradores da famigerada Lava Jato, Diogo Castor de Mattos, foi afastado da junta de “tremendões” que mandava no que eles chamam a “República de Curitiba”. Sem maiores explicações, naquele momento. A explicação veio à tona três meses depois. Walter Delgatti Neto, um dos presos pela Polícia Federal por ter captado conchavos entre aqueles procuradores, revelou em depoimento que o afastamento de Castor foi iniciativa dos colegas, incomodados com a participação dele no financiamento de cartazes (“outdoors” na língua do Império) em apoio à Lava Jato, isto é, para fazer propaganda de si próprios.

A fotografia do painel exibido na estrada que dá acesso ao Aeroporto Afonso Pena, na periferia de Curitiba, foi publicada na coluna de Thiago Herdy (revista Época): “Procurador da força-tarefa pagou outdoor com elogios à Lava Jato”. A julgar pela qualidade artística, a produção da tela não deve ter custado caro. Sobre edificante fundo verde, amarelo e azul, um arco de círculo separa horizontalmente uma parte superior exibindo um retrato do álbum de família lavajateira e uma inferior, contendo um texto que glorifica seus feitos.

Na foto, nove indômitos procuradores posam respeitando a hierarquia: quatro de um lado, quatro de outro e no centro, mais alto que todos, tal um Branco de Neve cercado de oito anões, pontifica o vaidoso Deltan Dalagnol, parceiro de Sérgio Moro na manipulação processual. O texto de autocelebração de Dalagnol e seus auxiliares é curto e grosso, no pior sentido do termo: “Bem-vindo a (sic) República de Curitiba – terra da Operação Lava Jato – a investigação que mudou o país. Aqui a lei se cumpre. 17 de março, cinco anos de Operação Lava Jato – O Brasil Agradece”. O Brasil dos coxinhas já tinha agradecido, conferindo a Moro, capo da Lava Jato, o cargo de Ministro da Justiça de Bolsonaro.

Duas frases chamam atenção nesse exibicionismo vulgar: “a investigação que mudou o país”; “aqui a lei se cumpre”. A primeira é verdadeira: o lavajatismo mudou o Brasil (para muito pior) ao abrir caminho para Bolsonaro se tornar presidente. A segunda é mentirosa. Moro, Dalagnol et caterva escalaram a trilha do sucesso dando cotoveladas nas leis. Os graves abusos e atropelos de que são responsáveis caíram no domínio público e foram contundentemente condenados pelo ministro Gilmar Mendes, que em entrevista de 12 de fevereiro passado declarou: “o que se instalou em Curitiba era um grupo de esquadrão da morte, totalmente fora dos parâmetros legais”.

Dez dias depois, em 22 de fevereiro, mais uma revelação veio se acrescentar aos já conhecidos atentados do bando lavajatista contra as leis. A delegada da polícia federal Erika Marena foi acusada de ter forjado em janeiro de 2016, no auge da caça às bruxas da República de Curitiba, um termo de depoimento, simulando ter ouvido uma testemunha. Ela queria mostrar serviço para Deltan, mas este, mais esperto, ficou preocupado com a falsificação, comentando com um parceiro: “ela entendeu que era pedido nosso e lavrou termo de depoimento como se tivesse ouvido o cara, com escrivão e tudo, quando não ouviu nada […]. Dá no mínimo uma falsidade […]. DPFs são facilmente expostos a problemas administrativos”. Os procuradores, constatada a fraude, preocuparam-se exclusivamente em buscar maneiras de ocultá-la. A malandragem foi blindada: um novo crime que encobriu o outro.

Nem por isso a ascensão da delegada lavajatista foi interrompida. Rolando escada acima, Marena foi chefiar o “combate à corrupção” na PF de Santa Catarina. Lá ela foi protagonista da mais cruel e covarde façanha do lavajatismo. Em 14 de setembro de 2017, com a autorização da juíza federal Juliana Cassol, baseada em parecer favorável do procurador André Bartuol, do Ministério Público Federal, a feroz delegada desencadeou a operação de aniquilamento moral de Luiz Carlos Cancellier, Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Ela se baseava numa peça no mínimo duvidosa: o ouvidor da Universidade, Rodolfo Hickel do Prado, desafeto de Cancellier, acusou-o de “obstruir” investigações na UFSC a respeito de supostas irregularidades num programa de ensino à distância, ocorridas no mandato de seu predecessor. O ouvidor considerou “obstrução” da justiça o mero cumprimento, por parte do reitor, de seu estrito dever de ofício: solicitar vista do processo, para conhecimento. Impossível para ele prever que esse pedido iria destruir sua vida.

A fragilidade do pretexto para a prisão não inibiu o exibicionismo boçal da Polícia Federal: “115 policiais foram mobilizados para prender Cancellier, um cidadão desarmado, sem asseclas ou guarda costas”. A sádica crueldade da violência policial e judiciária não poupou ao Reitor nenhuma humilhação. Depois de depor na PF, ele foi levado, ao arrepio da lei, para a penitenciária de Florianópolis, onde, “tratado como marginal perigoso, teve os pés acorrentados, as mãos algemadas, e nu, submetido a revista íntima (para dizê-lo sem rodeios: teve seu ânus vasculhado por policiais em busca de saquinhos de droga), vestiu o uniforme de presidiário e foi por fim jogado em uma enxovia na ala de segurança máxima”. Roberto Amaral, de quem tiramos as frases entre aspas, compara o papel do ouvidor de plantão da UFSC ao “dos coronéis de ‘segurança’ instalados nas reitorias das universidades federais, depois do golpe militar”.

Proibido de frequentar a Universidade, deprimido e desesperado, Cancellier só encontrou um modo de dizer não a seus algozes: no dia 2 de outubro, jogou-se do sétimo andar de um shopping center de Florianópolis. Não tinha completado sessenta anos. O rolo compressor da Lava Jato esmagava mais um “suspeito”. Mas a vaga de indignação que percorreu os ambientes esclarecidos do país não afetou os operadores da máquina judiciária. Um rápido inquérito para apurar (na verdade, para encobrir) a morte de Cancellier deixou totalmente impunes os que, abusando friamente de seus poderes, haviam aniquilado uma vida. A delegada Marena continuou a rolar escada acima: em dezembro de 2017, dois meses após o trágico desfecho da intervenção policial na UFSC, o delegado Fernando Segóvia, colocado por Michael Temer na direção da Polícia Federal, promoveu-a para a Superintendência Regional de Polícia Federal no Estado de Sergipe.

A situação era propícia à truculência lavajatista. Estava em jogo o objetivo político maior da direita golpista após derrubar Dilma Rousseff em 2016: impedir que Lula fosse candidato em 2018, porque se fosse, ganharia. O sinistro Moro já havia cumprido sua parte: no dia 12 de julho de 2017 condenara Lula em 1ª instância a uma pesada pena de prisão.

A insólita celeridade com que foi marcado o julgamento de Lula em 2ª instância (24 de janeiro de 2018, menos de seis meses e meio depois, quando o intervalo médio é de cerca de 400 dias), escancara o “vale tudo” da direita para não deixar que ele voltasse à presidência. Alimentando o ambiente de auto da fé, a Rede Globo e os outros grandes meios de comunicação destilavam dia e noite “notícias” venenosas e exaltavam os bons serviços de Moro et caterva à cruzada moralista.

Importante nessa campanha de intoxicação era evitar que a sombra de Cancellier perturbasse o “script” da condenação de Lula. Em 22 de dezembro, o jornal Folha de S. Paulo deu sua contribuição ao encobrimento do crime, proclamando em grandes letras: “Relatos reforçam suspeita da PF sobre reitor da UFSC”. Depois de empurrar Cancellier ao corredor da morte, a tarefa seguinte era matar sua honra. O jornal não traz nenhum fato novo suscetível de modificar o que já se sabia a respeito das “suspeitas” de Marena e parceiros. Nada que invalide sequer uma vírgula de “O assassinato do reitor”, o protesto indignado de Roberto Amaral publicado em Carta Capital de 7/12/2017.

Um ano depois, Marena foi novamente premiada: Sérgio Moro, nomeado Ministro da Justiça do recém eleito Bolsonaro, designou-a chefe do departamento de recuperação de ativos e cooperação jurídica internacional. Lá estaria ainda, se a ruptura entre a ala bolsonarista e a ala lavajatista da extrema-direita não lhe tivesse custado o cargo. Talvez o depoimento forjado venha a lhe custar mais ainda: seus protetores da Lava Jato não fazem mais o que querem.

Aconteça o que lhe acontecer, ela e seus parceiros que organizaram “a mais infame operação de todo o período da Lava Jato” (a expressão é de um artigo recente do jornalista Luis Nassif) carregarão sempre a indelével mancha de sangue do reitor Cancellier.

*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular).

 

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