Só mais um esforço

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Por VLADIMIR SAFATLE

Nota do autor à edição de 2022

Escrito inicialmente em 2017, este era um livro de intervenção. Ele foi escrito no momento de colapso do lulismo e de ascensão daquilo que se configuraria, um ano depois, como a transformação do Brasil no laboratório mundial do neoliberalismo autoritário de feições fascistas. Nesse sentido, o livro não fala diretamente dos últimos três anos da história brasileira, embora tenha sido necessário, em certos momentos, trazer alguns elementos desse quadro para melhor articular o diagnóstico que havia sido apresentado em 2017.

De toda forma, se foi o caso de reeditá-lo é por acreditar que muitas de suas análises continuam válidas e podem servir de pressuposto para uma compreensão de dimensões relevantes do cenário que atualmente nos envolve. O tempo demonstrou a profundidade da tese do esgotamento da esquerda brasileira e sua necessidade urgente de reinvenção. Ele demonstrou, também, a profundidade do esgotamento institucional brasileiro e da incapacidade de nosso país em criar algo parecido com uma democracia minimamente efetiva. A luta justa contra a extrema direita no poder apenas reacendeu a tentativa de retomar o mesmo sistema de pactos e alianças que nos afundou e limitou a capacidade de transformação estrutural exigida pela plasticidade revolucionária da sociedade brasileira.

Seria o caso, então, de lembrar como a América Latina, ou ao menos uma parte substantiva do continente, procura caminhar por outra via. A dificuldade em vê-la no Brasil, ao menos até agora, vem principalmente das características de sua esquerda e suas estratégias. Por isso, este livro dedica-se a pensar nossa situação atual a partir das contradições imanentes da esquerda brasileira no poder. Seria possível seguir outro caminho, produzindo uma arqueologia da violência do Estado brasileiro contra setores majoritários da população e mostrando sua resiliência. Mas se escolhi a segunda via é por compreender que a tendência de repetição que explicita os limites da esquerda brasileira é muito maior e mais estrutural do que gostaríamos de acreditar.

Deveríamos, pois, partir da constatação de que 2021 viu um conjunto de insurreições populares na América Latina cuja força vem de articulações inéditas entre recusa radical da ordem econômica neoliberal, sublevações que tensionam, ao mesmo tempo, todos os níveis de violência que compõem nosso tecido social e modelos de organização insurrecional de larga extensão. As imagens de lutas vindas da Colômbia contra a reforma tributária que tem à frente sujeitos trans em afirmação de sua dignidade social, o fato de vermos desempregados a fazer barricadas juntamente com feministas no Chile explicam bem algo que foi descrito, recuperando o preciso termo de Félix Guattari, como “revolução molecular”.

Isso significa que estamos diante de insurreições não centralizadas em uma linha de comando e que criam situações que podem reverberar, em um só movimento, tanto a luta contra disciplinas naturalizadas na colonização dos corpos e na definição de seus pretensos lugares quanto contra macroestruturas de espoliação do trabalho. São sublevações que operam transversalmente, colocando em questão, de forma não hierárquica, todos os níveis das estruturas de reprodução da vida social.

Vendo tais movimentos agora, creio que a razão mais profunda deste livro está na crença de que o século XXI começou assim, de que este é efetivamente nosso século. Engana-se quem acredita que o século XXI começou em 11 de setembro de 2001, com o atentado contra o World Trade Center. Essa é a maneira como alguns gostariam de contá-lo, pois seria a forma de colocar o século sob o signo do medo, da “ameaça terrorista” que nunca passa, que se torna uma forma normal de governo. Forma de colocar nosso século sob o signo paranoico da fronteira ameaçada, da identidade invadida. Como se nossa demanda política fundamental fosse, em uma retração de horizontes, segurança e proteção policial.

Na verdade, o século XXI começou em uma pequena cidade da Tunísia chamada Sidi Bouzid, no dia 17 de dezembro de 2010. Ou seja, começou longe dos holofotes, longe dos centros do capitalismo global. Ele começou na periferia. Nesse dia, um vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi, decidiu ir reclamar com o governador regional e exigir a devolução de seu carrinho de venda de frutas, que fora confiscado pela polícia. Vítima constante de extorsões policiais, Bouazizi foi à sede do governo com uma cópia da lei em punho, tendo sido recebido por uma policial que rasgou a cópia na sua frente e lhe deu um tapa na cara. Bouazizi, então, ateou fogo em seu próprio corpo. Depois disso, a Tunísia entrou em convulsão, o governo de Ben Ali caiu, levando a insurreições em quase todos os país árabes.

Começava, assim, o século XXI: com um corpo imolado por não aceitar submeter-se ao poder. Começava, assim, a primavera árabe, com um ato que dizia: melhor a morte que a sujeição, com uma conjunção toda particular entre uma “ação restrita” (reclamar por ter seu carrinho de venda de frutas apreendido) e uma “reação agonística” (imolar-se) que reverbera por todos os poros do tecido social.

Desde então, o mundo verá uma sequência de insurreições durante dez anos. Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, Gillets Jaunes, Tel-Aviv, Santiago são apenas alguns lugares por onde esse processo passou, e na Tunísia já se via o que o mundo conheceria nos próximos dez anos: insurreições múltiplas, que ocorrem ao mesmo tempo, recusam centralismo e articulavam, na mesma série, mulheres egípcias que se afirmavam com os seios à mostra nas redes sociais e greves gerais. A maioria dessas insurreições irá se debater com as dificuldades de movimentos que levantam contra si as reações mais brutais e deparam-se com a organização dos setores mais arcaicos da sociedade na tentativa de preservar o poder tal como ele sempre foi.

No Brasil, tal dinâmica insurrecional se debateu com a própria esquerda hegemônica e suas reações. Um dos eixos principais deste livro é a defesa de que devemos retornar mais uma vez e entender melhor o que 2013 significou para o Brasil. Que parte dessa força tenha sido potencializada pela extrema-direita e seu fascismo ordinário, isso simplesmente mostra o que sabemos desde que Marx escrevia, em 1848, sobre como uma revolução social poderia dar em Napoleão III, a saber, que dinâmicas populares de revolta permitem tanto a emergência de sujeitos revolucionários quanto de sujeitos reativos.

Seria importante lembrar disso mais uma vez em um país como o Brasil, no qual as forças da reação organizaram-se de forma insurrecional. Setores expressivos da população foram às ruas, e nos anos seguintes pediram golpes militares, defenderam o fascismo de quem ainda nos governa. Dentro da lógica da contrarrevolução preventiva, o Brasil, diferentemente de outros países latino-americanos, foi capaz de mobilizar as dinâmicas de um fascismo popular.

Se achei que fazia ainda sentido reeditar este livro é por acreditar que um cenário possível entre nós é o de uma insurreição contra outra insurreição e há de se trabalhar por ele. Alguns podem achar isso distante e inefetivo; a esses e essas só posso lembrar desta frase de Marx em carta a seu amigo Ludwig Kugelmann: “Seria muito cômodo fazer a história universal se nos engajássemos na luta apenas à condição de nos sabermos vitoriosos”.

Mas como sei que esses e essas não serão convencidos a partir de uma frase ou mesmo de análises (as motivações para o engajamento passam por outros caminhos), talvez só resta pedir-lhes que fechem este livro. Outros acreditam que há de se estar preparado para que acontecimentos ocorram ou, se quiserem, há de se estar preparado para desejar que eles ocorram; a essas e esses o livro em questão foi escrito.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

 

Referência


Vladimir Safatle. Só mais um esforço. Belo Horizonte, Vestígio, 2022, 144 págs.

 

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