Jean-Paul Sartre em São Paulo

Imagem: Marlon Griffith
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BENTO PRADO JR.*

Reminiscência da visita do filósofo francês à capital paulista em 1960

Quando Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir estavam para chegar a São Paulo, acompanhados por Jorge Amado, o hoje psicanalista Luís Meyer me procurou para ver se era possível fazer uma entrevista com os dois escritores na televisão. Procurou-me porque sabia de minha amizade com Manoel Carlos, que então estava trabalhando na TV Excelsior.

Após contato com Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que concordaram com a idéia, nos encontramos pela primeira vez na televisão na hora da entrevista. Além de mim, entre os entrevistadores estavam presentes Ruy Coelho, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Luís Meyer.

Depois desse primeiro contato passamos a nos ver praticamente durante todos os dias em que durou a estadia do casal em São Paulo. No mais das vezes, na casa do Fernando Henrique, onde quase sempre estavam presentes os membros do seminário sobre o capital: Ruth Cardoso, José Arthur Giannotti, Paul Singer, Roberto Schwarz e outros.

Jean-Paul Sartre era sempre extremamente simpático e generoso. Chegou a nos oferecer todos os textos da revista Temps modernes, que poderíamos republicá-los livremente numa revista que cogitávamos e que nunca se tornou realidade.

Simone era obrigada a controlar um pouco Sartre, desde o consumo de álcool até o tempo gasto conosco. Lembro-me de Sartre pedindo um terceiro uísque e da intervenção em contrário de Simone. Sartre dizia: “Só mais um!”. Ela respondia: “Não”. Mas ele chegava a um acordo, pedindo: “Só meia dose?”. Do mesmo modo, ao fim da noite, ele nos perguntava a que horas nos encontraríamos no dia seguinte e sugeria “nove horas”. Simone dizia: “Dez horas”. O mesmo esquema do uísque funcionava: “Nove e meia?”.

Em suas memórias, Simone de Beauvoir lembra-se de nossos encontros numa frase rápida, quando fala de “jovens universitários muito cultos”. Jovens, pois tudo isso se passou em meados de 1960.

São Paulo, à época, foi tomada por uma “epidemia Sartre”. Houve várias conferências, todas elas com um público enorme. Lembro-me, para dar um exemplo, de que estava entre nós o filósofo Gilles-Gaston Granger, dedicado à epistemologia e muito distante do universo intelectual de Jean-Paul Sartre. Pois bem, até ele me disse: “Acho que Sartre é o maior filósofo contemporâneo, pois as últimas coisas do Heidegger…”.

Se não me falha a memória, o poeta Mário Chamie (que, no entanto, apreciava desde meados da década de 1950 o livro O que é a literatura?) passou, justamente por ocasião da presença de Jean-Paul Sartre, do estrito concretismo à sua “poesia práxis”.

O que aconteceu na TV Excelsior, na verdade foi uma pseudo-entrevista. Antes de entrarmos no palco, Sartre e Simone nos comunicaram as perguntas que gostariam de responder. Todas eram orientadas na direção da defesa da Argélia (em guerra com a França) e de Cuba.

Lembro que foi aqui no Brasil, por essa ocasião, que Jean-Paul Sartre assinou o famoso Manifesto dos 121, em defesa dos rebeldes argelinos, que tanto ruído provocou na França (de retorno à França, Jean-Paul Sartre não foi preso porque, segundo o general Charles de Gaulle, “não se prende Voltaire”).

O divertido é que me coube a seguinte pergunta, endereçada a Simone de Beauvoir: “Cuba é uma ditadura?”. Ela respondeu pela negativa e com tanta violência que fez um espectador na platéia perguntar a meu amigo Jorge da Cunha Lima: “Quem é esse rapazinho reacionário?”. Meu amigo teve de explicar-lhe o contexto, livrando-me da desagradável qualificação.

A entrevista teve três horas de duração, para espanto de Jean-Paul Sartre, que perguntava como era possível que uma empresa capitalista perdesse tanto dinheiro (suspendendo seus programas durante esse horário) para dar lugar a uma pura propaganda do socialismo.

Sartre filósofo midiático? Sim e não. Não, porque antes de se empenhar no seu “engajamento” político, sua obra extraordinária (filosofia e literatura) atingia apenas o público diretamente interessado, mais ou menos cinco mil pessoas na França, segundo o próprio Jean-Paul Sartre. Logo no imediato pós-guerra, tudo mudou. Jean-Paul Sartre começou a escrever para jornais (Heidegger, com inveja de tanto sucesso, chamou-o de mero jornalista, depois de tê-lo qualificado de extraordinário) e mesmo a agir por meio de um programa radiofônico.

Mas Jean-Paul Sartre viveu essa metamorfose como uma catástrofe. Dizia ser muito penoso conviver e dividir sua intimidade com esse outro insuportável – o Jean-Paul Sartre famoso. De resto, sua entrevista na televisão em São Paulo foi a primeira que aceitou fazer. Até então, sempre recusava convites dessa natureza. Mais que midiático, Jean-Paul Sartre era um filósofo essencialmente ativo politicamente. O filósofo midiático posterior é aquele que se identifica narcisicamente com esse outro produzido socialmente, “como uma mercadoria”.

De Jean-Paul Sartre ficou o exemplo de um grande filósofo, tão raro em nossos dias, em que predomina a filosofia escolar. Hoje, até mesmo no campo extremamente técnico das ciências cognitivas, há uma espécie de retorno generalizado à fenomenologia em geral e até mesmo aos escritos de Jean-Paul Sartre. Seguramente sua obra não é “coisa do passado”.

Sua obra literária é desigual. Para mim, Os caminhos da liberdade parecem pouco interessantes. Muito mais significativo é A náusea e, sobretudo, os contos reunidos em O muro, que são extraordinários. Além, é claro, de sua grande obra teatral.

*Bento Prado Jr. (1937-2007) foi professor titular de filosofia na Universidade Federal de São Carlos. Autor, entre outros livros, de Erro, ilusão, loucura: ensaios (Editora 34).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 12 de junho de 2005.

 

⇒O site A Terra é redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.⇐
Clique aqui e veja como.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Benicio Viero Schmidt Lincoln Secco Dênis de Moraes Bruno Machado Fernando Nogueira da Costa José Micaelson Lacerda Morais Gilberto Lopes Igor Felippe Santos Marcelo Guimarães Lima Marjorie C. Marona Armando Boito Eugênio Bucci Dennis Oliveira Antonino Infranca Luis Felipe Miguel Matheus Silveira de Souza Alexandre de Freitas Barbosa Marcos Silva João Paulo Ayub Fonseca Rubens Pinto Lyra Andrés del Río Andrew Korybko Michael Roberts Ricardo Antunes Walnice Nogueira Galvão Afrânio Catani Tadeu Valadares Fernão Pessoa Ramos Paulo Martins Everaldo de Oliveira Andrade Renato Dagnino Antônio Sales Rios Neto Milton Pinheiro Ronaldo Tadeu de Souza José Raimundo Trindade Luís Fernando Vitagliano Thomas Piketty Rodrigo de Faria Marcelo Módolo Luiz Carlos Bresser-Pereira Francisco de Oliveira Barros Júnior Sergio Amadeu da Silveira Vinício Carrilho Martinez Ari Marcelo Solon Chico Whitaker Luiz Werneck Vianna Salem Nasser Valerio Arcary Luiz Roberto Alves José Luís Fiori Anselm Jappe Yuri Martins-Fontes Francisco Pereira de Farias Celso Frederico Tales Ab'Sáber Maria Rita Kehl Leonardo Sacramento Juarez Guimarães Eleutério F. S. Prado Marcos Aurélio da Silva Slavoj Žižek Jean Marc Von Der Weid Luiz Bernardo Pericás Alexandre Aragão de Albuquerque Leonardo Avritzer Alysson Leandro Mascaro Paulo Nogueira Batista Jr Marilia Pacheco Fiorillo Manchetômetro Priscila Figueiredo Bento Prado Jr. José Geraldo Couto André Singer Francisco Fernandes Ladeira Carla Teixeira Boaventura de Sousa Santos João Sette Whitaker Ferreira Henri Acselrad Paulo Capel Narvai Luiz Renato Martins João Feres Júnior José Costa Júnior Liszt Vieira Carlos Tautz Ricardo Fabbrini Caio Bugiato Elias Jabbour Vanderlei Tenório Rafael R. Ioris Michel Goulart da Silva Bernardo Ricupero Ricardo Abramovay Érico Andrade Sandra Bitencourt Mariarosaria Fabris Annateresa Fabris Flávio R. Kothe Paulo Fernandes Silveira Ronald León Núñez Jorge Branco João Carlos Loebens Claudio Katz Gilberto Maringoni Luiz Eduardo Soares Eleonora Albano Atilio A. Boron Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ronald Rocha Celso Favaretto Henry Burnett Remy José Fontana Lucas Fiaschetti Estevez Eugênio Trivinho Flávio Aguiar Ladislau Dowbor João Adolfo Hansen Marilena Chauí Otaviano Helene Denilson Cordeiro Leonardo Boff Mário Maestri Marcus Ianoni Samuel Kilsztajn João Lanari Bo Paulo Sérgio Pinheiro Jorge Luiz Souto Maior Michael Löwy Plínio de Arruda Sampaio Jr. Eduardo Borges Fábio Konder Comparato Gabriel Cohn Airton Paschoa Julian Rodrigues Eliziário Andrade Antonio Martins Chico Alencar Kátia Gerab Baggio Daniel Costa José Dirceu Luiz Marques Heraldo Campos José Machado Moita Neto João Carlos Salles Daniel Brazil André Márcio Neves Soares Ricardo Musse Tarso Genro Jean Pierre Chauvin Leda Maria Paulani Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Osvaldo Coggiola Vladimir Safatle Gerson Almeida Berenice Bento Luciano Nascimento Lorenzo Vitral Manuel Domingos Neto Alexandre de Lima Castro Tranjan Daniel Afonso da Silva Valerio Arcary

NOVAS PUBLICAÇÕES