Sobre a conjuntura atual

Dora Longo Bahia. Escalpo Paulista, 2005
 Acrílica sobre fibrocimento 210 x 240 cm
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Por ALAIN BADIOU*

Melhor seria voltar ao núcleo da questão: a propriedade. A palavra de ordem geral deve ser “coletivização de todo o processo de produção”

O assunto sobre o qual eu gostaria de intervir, esta noite, mas que dificuldades pessoais me impedem de fazê-lo, é uma resposta à seguinte questão, relativa à palavra que, a princípio, nos reúne: a palavra “lutas” e a expressão “depois de dois anos de luta”.

Para ser breve, direi o seguinte: em escala quase mundial, há alguns anos, desde, sem dúvidas, aquilo que foi chamado de “a primavera árabe”, estamos em um mundo onde as lutas são abundantes. Mais precisamente: as mobilizações e as manifestações de massa. Eu proponho a afirmação de que a conjuntura geral é marcada, subjetivamente, pelo que chamarei de “movimentismo”, isto é, a convicção amplamente compartilhada de que importantes manifestações populares irão, sem a menor sombra de dúvidas, levar a uma mudança na situação. Vemos isso de Hong Kong a Alger, do Irã à França, do Egito à California, do Mali ao Brasil, da Índia à Polônia, e em muitos outros lugares e países.

Todos estes movimentos, sem exceção, parecem-me possuir três características:

(1) Eles são heterogêneos em sua composição social, na origem de sua revolta e em suas convicções políticas espontâneas. E esse aspecto multiforme também esclarece seu número. Não se trata de conjuntos de trabalhadores, ou de manifestações do movimento estudantil, ou de revoltas de lojistas esmagados por impostos, ou de protestos feministas, ou de profecias ecológicas, ou de dissidências regionais ou nacionais, ou de protestos do que costuma-se denominar os migrantes e que eu chamo de proletários nômades. Trata-se de um pouco de tudo isso, sob a dominação puramente tática  de uma tendência dominante, ou de diversas, dependendo dos locais e das circunstâncias.

(2) Resulta, deste estado de coisas, que a unidade destes movimentos é, e não poderia ser diferentemente no estado atual das ideologias e das organizações, estritamente negativa. Essa negação, é verdade, carrega realidades distintas. Pode-se revoltar contra a ação do governo chinês em relação a Hong Kong, contra a apropriação do poder por gangues militares em Argel, contra o domínio da hierarquia religiosa no Irã, contra o despotismo no Egito, contra as investidas da reação nacionalista e racial na Califórnia, contra a ação do exército francês no Mali, contra o neofascismo no Brasil, contra a perseguição de muçulmanos na Índia, contra a interdição retrógrada do aborto e dos cuidados sexuais na Polônia, e assim por diante. Mas nada mais do que isso, em particular nada que fosse uma contraproposta de alcance geral, esta presente nestes movimentos. No fim das contas, por falta de uma proposta política comum que seja claramente extraída das condições do capitalismo contemporâneo, o movimento acaba exercendo sua unidade negativa contra um nome próprio, em geral aquele do chefe de Estado. Iremos do grito de “Fora Mubarak” ao “Bolsonaro fascista”, passando por “Modi racista, vá!”, “Fora Trump”, “Bouteflika, aposente-se!”. Sem esquecer, naturalmente, as injúrias, os anúncios de demissão, e as estigmatizações pessoais, de nosso alvo natural que, aqui, não é ninguém mais do que o pequeno Macron. Eu proponho, então, dizer que todos estes movimentos, todas estas lutas, são definitivamente “foristas”. Deseja-se a saída do dirigente, sem que se tenha a menor ideia, nem de quem o substituirá, nem do procedimento pelo qual, supondo que ele efetivamente saia, garantir-se-á que a situação mude. Em síntese, a negação, que unifica, não porta em si qualquer afirmação, qualquer vontade criativa, qualquer concepção ativa da análise das situações e do que poderia ser, ou deve ser, uma nova política. Sem elas, chegamos  – é o sinal do fim dos movimentos –  a essa forma última de sua unidade: levantar-se contra a repressão policial de que se foi vítima, as violências policiais que se teve que enfrentar. Em suma, a negação de sua negação pelas autoridades. Eu já vi isso em Maio de 68, quando, na falta de de afirmações comuns, ao menos no começo do movimento, gritava-se pelas ruas “CRS, SS!”. Felizmente, logo em seguida, passado o primado do negativo revoltado, surgiram ideias mais interessantes. Ao custo, porém, de um confronto entre concepções políticas opostas, entre afirmações distintas.

(3) Hoje, com o passar do tempo, todo o movimentismo planetário termina mantendo reforçados os poderes em vigor, ou produzindo mudanças de fachada, que podem se mostrar piores do que aquilo contra o qual se revoltava. Mubarak saiu, mas Al Sissi, que o substitui, é uma outra versão, talvez pior, do poder militar. O domínio chinês sobre Hong Kong acabou, no fim das contas, reforçado, com leis mais próximas daquelas que operam em Pequim e com prisões em massa dos revoltosos. A camarilla religiosa no Irã está intacta. Os reacionários mais ativos, como Modi ou Bolsonaro, ou a gangue clerical polonesa, encontram-se muito bem obrigado. E o pequeno Macron está em uma condição de saúde eleitoral muito melhor, com 43% de opiniões favoráveis. Não apenas melhor do que no começo de nossas lutas e movimentos, mas também melhor do que seus predecessores, os quais, seja o muito reacionário Sarkozy, ou o socialista em pele de cordeiro Hollande, após a mesma duração de mandato que Macron possui hoje, encontravam-se em torno de 20% de boas opiniões.

Uma comparação histórica me é imposta. Nos anos entre 1847 e 1850, houve, em uma boa parte da Europa, grandes movimentos operários e estudantis, grandes levantes em massa, contra a ordem despótica estabelecida pela Restauração de 1815 e sutilmente consolidada após a revolução francesa de 1830. Na falta de uma ideia clara do que poderia ser, para além de uma ardente negação, a representação de uma política essencialmente diferente, toda a efervescência das revoluções de 1848 não serviu para nada além da abertura a uma nova sequência regressiva. Especialmente na França, o resultado foi o interminável reino de uma representação do poder do capitalismo nascente, Napoleão III, também conhecido, segundo Victor Hugo, como Napoleão, o pequeno.

No entanto, em 1848, Marx e Engels, que tinham participado dos levantes na Alemanha, expuseram as lições de toda essa situação, tanto nos textos de análise histórica, como o fascículo intitulado “As Lutas de Classe na França”, quanto neste manual, finalmente afirmativo, descrevendo, de certa forma para sempre, o que deveria ser uma política inteiramente nova, que tem por título “O Manifesto do Partido Comunista”. É em torno desta construção afirmativa, relativa ao “manifesto” de um partido que não existe, mas que deve existir, que começa, no longo prazo, uma outra história das políticas. Marx se repetirá, extraindo, vinte e três anos mais tarde, os ensinamentos de uma admirável tentativa, à qual falta, mais uma vez, para além de sua defensiva heroica, a organização eficaz de uma unidade afirmativa – a Comuna de Paris.

Evidentemente, nossas circunstâncias são bem diferentes! Mas acredito que tudo gira, hoje, em torno da necessidade de que nossas palavras de ordem negativas e nossas ações defensivas sejam finalmente subordinadas a uma visão clara e sintética de nossos objetivos próprios. E estou convencido de que para chegar lá, é preciso, em todo caso, lembrar-se do que Marx declarava ser o resumo de todo o seu pensamento. Resumo, é claro, também negativo, mas em uma escala tal que não se sustenta sem uma grandiosa afirmação. Trata-se da palavra de ordem “abolição da propriedade privada”.

Quando observadas de perto, as palavras de ordem como “em defesa das liberdades” ou “contra a violência policial” são estritamente conservadoras. A primeira subentende que nós temos, na ordem estabelecida, verdadeiras liberdades a defender, enquanto que nosso problema central deveria ser que, sem igualdade, a liberdade é puro engodo: como o proletário nômade desprovido de seus documentos, a quem a vinda até nós é uma verdadeira epopeia, poderia afirmar-se ‘livre’ no mesmo sentido que o bilionário detentor do poder real, proprietário de um avião particular e de seu piloto, e protegido pela fachada eleitoral de seu representante político no Estado. E como poderíamos imaginar, se somos revolucionários consequentes, se desejamos afirmativa e racionalmente um mundo diferente deste que contestamos, que a polícia do poder em vigor fosse sempre amável, gentil e pacífica?  Que ela diga aos revoltosos, dentre quais alguns encapuzadas e armados, qual é o caminho para o Eliseu? A grande grade, na rua à direita?

Melhor seria voltar ao núcleo da questão: a propriedade. A palavra de ordem geral, unificadora, pode imediatamente ser, de forma afirmativa: “coletivização de todo o processo de produção”. Seu correlato negativo intermediário, de uso imediato, pode ser “abolição de todas as privatizações decididas pelo Estado desde 1986”. Quanto a uma boa palavra de ordem puramente tática, atendendo àqueles a quem o desejo de negação domina, ela poderia ser: tomemos de assalto o local de um bastante importante serviço do Ministério da Economia e das Finanças, chamado: Comissão das participações e das transferências. Façamo-lo sabendo que este nome esotérico, “participações e transferências” não é mais do que a máscara transparente da Comissão da privatização, criada em 1986. E façamos com que se saiba que nós ocuparemos essa comissão da privatização até que a desaparição de toda forma de propriedade privada que concerne àquilo que, de perto ou de longe, parta de um bem comum.

Só com a popularização destes objetivos, tão estratégicos quanto táticos, nós já abriremos, acredite em mim, uma nova época, subsequente àquela das “lutas” e dos “movimentos” e dos “protestos”, cuja dialética negativa está a se esgotar, e de nos esgotar. Nós seríamos os pioneiros de um novo comunismo de massa cujo “espectro”, para falar como Marx, voltaria a assombrar não apenas a França e a Europa, mas o mundo inteiro.

*Alain Badiou é professor aposentado da Universidade de Paris-VIII. Autor, entre outros livros, de A aventura da filosofia francesa no século XX (Autêntica).

Tradução Daniel Pavan.

Publicado originalmente em Quartier Général.

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