Estado e protocolos religiosos na Índia

Imagem: Fuzail Ahmad
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Por JOSÉ VERÍSSIMO TEIXEIRA DA MATA*

Mudanças socioculturais fazem emergir uma poderosa sociedade civil, ciente de seus direitos e da disputa democrática

Com seu rápido desenvolvimento industrial, a Índia, país de grandes diversidades, de tantas línguas e de longa história, passa por mudanças socioculturais rápidas e importantes. Na Índia, a vida das pessoas ancora-se não apenas no direito legal civil, nos usos e costumes civis, e em certa medida em argumentos próprios da common law de extração insular, mas também nas diferentes prescrições e autoridades religiosas, que alcançam as diferentes comunidades, como acontece às duas maiores, a hindu (79%) e a mulçumana (14%). No ano 2018, a Suprema Corte se impôs no processo de atualização do direito indiano, afastando o entulho penal da legislação colonial, ditado ao tempo domínio do império britânico, que criminalizava as relações homossexuais e o adultério.

Ainda em 2018, a Suprema Corte da Índia, por uma de suas Câmaras, prolatou duas decisões notáveis, a do triplo talaq, e a do templo de Sabarimala, ambas de enorme conteúdo prático e simbólico. A primeira por alcançar a comunidade mulçumana, e a segunda, a dos hinduístas.

O triplo talaq era um divórcio praticado no interior da comunidade mulçumana. Consistia, basicamente, no seguinte: o marido mulçumano obtinha o divórcio, ao pronunciar ou escrever três vezes a palavra talaq (divórcio).

Um grupo de mulheres mulçumanas, ao alegar o evidente caráter discriminatório dessa tradição em face do divórcio meramente legal, peticionou à Suprema Corte pedindo o banimento de tal prática. Transcorreram dois anos entre a petição e a decisão final de uma câmara da Suprema Corte da Índia sobre a matéria, quando se considerou que as práticas seculares ou religiosas, livremente reconhecidas e exercitadas, se submetem aos ditames da constituição e do Estado no que toca aos direitos e às garantias fundamentais, como a igualdade dos gêneros, na forma do art. 25 da Constituição indiana.

 

Sabarimala

O caso do templo Sabarimala, no estado de Kerala, diz respeito à comunidade hinduísta, e, ainda que na mesma linha da decisão do triplo talaq, é mais cheio de simbolismo e tem alcance maior, até pela obstinada resistência dos fiéis à entrada em vigor da decisão da Suprema Corte. Essa inusitada resistência exigiu o uso da força policial por parte do Estado, com a prisão e o início de processo contra mais de dois mil tradicionalistas. Fato inequivocamente notável, que testemunha a importância do Estado na modernização das práticas religiosas.

Um dos santuários do hinduísmo, destino de grandes peregrinações, onde se incluem outras fés, o Templo de Sabarimala observava, rigorosamente, um édito dos sacerdotes que proibiu, no início da década de noventa, a entrada de mulheres entre 10 e 50 anos, isto é, no período normal da menstruação. Esse édito seria uma resposta à profanação do templo, perpetrada pela atriz Jayamala, que em 1986, na exuberância de seus vinte e sete anos, não somente entrou o espaço sagrado do templo (sanctum sanctorum), mas tocou os pés do Sri Ayyappa, a divindade do lugar, cuja pureza e santidade estaria ligada ao celibato. A Suprema Corte considerou que o édito, ao impedir a entrada de mulheres no período de menstruação no Templo de Sabarimala, era discriminatório e violava os direitos fundamentais previstos na Constituição da Índia, sobretudo o seu art. 25: “25. Todas as pessoas são dotadas de liberdade de consciência e do direito de livremente professar, praticar e propagar a sua religião, sujeitando-se à ordem , à moralidade e à saúde públicas e a outras disposições desta parte[da Constituição].

No item (ii) de sua conclusão, a Câmara julgadora considerou que a expressão “todas as pessoas”, que consta do art. 25 da Constituição indiana inclui as mulheres. E que o direito garantido pelo dispositivo citado não tem nada a ver com sexo, ou, ao menos ao que importava na decisão, com certos fatores fisiológicos especificamente atribuíveis às mulheres, como o fato de menstruarem durante uma fase de suas vidas.

Vale notar, no caso de Sabarimala, que a solução encontrada pela Suprema Corte da Índia, para precisar a proteção ao direito à religião, aos seus procedimentos e rituais, não pôs em risco, no caso analisado, o núcleo do hinduísmo, mas, sobretudo, destacou, com sua intervenção, que cabe ao Estado pelo Poder Judiciário fazer a análise do que é nuclear ou acessório na religião, quando os direitos constitucionais dos fiéis ou dos cidadãos estão em jogo. A esse propósito, cito dois parágrafos vitais da decisão mencionada:

“123. “Ao se permitir que mulheres entrem o templo de Sabarimala para oferecer preces, não se pode imaginar que a natureza da religião hinduísta poderia ser fundamentalmente alterada ou modificada de algum modo. Por conseguinte, a prática exclusivista à qual foi concedido o apoio da legislação infraconstitucional na forma da Lei n . 3, b, das Leis de 1965, estruturadas em virtude do Ato de 1965, não é nem uma parte essencial nem integrante da religião hindu, da qual os devotos do Senhor Ayyappa são seguidores, e não deverá remanescer.”

“124. Ninguém pode dizer que a parte essencial ou a prática de uma religião alterou-se a partir de uma data particular ou por um evento. Tais partes ou práticas alteráveis não são, peremptoriamente, o “núcleo” de uma religião onde se baseia a crença ou sobre o qual a religião se funda. Elas podem apenas ser consideradas como meros acessórios das partes ou práticas não-essenciais”.

É inequívoco o significado da decisão no caso do Templo de Sabarimala para a Índia, país onde as tradições religiosas têm um peso excepcional, pois se trata de uma sinalização decisiva e no espaço de toda a nação, cujo alcance vai muito além de uma decisão judicial ocorrida, em 2016, no Estado de Maharashtra, onde a Corte de Bombaim, já havia se pronunciado pelo direito de as mulheres entrarem o Templo Shingnapur, de fé hinduísta. Essa mesma Corte, ainda em 2016, liberara, atendendo petição de movimento de mulheres mulçumanas, o acesso à Mesquita de Haji Ali Dargah.

Todavia, não será demais dizer que o caso de Sabarimala repercutirá muito além da Índia, ao lembrar-nos que em nome das garantias constitucionais se pode entrar o templo, os seus procedimentos e mesmo os rituais, não apenas para garantir a vida ou a integridade física, mas também para assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade dos gêneros. A emergência democrática na Índia vai, assim, operando em todos os espaços daquela grande nação e modernizando as relações sociais, mesmo dentro dos lugares sagrados.

Amplia-se, desse modo, rapidamente a cidadania, ao se derreterem velhos dogmas e divisões sociais, que se erigiram ao longo de séculos de economia agrária e que foram reforçados pelas práticas nefastas da cruel implantação colonial do império britânico. Emerge, assim, uma poderosa sociedade civil, ciente de seus direitos e da disputa democrática.

Demais, vê-se, pela habilidade e equilíbrio que a Suprema Corte da Índia exibiu nesse episódio, que não se trata de uma corte qualquer. É de realçar esse fato, máxime quando muitos no Brasil se esforçam, vestidos de operadores do direito, em macaquear os ensinamentos de algumas cortes e legislações, simplesmente porque vêm de países que ainda lhes parece serem centrais.

*José Veríssimo Teixeira da Mata, consultor da Câmara dos deputados, é mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Traduziu, entre outros livros, Da interpretação, de Aristóteles (Unesp).

Referências


Decisão da Suprema Corte da Índia no caso Sabarimala. Disponível em www.supremecourtofindia.nic.in

A Constituição da Índia. Disponível em www.india.gov.in/my-government/constitution-india

The Sabarimala Verdict establishes the supremacy of Constitucional morality. Artigo de TKA Nair no Hindustantimes.

Sabarimala: The SC strikes yet another blow in favour of gender equality. The Hindustantimes, editorial.

Inde: arrestation de 2000 tradicionnalistes empêchant aux femmes d’accéder à um temple. Le monde, Paris.

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