Sobre a educação na pandemia

Imagem: John-Mark Smith
image_pdf

Por NATHÁLIA MENEGHINE*

Entre tessituras possíveis e guerras equivocadas

De início, uma professora/um professor se ocupa da função de transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade, transmitir a História, tecendo um fio entre o passado e o presente. Nessa tessitura, se encarrega de zelar pela tradição para que possamos não ter que “começar tudo outra vez” a cada geração. Neste ato, provoca a emergência do futuro de modo articulado as nossas escolhas, enquanto sociedade no tempo presente.

Nesta perspectiva, a função da Educação é também a de filiação, de inserção do sujeito na Cultura,  possibilitando a ele reconhecer marcas de identificação com o outro, dar lugar às diferenças e construir seu próprio lugar de palavra nesse mundo.

Educar é um ato amoroso, nesse sentido. Quem se oferece a esse ofício, transmite algo de si, de sua posição no laço social. Ensina-se não só fórmulas e gramática, mas como se relacionar com o próprio desejo de saber.

Isto não se faz sem laço educativo. Nenhuma aprendizagem é possível fora desse laço. E, tecer laço educativo, sem voz, sem corpo, sem olhar, tem uma certa dimensão de impossível. No entanto, é justamente pela via do nosso desejo enquanto professoras e professores de transmitir, que temos inventado novas estratégias para que a nossa palavra continue em vigor, que o ensino e a transmissão operem, atinjam nossos alunos pelas mais diferentes e criativas vias de acesso.

No final do ano passado li o texto do professor Jeferson Tenório, em um jornal gaúcho, onde ele afirmava textualmente: “os professores são a última trincheira contra uma sociedade inculta e bárbara”. Ele está correto. De lá pra cá, isso se tornou ainda mais evidente. E, nossas vidas, assim como a da maior parte da população brasileira, mais difícil.

O que se passa no território de uma sala de aula, não é substituível. Então, estamos perdendo muito. Tem um vazio enorme instalado. Não tem como esse real ser tamponado. Nem deve.

A escola não está, nem pode estar, fora da vida. Reconhecemos as dificuldades  e perdas que a contingência pandemia nos impõe, mas não paralisamos nosso trabalho diante delas. Justamente, tem sido a partir do reconhecimento dessas dificuldades, que temos também aprendido novas maneiras de sustentação do laço educativo, para que as aprendizagens continuem a acontecer, ainda que fora do ideal. Aliás, é sempre fora desse campo dos ideais que elas acontecem: a aprendizagem é veiculada pelo desejo, portanto, também, em certa medida, é transgressora.

Cientes que o nosso trabalho insere o sujeito na Cultura, faz memória da tradição, coloca o sujeito a desejar e, assim, engendra o futuro da nossa sociedade, sabemos da densidade de nossa responsabilidade. Por isso, mesmo afastados do encontro presencial, não desistimos de trabalhar, apostando que algo de nós chegue até nossos alunos, e lhes dê notícia de nossa sustentação desse desejo de transmitir.

Para critérios seguros de retorno às aulas presenciais, cabe nos submetermos à palavra das autoridades no assunto. Aliás, essa é também uma das transmissões importantes que devemos aos nossos alunos: reconhecermos nossos limites, que não sabemos tudo, e, também por isso, precisamos nos endereçar e reconhecer o saber dos outros, ainda que esses não atendam as nossas vontades pessoais. Isso os ajudará a compreender que o laço social nos exige renúncias narcísicas, balizas de comportamento, e exercícios de alteridade.

Escola e família não estão no mesmo lugar, isto é certo. Mas, nem por isso devemos deixar de considerar que a responsabilidade pela Educação não nos coloca em lados opostos, como alguns discursos de dissolução querem nos convencer. Há pontos de encontro, de aproximação, fundamentais, para que possamos conversar e oferecer uma mirada de sociedade mais dialógica para aquelas crianças, adolescentes e jovens, que cuidamos.

Se os professores são a última barreira contra a barbárie, as famílias são as primeiras. Não faz sentido que essas funções se antagonizem. Nesse momento, o risco comum que enfrentamos não é de perda do ano letivo, mas de esfacelamento civilizatório.

O risco é que, enquanto àqueles que deveriam fazer barreira, escolhem virar seus escudos uns contra os outros para guerrear, a barbárie passe e se estabeleça.

*Nathália Meneghine é psicóloga, psicanalista e professora.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES