Por ANTONIO BARSCH GIMENEZ & THIAGO FELICIANO LOPES*
O ativismo judicial, em sua essência, é a expressão contemporânea de um paradoxo democrático: a imposição de certos valores em nome do povo, mas nem sempre com o seu consentimento imediato
1.
O direito medieval legou à modernidade o conceito da iurisdictio – “dizer o direito” –, que consiste na função de criar as normas e de aplicá-las aos casos concretos. No século XVI, essa prerrogativa aparece em Jean Bodin e Thomas Hobbes como a atribuição essencial do soberano. A separação entre as funções típicas dos Três Poderes viria apenas após a Revolução Francesa: a atividade legiferante se torna prerrogativa do povo para se proteger contra o poder estatal e, assim, a execução das leis – pelo Executivo e pelo Judiciário – é pautada pela estrita legalidade (Lee, 2016, p. 83-113; Stolleis, 2011, p. 5-15).
Na luta contra a tirania do ancien régime, a nova fonte de legitimidade passa a ser a democracia, eliminando todas demais. Dessa forma, a partir do século XIX, qualquer tentativa de legitimar o poder passa necessariamente pela identidade entre governantes e governados. Se inicialmente o Legislativo aparece como representante da vontade popular, o bonapartismo aponta que o Executivo também pode fazê-lo (Schmitt, 2014, p. 67-72, 166-168, 212-213; 2015, p. 54-55; 2017, p. 30-39).
A disputa por quem representaria a vontade do povo ocorre originalmente entre Legislativo e Executivo, enquanto o Judiciário é visto como mero aplicador mecânico das leis – la bouche de la loi. Todavia, a interpretação das normas sempre deu grande margem de manobra ao intérprete, o que foi incrementado a partir da segunda metade do século XX (Barroso, 2018, p. 2201-2202; Stolleis, 2011, p. 16-17).
Isso se deve às tendências criadas pelo welfare state. Ao aumentar o campo de atuação do Estado por meio da criação dos direitos sociais, o Judiciário vira um foro ao qual se pode recorrer para cobrar esses direitos, muitas vezes não efetivados por questões ligadas ao processo legislativo da democracia de massas. A formação de uma maioria se torna cada vez mais difícil por conta da representação de inúmeros interesses no Legislativo, dificultando a implementação de políticas públicas. Ao mesmo tempo, essa fragmentação torna o parlamento uma mera formalidade, pois as decisões passam a ser tomadas por negociações em gabinetes privativos entre grupos que representam esses interesses seccionais (Ramos, 2015, p. 283-303; Schmitt, 2014, p. 60-66, 166-173, 213-216; 2015, p. 59-67).
Barroso (2018, p. 2177) sintetiza essa questão da seguinte maneira: “Há causas de naturezas diversas para o fenômeno. A primeira delas foi o reconhecimento […] da importância de um Judiciário forte e independente como elemento essencial das democracias modernas, para a proteção dos direitos fundamentais e do Estado de direito. A segunda causa envolve uma certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas […]. Com isso, evitam o próprio desgaste na deliberação”.
2.
Surge a partir disso a questão do ativismo judicial. Em essência, trata-se da invasão da competência típica dos outros Poderes pelo Judiciário. As questões são levadas ao Judiciário e este em suas decisões acaba fazendo escolhas para implementar políticas públicas que deveriam ser feitas pelo Legislativo ou pelo Executivo, as instâncias eleitas por voto popular (Barroso, 2018, p. 2182-2184, 2190; Ramos, 2015, p. 113-131, 194-202).
Portanto, o ativismo judicial não se resume a uma simples invasão de competências, mas também envolve a legitimidade democrática. Se Legislativo e Executivo derivam seu poder da vontade popular por meio do voto, o Judiciário não parece prima facie ser democrático, dado que nenhum de seus membros é eleito.
Todavia, o conceito de povo e a forma pela qual sua vontade é representada nunca foram unívocos, o que permitiu serem construídas várias ordens políticas. No século XVII, as controvérsias entre o Parlamento Inglês e os Stuarts não conseguiram esclarecer onde estaria depositada a agência; no século XVI, os monarcômacos nunca decidiram definitivamente se a soberania popular poderia ser exercida por qualquer membro do povo ou pelos magistrados inferiores, conflitando com outro representante, o próprio rei (como tutor regni); os canonistas medievais também não conseguiram solucionar a questão nas controvérsias conciliaristas, embora as pretensões papais tenham vencido no fim (Lee, 2016, p. 127-155, 290-294, 298-304; Tierney, 1982, p. 48-71).
Em vista dessa multiplicidade, Carl Schmitt (2017, p. 39-41) observou que o conceito de democracia deve ser separado do parlamentarismo, este que é apenas uma das formas políticas justificadas por aquela. Assim como a origem divina do poder, a vontade popular é um conceito político nebuloso, que, por isso, pode servir como base para os mais variados desenhos institucionais.
Portanto, se Frederico, o grande, da Prússia legitimou seu absolutismo ao colocar-se como servo do povo (Epstein, 1966, p. 342-343), não é inconcebível que outra instância não eletiva, o Judiciário, possa representar o povo.
De especial relevo para essa questão é a recente fala do ministro Luiz Fux (apud Schroeder; Gama, 2025): “O sentimento constitucional do povo é muito importante no momento em que os juízes decidem, porque os tribunais vivem da legitimidade democrática e da confiança legítima que o povo deposita no Poder Judiciário. O Judiciário deve contas à sociedade, porque todo poder emana do povo e em prol do povo é que se exerce as funções públicas. Evidentemente, não se está falando de pesquisas de opinião pública para saber como julgar […]. Mas é aferir o sentimento constitucional do povo para dar mais efetividades àquelas decisões […]. Quanto mais o Judiciário se aproxima do sentimento constitucional sólido do povo, mais as suas decisões serão respeitadas”.
3.
Não é impensável que o Judiciário se apresente como democrático por dois motivos. O primeiro, já presente no século XVIII, consiste em o Judiciário aplicar as leis, que são a vontade popular cristalizada, contra qualquer arbítrio do Legislativo ou do Executivo.
Além disso, antes do surgimento das cortes constitucionais, Hamilton (1961, p. 467) já via no Judiciário uma reflexão da vontade popular originária: “É muito mais racional supor que as cortes foram feitas para serem um órgão intermediário entre o povo e o Legislativo para que, entre outros, mantenha este dentro dos limites de sua autoridade. […] Uma constituição é, de fato, e deve ser vista pelos juízes como uma lei fundamental. Pertence-lhes, portanto, a competência de dizer o seu significado, assim como o significado de qualquer ato particular derivado do corpo legislativo. Se ocorrer uma divergência irreconciliável entre ambos, o que determina uma obrigação superior deve claro ter preferência; ou, em outras palavras, a Constituição deve ter prioridade sobre o estatuto, a intenção do povo deve ter prioridade sobre a intenção de seus agentes”.[i]
O segundo motivo reside no fato de que o processo judicial é essencialmente um debate. Os princípios do livre convencimento do juiz e do contraditório garantem que haja sempre um debate racional, cujo desfecho – a decisão judicial – exige uma fundamentação baseada na avaliação cautelosa dos elementos suscitados ao longo do processo. A possibilidade de intervenção de terceiros, em especial dos amici curiae, também democratiza ainda mais o processo, trazendo ao debate judicial aqueles que serão afetados pela decisão, assim como organizações e associações civis ligadas à questão em debate.
A instituição das ações coletivas para reivindicar direitos difusos – da sociedade em geral – é apenas outra faceta dessa ampliação do debate público no Judiciário. Além disso, a decisão ainda enfrenta a necessidade de se justificar perante a sociedade – o auditório perelmaniano –, estando sempre sujeita a críticas (Barroso, 2018, p. 2193, 2203; Dinamarco; Badaró; Lopes, 2023 p. 46-47, 57-60, 81-83, 119, 386-392, 541-550).
Nesse mesmo horizonte de ampliação da esfera deliberativa do Judiciário, insere-se o processo estrutural, que é utilizado em casos de ampla e reiterada violação de direitos fundamentais, causada por omissão ou comissão dos agentes políticos. Trata-se de um rito procedimental em que o juiz coordena um processo de transformação institucional e social, dialogando com especialistas, órgãos públicos e a sociedade civil em geral. O Judiciário atua aqui como ultima ratio, o que também se reflete na forma pela qual são propostas mudanças estruturais: privilegiam-se as propostas e as ações das autoridades competentes, mas, em caso de inércia ou de incapacidade, o juiz pode determinar até mesmo objetivos específicos a serem cumpridos, tomando o lugar do Legislativo ou do Executivo (Menegat; Perez, 2024, p. 235-238, 250, 256-259, 267-268).
4.
Em suma, não apenas o Judiciário representa em certa medida a vontade popular, mas também tem mecanismos de participação que se aproximam da função que os parlamentos detinham nas teorias políticas modernas. Esses elementos e a necessidade de dar uma resposta célere e efetiva à questão remediam em certa medida as deficiências que muitas vezes são enxergadas no processo legislativo.
Além disso, as cortes constitucionais, como o Supremo Tribunal Federal (STF), têm uma legitimidade comparável àquela do Legislativo, pois ambos aplicariam a vontade imediata do povo, a Constituição.
Dessa forma, não causa estranhamento a seguinte afirmação do ministro Luís Roberto Barroso (2018, p. 2173): “Supremas Cortes e Cortes Constitucionais, no mundo democrático, desempenham três papéis diversos: contramajoritário, quando invalidam atos dos outros poderes; representativo, quando atendem demandas sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas; e iluminista, quando promovem determinados avanços sociais que ainda não conquistaram adesão majoritária, mas são uma imposição do processo civilizatório”.
A função representativa ocorre quando o Judiciário dá voz à vontade popular que não foi atendida pelas instituições representativas clássicas, seja por um cálculo eleitoral ou por uma negociação política (Barroso, 2018, p. 2204-2205). Aqui já aparece um dos elementos essenciais das teorias políticas democráticas, mas as duas outras funções complementam a base de sua legitimidade na vontade popular, dado que já foram usadas desde o século XIX para justificar a precedência tanto do Legislativo quanto do Executivo.
As funções contramajoritária e iluminista podem ser interpretadas como uma só, pois colocam o princípio democrático na frente de uma escolha majoritária: no primeiro caso, contra um ato feito pelo Legislativo ou pelo Executivo que infrinja algum dos preceitos da regra do jogo democrático previstos na Constituição; no outro, contra a própria vontade da população, na medida em que esta ainda não foi “iluminada” contra seus preconceitos, caso contrário teria uma inclinação diferente (Barroso, 2018, p. 2186, 2198, 2208-2209).
Trata-se nesses casos do que Carl Schmitt (2017, p. 36-41) conceituou como princípio jacobino, que foi utilizado tanto pelo Legislativo quanto pelo Executivo desde a Revolução Francesa para justificar a imposição de medidas contra a vontade popular reinante. Em linhas gerais, considera-se que a população está em uma “menoridade” por alguma deficiência em sua formação, mas, uma vez que essa deficiência fosse remediada, a população perceberia o erro de sua posição inicial e tomaria a mesma medida que fora tomada contra sua vontade original.
5.
Um dos casos mais célebres em que essas funções se mostraram foi a Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 do Distrito Federal, que declarou um estado de coisas inconstitucional da situação dos presídios, causado pela inércia dos demais Poderes – e, por isso, conduzido à maneira dos processos estruturais (Silveira; Tawfeiq, 2024).
A atuação contra a vontade popular se justificar pela vontade popular “iluminada”, como se vê na decisão: “Diz não ofender a democracia a atuação judicial voltada à proteção de direitos fundamentais, principalmente quando envolvidas minorias impopulares, como são os presos. Sustenta que os poderes políticos não possuem qualquer motivação para resolver o problema ante a antipatia da opinião pública relativamente à população carcerária. […] No exame da grave questão ora submetida ao nosso exame, é preciso não desconsiderar a função contramajoritária que cabe ao Supremo Tribunal Federal exercer no Estado democrático de Direito e que legitima, precipuamente, a proteção das minorias e dos grupos vulneráveis, sob pena de comprometimento do próprio coeficiente de legitimidade democrática das ações estatais” (Brasil, 2015, p. 13, 162).
Não se trata aqui de legitimar o Judiciário nem em especial o STF; muito pelo contrário, o que se buscou foi mostrar como a democracia e a vontade popular são conceitos maleáveis o suficiente para legitimar as mais diversas pretensões de poder: o absolutismo esclarecido, o Terror, o bonapartismo, o Estado totalitário e, agora, o ativismo judicial. Ao passo que na Idade Média a ordem social existente era reflexão da Lei Natural imposta por Deus (Tierney, 1982, p. 42-44) ou, mais tarde, reflexo da sabedoria acumulada de um povo ao longo dos anos (Burke, 2014, p. 17-36); a vontade popular funciona como ideologia, que desde as cidades italianas medievais tem sido usada para legitimar várias instituições.
*Antonio Barsch Gimenez é mestrando em filosofia e teoria geral do direito na USP.
*Thiago Feliciano Lopes é advogado e escritor.
Referência
Barroso, L. R. Contramajoritário, Representativo e Iluminista: Os papéis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Revista Direito e Práxis, v. 9, n. 4, p. 2171-2228, 2018.
Brasil. STF. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. 2015.
Burke, Edmund. Reflections on the Revolution in France. In: Burke, Edmund. Revolutionary Writings. Edição de Iain Hampsher-Monk. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 1-250.
Dinamarco, C. R.; Badaró, G. H. R. I.; Lopes, B. V. C. Teoria Geral do Processo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.
Epstein, K. The Genesis of German Conservatism. Princeton: Princeton University Press, 1966.
Hamilton, A. Federalist n. 78. In: Hamilton, A.; Madison, J.; Jay, J. The Federalist Papers. The New American Library of World Literature Inc., 1961, p. 464-472.
Lee, D. Popular sovereignty in early modern constitutional thought. Oxford: Oxford University Press, 2016.
Menegat, Fernando; Perez, Marcos Augusto. Processo estrutural no controle da Administração Pública: entre a autocontenção e o ativismo. Suprema – Revista de Estudos Constitucionais, v. 5, n. Especial, p. 233-281, 2025.
Ramos, E. S. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
Schmitt, C. Der Begriff des Politischen. Leipzig: Duncker & Humblot, 1932.
Schmitt, C. Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. 10. ed. Berlim: Duncker & Humblot, 2017.
Schmitt, C. Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. 10. ed. Berlim: Duncker & Humblot, 2015.
Schmitt, C. Positionen und Begriffe: im Kampf mit Weimar – Genf – Versailles 1929-1939. 4. ed. Berlim: Duncker & Humblot, 2014.
Schroeder, L.; Gama, G. Fux diz que “sentimento constitucional do povo” deve importar para um juiz. CNN Brasil, São Paulo, 24 de out. de 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/fux-diz-que-sentimento-constitucional-do-povo-deve-importar-para-um-juiz/.
Silveira, L. G.; Tawfeiq, R. O processo estrutural e a implementação de medidas na ADPF 347: o enfrentamento do estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro. Revista Brasileira de Direito e Justiça, v. 8, p. 1-15, 2024.
Stolleis, M. Judicial Interpretation in Transition from the Ancien Régime to Constitutionalism. In: Morigiwa, Y. et al. (eds.). Interpretation of Law in the Age of Enlightenment. Springer, 2011, p. 3-17.
Tierney, B. Religion, law, and the growth of constitutional thought: 1150-1650. Cambridge University Press, 1982.
Nota
[i] No original: “It is far more rational to suppose that the courts were designed to be an intermediate body between the people and the legislature in order, among other things, to keep the latter within the limits assigned to their authority. […] A constitution is, in fact, and must be regarded by the judges as, a fundamental law. It therefore belongs to them to ascertain its meaning as well as the meaning of any particular act proceeding from the legislative body. If there should happen to be an irreconcilable variance between the two, that which has the superior obligation and validity ought, of course, to be preferred; or, in other words, the Constitution ought to be preferred to the statute, the intention of the people to the intention of their agents”.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A





















